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Ricardo Álamo: de protagonista de novela a motorista ocasional de Uber | Reprodução
Ricardo Álamo: de protagonista de novela a motorista ocasional de Uber| Foto: Reprodução

Hugo Chávez era uma espécie de celebridade. Durante seus 15 anos na presidência ficou conhecido dentro e fora da Venezuela com seu discurso incendiário "anti-imperialista", suas visões "socialistas", suas supostas conquistas no progresso social e "felicidade" coletiva, e seu uso do talão nacional de cheques para a filantropia política daquelas que constroem percepções e ganham apoio. 

O chavismo teve detratores e fanáticos; alguns internacionalmente famosos como Sean Penn, Oliver Stone, Jamie Foxx e Diego Armando Maradona, todos seduzidos pelo romantismo do marketing da "esquerda", ou pelos petrodólares venezuelanos. Em todos os casos, o relacionamento foi simbiótico: o retrato conjunto em troca do prazer da irreverência. Ou patrocínio. 

Mas o envolvimento das celebridades no mundo político nem sempre é transacional. Para celebridades em qualquer campo, atores, atletas, músicos, comediantes ou apresentadores de TV, o chamado para tomar uma posição, usar sua própria notoriedade, a plataforma de seguidores, e a capacidade de influência para apoiar causas, repudiar atrocidades e adicionar vontades é cada vez mais imperativo. 

Esse uso da atenção e do foco das câmeras para um "fim superior" é um fenômeno muito visível nos Estados Unidos, onde as celebridades confrontam-se publicamente com políticos em questões como saúde pública e imigração, e os atletas da Liga Nacional de Futebol (NFL) protestam contra a violência policial, se ajoelhando no início dos jogos durante o hino nacional. Isso lhes valeu o repúdio do presidente Trump, que os considera desrespeitosos com os símbolos patrióticos e se referiu a eles depreciativamente.  

Se envolver nos problemas que afligem o mundo tem um custo. Não fazê-lo também. A Venezuela e sua própria polarização política não escapam a essas dinâmicas. Muito antes do confronto público entre Trump e as celebridades no Twitter, antes da soma de apoios em um lado ou outro da polaridade (mais para o lado de Hillary Clinton do que Trump) durante a campanha presidencial de 2016, já existia na Venezuela a divisão em grupos, o julgamento e a expectativa da opinião pública, a voz levantada contra o chavismo e suas injustiças, e a chantagem, retaliação e ofensas pelos egos e sensibilidades políticas feridas por dissidentes famosos.  

Para baixo com o entretenimento e a televisão 

O chavismo declarou guerra aos meios de comunicação independentes desde que as críticas contra ele começaram a ser massificadas. Através de leis restritivas e controladoras de conteúdo, transmissões forçadas de dircursos presidenciais, e o fechamento e compra de mídia, a ditadura tem procurado silenciar a dissensão e ampliar sua própria voz. A chamada "hegemonia comunicacional" do chavismo não só foi contra a imprensa crítica, mas contra a indústria do entretenimento, que inevitavelmente foi afetada.  

Em 2007, Chávez fechou o canal de televisão mais antigo e mais abrangente do país, a RCTV, deixando não apenas seus proprietários, jornalistas e apresentadores de programas mais críticos, mas também atores e atrizes de telenovelas e comédias, apresentadores de programas de variedades e todo o pessoal de produção e suporte da planta sem trabalho. 

A RCTV tentou sobreviver se mudando para a televisão por cabo, mas o chavismo avançou seus regulamentos nesse setor para tirá-la desta área também. Com a RCTV, desapareceu, em grande medida da televisão, a paródia e o humor político, típico da cultura venezuelana. 

Ao longo dos anos e com muitas dificuldades, alguns artistas que atuavam na RCTV conseguiram permanecer no teatro, rádio e meios de comunicação alternativos. A produção de telenovelas, tão enraizada e próspera na Venezuela, foi praticamente aniquilada não apenas pelo fechamento e neutralização de mídia crítica, mas por refletir uma realidade diária contraditória da narrativa chavista.  

Essa situação precipitou o êxodo e o exílio de praticamente todo o talento venezuelano que não conseguiu sobreviver fora da tela. Alguns encontraram nichos nas estações de televisão da região latino-americana, ou em Miami, mas outros tiveram caminhos mais difíceis. O ator Ricardo Álamo, protagonista de novelas de fama mundial como Juana a Virgem (transformada na série americana Jane the Virgin), e muito criticado pelo chavismo por suas posições sobre o país, tem sua própria empresa de produção em Miami, mas sobrevive como motorista ocasional da Uber também. 

Oposição X Chavismo 

A grande maioria das celebridades venezuelanas, mais cedo ou mais tarde, tem tomado posição visivelmente em relação à situação do país. Alguns mais enérgicos, outros mais sutis, mas quase todos contra o chavismo. No marco das eleições presidenciais de 2013, após a morte de Chávez, celebridades e artistas venezuelanos se reuniram para um ato de apoio ao candidato opositor Henrique Capriles. Uma das principais oradoras foi a atriz Gledys Ibarra, amplamente conhecida e com uma trajetória de mais de 30 anos na televisão venezuelana. 

