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Dom João VI, o Príncipe Regente do Reino de Portugal em 1808
Dom João VI, o Príncipe Regente do Reino de Portugal em 1808| Foto: Reprodução

"Prefiro ser conhecido como o rei fujão do que como o rei morto", brada o príncipe-regente português gorducho, de bochechas flácidas lambuzadas em coxinhas de frango, em resposta ao questionamento de sua impetuosa e detestável esposa, nascida princesa da Espanha: “queres ser reconhecido como João, o Rei Fujão?”.

Mais de 25 anos após sua estreia, o filme “Carlota Joaquina, a Princesa do Brazil”, dirigido por Carla Camurati, ainda retrata a forma como o imaginário nacional imortalizou uma de suas figuras mais relevantes. Primeiro monarca europeu a viver e governar em terras coloniais, Dom João VI, o príncipe-regente do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, entrou para a história como o personagem encarnado por Marco Nanini: o chefe de Estado inseguro e manipulável que covardemente abandonou o povo português à mercê de Napoleão Bonaparte enquanto fugia com a corte para o Rio de Janeiro.

Iniciada em 1808, a estadia de Dom João em terras brasileiras se estendeu até 1821 quando, por força da Revolução Liberal do Porto, o monarca teve que voltar à metrópole para defender a monarquia. 200 anos depois desta mal conhecida viagem, uma obra com documentos inéditos e ainda indisponível no Brasil detalha não apenas os 68 dias de travessia entre a capital imperial e Lisboa, mas a extensão das decisões tomadas pelo príncipe regente, além de acrescentar novas cores ao seu mal representado caráter. Em Portugal, o jornalista e pesquisador Armando Seixas Ferreira publicou, no mês passado, o livro “1821 - O regresso do rei”, no qual argumenta que a vinda da família real portuguesa para o Rio não foi uma manobra conveniente e amedrontada, mas astuta e imprescindível para a sobrevivência do reino.

"O meu gosto pela História levou-me a viajar no tempo em que a corte portuguesa vivia no Rio de Janeiro. Há muitos anos que estudo este tema e quanto mais lia mais percebia que a informação que nos chegou estava algo deturpada. É verdade que o rei foi engordando e ficou mais feio com a idade, mas também foi o único que não se deixou aprisionar por Napoleão. Existe um certo negacionismo em relação a D. João VI que é preciso rebater em nome da verdade", afirma Ferreira, em entrevista por e-mail à Gazeta do Povo.

"Este livro demonstra que D. João, apesar de tímido, tinha bom caráter e era amado pelo seu povo. Era um político astuto que teve bastante sangue frio quando decidiu transferir a corte para o Rio de Janeiro. Ele foi afinal o rei certo no momento certo. Se a corte não tivesse permanecido 13 anos no Rio de Janeiro, provavelmente o Brasil não teria conservado as suas fronteiras e a dimensão continental que tem hoje", argumenta o autor, que explica que o rei entrou para a história como "Clemente" justamente por não gostar de assinar penas capitais.

Ferreira tem como uma de suas principais fontes, além dos diários de bordo inéditos que relatam a viagem de volta, as pesquisas do diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima, que nasceu em Recife, em 1867 e morreu em Washington, em 1928, depois de ter ocupado o posto de professor visitante da Universidade de Harvard. Munido de farta documentação sobre o período conhecido como “joanino”, lançou em 1909 seu “Dom João VI no Brazil”. Após explicar em pormenores todo o contexto político do Reino de Portugal em 1807 - acossado entre a iminente invasão da França, em posse do acordo que previa a cessão de boa parte do território ultramarino português; com os vizinhos espanhóis recentemente depostos por Napoleão -, Oliveira Lima afirma (o trecho reproduz a forma da língua portuguesa utilizada pelo autor):

"Retirando-se para a America, o Príncipe Regente, sem afinal perder mais do que o que possuia na Europa, escapava a todas as humilhações soffridas por seus parentes castelhanos, depostos á força, e além de dispor de todas as probabilidades para arredondar á custa da França e da Hespanha inimigas o seu territorio ultramarino, mantinha-se na plenitude dos seus direitos, pretenções e esperanças. Era como que uma ameaça viva e constante á manutenção da integridade do systema nepoleonico. Qualquer negligencia, qualquer desaggregação seria logo aproveitada”.

A obra de Oliveira Lima não é de todo desconhecida no Brasil. Mas ainda que haja esforços pontuais para conferir nuances à personalidade do filho de D. Maria I, os textos mais populares - e que acabam por respingar nos currículos escolares e discussões acadêmicas - sobre a vida de Dom João acabam por reforçar a impressão dominante. Vide, por exemplo, o best-seller do jornalista Laurentino Gomes, “1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil” (Editora Globo).

Na apresentação, Gomes menciona as pesquisas de Oliveira Lima e rejeita a forma caricata que Camurati atribui ao príncipe-regente, mas privilegia vozes que lhe conferem o adjetivo, senão de covarde, de excessivamente pacífico, citando o historiador Tobias Monteiro: “Preferindo abandonar a Europa, D. João procedeu com exato conhecimento de si mesmo (...) Sabendo-se incapaz de heroísmo, escolheu a solução pacífica de encabeçar o êxodo e procurar no morno torpor dos trópicos a tranquilidade ou o ócio para que nasceu.”

