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Restrições de viagem, prateleiras vazias, fronteiras fechadas e medo. A quarentena do coronavírus hoje é como o cotidiano na União Soviética.| Foto: Odd ANDERSEN/AFP

A Ucrânia entrou em quarentena para impedir a disseminação do coronavírus.

Desde terça-feira (17), o país está completamente fechado para estrangeiros. Todo o tráfego aéreo internacional está paralisado e as fronteiras terrestres do país também estão fechadas.

Os cidadãos ucranianos que ficaram para fora foram instruídos a irem ao consulado mais próximo para tentarem um lugar num voo fretado para casa. Todas as viagens de avião, trem ou ônibus dentro do país foram suspensas.

Aqui na capital, Kiev, as únicas empresas que podem continuar abertas são mercados, farmácias e postos de combustíveis. O governo ordenou que tudo o mais fosse fechado. Escolas, academias, shoppings, cinemas, barbearias, museus. Tudo.

O governo proibiu aglomerações com mais de dez pessoas. E, numa tentativa de criar espaço nos hospitais para uma potencial enxurrada de novos casos de coronavírus, o governo proibiu cirurgias eletivas por enquanto.

Não cumprir essas determinações é um crime passível de prisão.

“As medidas atuais podem parecer duras hoje, mas daqui a duas semanas talvez agradeçamos por elas terem sido tomadas”, disse Vasyl Myroshnychenko, 39, cofundador do Centro de Imprensa da Crise na Ucrânia.

Diante da quarentena, os ucranianos correram para os mercados na segunda-feira (16) para estocar comida e outros itens de primeira necessidade. Os consumidores se digladiaram na tentativa de conseguir comprar certas coisas como enlatados e cereais.

No chamativo mercado Le Silpo, no centro de Kiev, as prateleiras ficaram vazias depois das compras dos consumidores em pânico. Foi uma loucura.

Fronteiras fechadas. Prateleiras vazias. Restrições à circulação.

Medo.

Alguns jovens ucranianos nas redes sociais compararam o isolamento causado pelo coronavírus a cenas de um filme de zumbi. Para os ucranianos mais velhos que se lembram da vida na União Soviética, contudo, essa crise toda parece... algo que eles já viveram.

“As decisões atuais do Parlamento quanto à quarentena (...) são puras medidas soviéticas para controlar a sociedade”, disse Viktor Zherditskiy, 63, um morador de Kiev.

As gerações mais velhas de ucranianos se lembram todos os dias da vida sob o domínio soviético, com suas várias restrições e privações. Eles também mantêm uma profunda desconfiança do governo em tempos de crise — uma atitude que ecoa, entre outras coisas, o desastre nuclear de Chernobyl, em 1986.

“Quando as autoridades governamentais começam a acariciar a cabeça dos cidadãos e, baixinho, tentam convencê-los de que tudo ficará bem, já começo a ficar preocupado”, disse Sergiy Tsyhipa, 58, veterano do Exército Vermelho e ex-soldado das forças de operações especiais.

Expectativas

Para os millennials ucranianos, contudo (isto é, para quem a União Soviética não é uma lembrança viva), a quarentena do coronavírus é algo extraordinário e sem precedentes.

“Na minha opinião, o vírus não é o maior problema”, disse Igor Didenko, 31, morador de Kiev. “Hoje em dia, o maior problema é o pânico, e esse pânico gera problemas sérios para nosso povo. Como o aumento nos preços dos alimentos e remédios”.

Os mais jovens estão acostumados a mercados cheios de coisas nas prateleiras, onde você é capaz de comprar praticamente tudo o que encontraria num Whole Foods ou Trader Joe’s nos Estados Unidos. Os jovens ucranianos estão acostumados a lojas de marcas famosas, produtos da Apple, cinemas IMAX e à conveniência da Uber e Uber Eats.

Tudo isso existe em Kiev hoje em dia.

Os millennials ucranianos se acostumaram a certo padrão de vida ocidental. Eles cresceram assistindo a muitos dos mesmos programas de TV e filmes e ouvindo praticamente as mesmas músicas dos jovens norte-americanos.

Nessa era globalizada, nada disso é necessariamente incomum. Mas é decididamente algo bem diferente da época soviética, quando era ilegal ter um disco de rock ocidental comprado no mercado negro.

Os jovens ucranianos estão acostumados a muitas das liberdades e oportunidades que nós, cidadãos norte-americanos, consideramos normais. A liberdade de viajar também se tornou motivo de expectativa.

Em 2017, a União Europeia aprovou a isenção de vistos para os cidadãos ucranianos. Antes disso, os ucranianos tinham de gastar centenas de dólares em processos complexos para obter vistos e viajar pela Europa. (Os russos ainda se submetem a isso, por sinal).