“Eu trabalho com a mesma paixão e com o mesmo respeito pelos seguidores do governo e pelos da oposição. Mas quando eu tenho que ir ao mercado e não há o que eu vou procurar, quando eu tenho que encontrar remédios para minha família e não consigo, deixo de ser uma atriz e simplesmente sou uma venezuelana a mais”, disse ela no evento. 

Atriz Gledys Ibarra é uma das apoiadoras de Henrique Caprilles, opositor de MaduroReprodução

Desde antes da brutal repressão do protesto cidadão na Venezuela, celebridades internacionais, como o cantor de salsa Willie Colón, já apoiavam a luta democrática contra o chavismo. Colón também compôs uma música chamada "Mentira Fresca" dedicada a Maduro. 

Em 2007, o chavismo proibiu um show do cantor espanhol Alejandro Sanz em Caracas por ele ter dito que não gostava de Hugo Chávez. Sanz tem feito várias declarações públicas em favor do povo venezuelano e contra a ditadura. 

A ditadura, além de proibir shows, usar o poder estatal para cancelar programas de televisão (como o programa do comediante e apresentador opositor Luis Chataing, em 2014), proibir peças de teatro de atores opositores, e colocar anúncios em agências públicas que afirmam “Aqui não se fala mal do Chávez”, responde criando grupos e fatores “à sombra” quando se sente atacada

Se um candidato da oposição ganha um governo, o chavismo cria um governo “à sombra” nessa localidade. Se a oposição obtém maioria no poder legislativo, o chavismo impõe uma assembleia constituinte. O mesmo aconteceu com os artistas. O chavismo formou uma "coalizão" de artistas composta por um punhado de celebridades com motivações amplamente questionadas pela opinião pública. 

Entre os mais questionados está o antigo apresentador de show de jogos da fechada RCTV, Winston Vallenilla. No momento do fechamento em 2007, ele disse que, apesar de não ter uma tendência política, a Venezuela estava sob “um mau governo”. “Não podemos permitir que a liberdade de expressão seja cerceada o a mídia seja fechada” disse. Hoje, Vallenilla é o presidente da Teves, o canal de televisão público de baixa avaliação com o qual o chavismo substituiu à RCTV.

Apresentador Winston Vallenilla se posicionou contra Maduro, mas hoje faz parte da coalizão chavistaReprodução

Outro artista que decidiu integrar a coalizão chavista é o ator e cantor Roque Valero. Tanto Vallenilla quanto Valero são confrontados publicamente por seus colegas e repudiados nas redes sociais e, às vezes, na rua. Vallenilla foi candidato do chavismo para a prefeitura do município de Baruta em 2013, e Valero é membro da constituinte de Maduro.  

Ator Roque Valero é membro da constituinte de MaduroReprodução

Ponto de ruptura: a repressão brutal do protesto 

A visibilidade e o repúdio internacional à ditadura venezuelana aumentaram com a repressão do protesto cidadão e a crise humanitária que tem levado venezuelanos à desnutrição, comendo lixo e morrendo por falta de medicamentos e suprimentos médicos. Isso atraiu a atenção, reação e apoio de celebridades nacionais e internacionais.  

O ator Jared Leto e a cantora Rihanna, por exemplo, têm pedido ajuda publicamente para a Venezuela. Atores venezuelanos e celebridades no exílio, como o cantor Nacho (a quem o governo invalidou seu passaporte por ser opositor) e a apresentadora Camila Canabal (antiga companheira de programa de Winston Vallenilla), viajaram para a Venezuela em 2017 com o único objetivo de participar nos protestos. 

Outros rostos visíveis nos protestos incluem atores, apresentadores e rainhas de beleza ainda vivendo na Venezuela. Outras celebridades usaram suas redes sociais para aumentar a conscientização sobre a situação. 

Os jogadores venezuelanos de baseball da liga americana (MLB) entraram em campo com a inscrição "SOS Venezuela" pintada em seus rostos; os futebolistas da seleção nacional, a Vinotinto, publicaram um vídeo em maio pedindo o fim da repressão, a ditadura e a morte. 

Tomás Rincón, jogador venezuelano da Juventus,  mostrou uma bandeira venezuelana colocada de cabeça para baixo no final de um jogo. 

Quando Maduro usou uma versão da música "Despacito" em seus eventos de campanha pela constituinte, Luis Fonsi e Daddy Yankee protestaram publicamente. 

"Minha música é para todos aqueles que querem escutá-la e apreciá-la, não para usá-la como propaganda que tenta manipular a vontade de um povo que está chorando por sua liberdade e um futuro melhor", disse Fonsi. 

Gustavo Dudamel, o virtuoso maestro venezuelano da Orquestra Filarmônica de Los Angeles, e expoente do famoso Sistema Nacional de Orquestras da Venezuela, finalmente levantou a voz este ano após a morte de um jovem violinista do Sistema durante um protesto. A opinião pública exigia dele uma posição forte contra o governo há muito tempo. 

Dudamel estava em silêncio ou em conformidade com o chavismo, presumivelmente para não prejudicar o subsídio do governo ao Sistema de Orquestras. Após sua declaração contra a repressão, e suas opiniões contra a constituinte expressada em um artigo de opinião publicado no New York Times, Maduro cancelou a turnê da Orquestra Juvenil Simón Bolívar conduzida por Dudamel pelos Estados Unidos. 

“Bem-vindo à política”, disse ele.

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