Para Ferreira, contudo, a trasladação da corte para o Brasil (à qual Gomes opta por chamar de “fuga”) foi uma manobra inteligente."Não vou comentar outras abordagens de outros autores, nem as suas fontes. Não sou historiador, mas sou jornalista há quase 30 anos. Consultei uma vasta bibliografia. Desde cartas, manuscritos, livros, diários de bordo dos navios que fizeram a viagem para Portugal e jornais daquela época com os testemunhos dos principais intervenientes e esta foi a realidade que encontrei", explica.

"Não nos podemos esquecer que nessa altura o Brasil fazia parte da nação portuguesa, por isso, não vejo aqui uma fuga, mas sim uma decisão estratégica à frente do seu tempo. Quando as torres gêmeas e o Pentágono foram atacadas no 11 de setembro de 2001, o presidente dos Estados Unidos George W. Bush foi colocado a salvo no avião Air Force One que voou para um local desconhecido. Em 1807 foi isso que D. João fez. Em circunstâncias mais difíceis colocou a soberania em segurança, transportando 15 mil pessoas para o hemisfério sul. Esta decisão destruiu completamente os planos de Napoleão na península ibérica e garantiu a independência do império. No Brasil, Dom João abriu os portos, emancipou o território e fundou o estado brasileiro. Depois, declarou guerra à França e impôs duras derrotas militares a Napoleão. A minha principal preocupação foi contribuir para o apuramento da verdade dos fatos, atualizando a informação. Gostaria que o leitor lesse o meu livro sem preconceitos e tirasse as conclusões somente no final", defende.

O livro recebeu elogios do vice-almirante de Portugal, Henrique Gouveia e Melo - líder da bem-sucedida campanha de vacinação no país -, que reconhece em Dom João VI um rei “astucioso e inteligente”. O próprio imperador francês admitiria, do exílio, que o príncipe-regente fora o único a enganá-lo.

"Dom João gostava muito do povo brasileiro, vivia nas suas quintas no Rio e tinha uma relação muito afetuosa com o país. Volta muito contrariado para Portugal, por conta das revoltas liberais no Porto em 1921. Com as invasões napoleônicas, havia o risco de Portugal ser completamente absorvido pelas forças francesas ou pela coroa de Castela - algo que os portugueses temiam desde a Guerra da Restauração”, explica Alexandre Sugamosto, professor de Ética e Filosofia Corporativa e Doutorando em Ciências da Religião (PUC-Minas).

Os “cancelamentos” da monarquia

A propaganda napoleônica, contudo, não foi a única a moldar o imaginário brasileiro sobre Dom João VI e outras figuras do período colonial. Após o golpe de 1889, houve um esforço deliberado por parte dos republicanos de “desconstruir” a imagem do império, que ainda contava com ampla popularidade. “A proclamação da república foi um evento muito estranho no Brasil, passaram-se meses até que o povo soubesse que havia acontecido”, lembra Sugamosto, fazendo referência ao ensaio “A Formação das Almas”, do historiador José Murilo de Carvalho, que se debruça sobre a construção do imaginário nacional depois do exílio da família imperial.

"Aprofundando a investigação, verifiquei que (...) também houve entre nós a batalha de símbolos e alegorias, parte integrante das batalhas ideológica e política. Tratava-se de uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos. (...) A manipulação do imaginário é particularmente importante em momentos de mudança política e social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas", escreve Carvalho.

Quase trinta anos após a publicação do ensaio, novos ideólogos trabalham pela manutenção da verve maniqueísta que marca quase tudo o que é atualmente lido e ensinado sobre a presença portuguesa no Brasil, retratada como estritamente exploratória e nociva.

“Essas alas progressistas que percebem a monarquia como colonizadora esquecem que a relação da Coroa portuguesa com o Brasil é muito complexa e inédita - foi a primeira vez na história que a sede de um império passou para a colônia. É claro que a vinda da corte coloca outras questões em cheque - os novos impostos, o modelo de administração e da Coroa, os gastos que ela produz para os brasileiros que já estavam aqui. Com o tempo, tudo isso começa a fomentar o movimento independentista. A gente não precisa ter uma avaliação moral sobre essa manobra, mas ela foi, sob o ponto de vista diplomático e tático, inteligentíssima, a ponto de conseguir salvaguardar a unidade do império português”, defende Sugamosto.

"Se a corte não tivesse permanecido 13 anos no Rio de Janeiro, provavelmente o Brasil não teria conservado as suas fronteiras e a dimensão continental que tem hoje. Veja-se o que aconteceu à América espanhola que se separou em várias repúblicas, enquanto o Brasil ficou unido como povo e nação. Prefiro acreditar que os dois países têm uma história em comum ao longo dos séculos que deve ser preservada. Foi graças ao Brasil que Portugal pôde garantir a sua independência face à agressão napoleônica. Também foi graças à permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro que o imperador D. Pedro pôde declarar a independência do Brasil em 1822, cerca de um ano depois da viagem de regresso de D. João VI a Lisboa", complementa Ferreira.

Nada impede, afinal, que na personalidade do filho de Dona Maria I tenham convivido o apreciador de coxinhas de frango um tanto inseguro e o estadista audaz que deu início a uma empreitada sem precedentes. Uma década após a proclamação da República, Oliveira Lima o descrevia como um “rei popular”, visto pela população com “uma certa dose de reconhecimento, um poucochinho de compaixão e uns toques de protecção”, insistindo que “é muito mais justo considerar a trasladação da côrte para o Rio de Janeiro como uma intelligente e feliz manobra politica do que uma deserção cobarde".

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