Hoje em dia, porém, graças à decisão da União Europeia, os ucranianos podem simplesmente entrar num avião quando vem entenderem e visitar o Velho Continente.

Entre os jovens ucranianos, tornou-se um sinal de honra encher o Facebook e Instagram com fotos de suas escapadas europeias. Os ucranianos mais velhos mal conseguem acreditar. Para eles, um acesso tão fácil assim à Europa era impensável em sua juventude.

Assim, para os ucranianos mais jovens o isolamento causado pela covid-19 os está expondo ao estilo de vida de seus pais e avós — não só durante a era soviética, mas também depois da dissolução da URSS, em 1991.

A vida nos anos 1990, por sinal, não foi muito mais fácil do que durante a Guerra Fria. Houve quase uma década de anarquia depois do colapso soviético. Foi uma época de colapso econômico e social.

Na verdade, na década de 1990 a população da Ucrânia e sua produção industrial diminuíram mais do que durante a Segunda Guerra Mundial, quando o país foi palco da batalha mais mortal na guerra mais moral da história.

Era preciso adotar uma mentalidade do tipo “os mais fortes sobrevivem” para sobreviver na Ucrânia nos anos 1990, à medida que a economia implodia e os criminosos controlavam o governo. Quando os bancos foram privatizados, muita gente perdeu todas as economias.

Como na era soviética, a década de 1990 deixou uma marca permanente em muitos ucranianos. Você percebe isso hoje na fila do mercado, quando pessoas de certa idade avançam como se o caixa fosse fechar a qualquer momento.

Ou no aeroporto de Kiev, quando alguns ucranianos formam fila no portão de embarque mais de uma hora antes do horário — como se eles fossem acabar impedidos de embarcar no avião se não estivessem nas primeiras posições da fila.

Hoje, com o isolamento causado pelo coronavírus, as gerações mais velhas estão se lembrando da época de dificuldade que tiveram de enfrentar e que moldou para sempre seu modo de pensar.

“O coronavírus é outra catástrofe para nosso país”, disse Tsyhipa, o veterano do exército soviético.

Por que lutamos

Para os ucranianos mais jovens, essa crise toda tem lhes ensinado contra o que eles lutam desde 2014. Afinal, foram os millennials ucranianos que conseguiram derrubar o regime pró-Rússia de Viktor Yanukovych durante a Revolução de 2014.

Depois que a Rússia invadiu o país, foram os jovens que se revoltaram e lideraram um esforço de guerrilha. Sem uma máquina de propaganda, eles se reuniram em batalhões civis de voluntários, foram para o fronte oriental e obrigaram as tropas russas a recuar.

Aqueles jovens ucranianos lutaram quando viram que sua pátria estava em perigo e conquistaram a independência do país. E, nos palácios do governo em toda a Ucrânia, os jovens também lutaram contra a corrupção.

Na Ucrânia de hoje, pedestais vazios marcam os lugares onde havia estátuas soviéticas de Lênin. Todas as ruas e cidades que tinham nomes soviéticos foram renomeadas em ucraniano. Hoje é tecnicamente ilegal tocar o hino soviético na Ucrânia, assim como hastear a bandeira da foice e martelo.

Os jovens ucranianos sonham com uma vida melhor e eles têm provado que são corajosos o bastante para lutarem por isso. Eles sabem por que estão lutando — isso está claro.

E hoje, graças ao isolamento causado pelo coronavírus, eles entendem um pouco melhor contra o que estão lutando.

Sim, a pandemia de covid-19 passará e a vida continuará. As fronteiras e lojas serão reabertas, as pessoas voltarão ao trabalho e as prateleiras dos mercados voltarão a ficar cheias.

Mas a vida é mais doce no momento em que você percebe que pode perdê-la. O mesmo serve para a liberdade e as oportunidades.

Os norte-americanos talvez percebam como a vida está mudando para eles durante a crise do coronavírus, mas também podem notar que têm sorte de serem norte-americanos. Porque a quarentena do coronavírus hoje é como o cotidiano na União Soviética.

Lembre-se que um vírus microscópio não é a única forma capaz de fazer com que percamos nossa liberdade e os frutos da nossa vida democrática. Somos perfeitamente capazes de fazer isso por nós mesmos, com ou sem a ajuda da Mãe Natureza.

Nolan Peterson é ex-piloto e combatente no Iraque e Afeganistão, além de ser correspondente internacional do Daily Signal na Ucrânia.

© 2020 The Daily Signal. Publicado com permissão. Original em inglês
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