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Uma mulher com uma burca é vista em um campo de refugiados em Cabul, Afeganistão.
Uma mulher com uma burca é vista em um campo de refugiados em Cabul, Afeganistão.| Foto: EFE / Hedayatullah Amid

Uma reportagem publicada pelo jornal britânico The Guardian descreve cenas de horror nas ruas, nas primeiras horas deste domingo (15), em Cabul: meninas fugindo dos dormitórios das universidades, evacuados pela polícia após a chegada do Talibã. "Eles bateriam em todas as mulheres que não usassem a burca", relata a repórter. Motoristas de ônibus se recusavam a transportar mulheres para não se comprometerem diante dos terroristas. Gritos de homens nas ruas prenunciam o futuro próximo: "são seus últimos dias nas ruas", "eu vou casar com vocês quatro num dia só".

O temor das afegãs foi registrado em múltiplos episódios estarrecedores na imprensa internacional. Ao atender, no ar, a ligação telefônica de um representante dos terroristas, a apresentadora afegã da BBC pressionou-o sobre o retorno das punições físicas para mulheres. "Ainda não posso dizer", respondeu o entrevistado, prometendo uma "transição pacífica de poder, de acordo com a lei islâmica".

O relatos parecem extraídos de uma distopia, mas é coerente com o histórico do Talibã com as mulheres. Desde que tomou o poder no Afeganistão, em 1996, o grupo terrorista implementou a sharia, a lei islâmica, em sua versão mais rígida: mulheres eram obrigadas a cobrir todo o corpo e só podiam sair de casa na companhia do marido ou de um parente do sexo masculino.

Nada de escola, trabalho fora de casa — com exceção de algumas médicas e enfermeiras — ou direito ao voto. O açoitamento não estava previsto apenas para as que estudassem às escondidas: bastava sair às ruas com os tornozelos à mostra. As adúlteras eram apedrejadas até a morte — não raramente, condenadas com base em testemunhos falsos.

O cenário começou a mudar em 2001, quando o Talibã foi expulso da região pelo Exército americano. Três anos depois, surgia a nova Constituição afegã, segundo a qual “cidadãos do Afeganistão, homens e mulheres, têm os mesmos direitos e deveres perante a lei”. Em 2009, vieram as primeiras leis contra o casamento infantil e a violência. As meninas chegaram às escolas, às universidades e, finalmente, aos cargos de poder. Uma série de conquistas prestes a ruir.

Choque

Poucas vozes de destaque na imprensa internacional tem tanto “lugar de fala” para expressar o horror que representa a volta do grupo terrorista Talibã ao poder no Afeganistão quanto a ativista paquistanesa Malala Yousafzai, a mais jovem vencedora do Prêmio Nobel da Paz. E as palavras da menina que foi baleada na cabeça aos 15 anos por lutar pelo direito de ir à escola em um Estado dominado pelo fundamentalismo islâmico não foram brandas:

"Assistimos em completo choque enquanto o Talibã assume o controle do Afeganistão. Estou profundamente preocupada com as mulheres, as minorias e os defensores dos Direitos Humanos. As potências globais, regionais e locais devem exigir um cessar-fogo imediato, fornecer ajuda humanitária urgente e proteger refugiados e civis", escreveu a ativista.

Desde sua recuperação, Malala, hoje com 24 anos, se tornou um ícone da luta pelos direitos humanos — principalmente das mulheres. E se há uma coisa que sua história pessoal, bem como a de inúmeras ativistas vítimas do radicalismo islâmico — como a professora Yasmine Mohammed, casada à força com um terrorista da Al-Qaeda — deixa inquestionavelmente clara é a misoginia intrínseca a estes grupos terroristas, em especial, o que acaba de tomar o governo de Cabul, após a retirada das tropas americanas. Não à toa, a desastrosa operação autorizada pelo presidente Joe Biden, que rendeu imagens de centenas de afegãos correndo em desespero para o aeroporto, preocupa, especialmente, as mulheres.

Deixadas para morrer

A julgar pela situação de áreas tomadas pelo Talibã recentemente, onde aumentam os relatos de casamentos forçados e expulsão de meninas da escola, não há qualquer indício de que a promessa de "transição pacífica" será cumprida. No podcast diário do New York Times publicado nesta segunda-feira (16), uma ativista que tenta escapar dos terroristas dá o tom do desespero: "Sinto vergonha dos países que diziam estar aqui pela democracia, pelos direitos das mulheres... E agora simplesmente decidiram sair e nos deixar morrer".

Em resposta aos acontecimentos, o presidente americano Joe Biden declarou que a missão dos Estados Unidos no Afeganistão foi encerrada com a morte de Osama Bin Laden, e creditou a fragilização da situação no país ao seu antecessor, Donald Trump, que chegou a negociar um acordo de paz com os terroristas.

“Mais um ano, ou mais cinco anos, de presença militar dos EUA não teria feito diferença se os militares afegãos não pudessem ou não quisessem manter seu próprio país. E uma presença americana sem fim no meio do conflito civil de outro país não era aceitável para mim”, diz o comunicado oficial do democrata.

Estupidez e covardia

Para o veterano de guerra Paul Miller, que serviu como conselheiro para operações no Afeganistão e no Paquistão durante os governos de George Bush e Barack Obama e leciona relações internacionais na Universidade de Georgetown, a “desculpa” com ares de misericórdia do presidente americano não passa de um mito.

“Os mitos sobre o colapso do Afeganistão — de que éramos realmente impotentes e a missão sempre estava inevitavelmente condenada — nega a realidade da ação dos Estados Unidos. Nossos formuladores de políticas cometeram erros estratégicos específicos que causaram danos diretos e evitáveis, incluindo o pé no freio de Bush, o cronograma de retirada de Obama, o acordo de paz de Trump e a retirada inexplicável de Biden, cada um dos quais agravou a situação”, escreveu o especialista.

“É por isso que a afirmação de Biden de que os afegãos precisam começar a assumir a responsabilidade por seu próprio país é tão mentirosa. Ele está dizendo a um homem que está se afogando para assumir a responsabilidade por nadar enquanto retira colete salva-vidas ao qual o homem estava se agarrando (...) tudo isso enquanto prega um mito reconfortante de que não havia nada que pudéssemos ter feito, afinal. Muitos americanos estão ansiosos para acreditar nele porque é muito mais fácil, emocional e cognitivamente, acreditar no mito de nossa impotência do que na realidade de nossa própria estupidez e covardia moral”.

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