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Apoiadores de Kim Jon-un fazem manifestação contra os Estados Unidos em Pyongyang | STR/
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Apoiadores de Kim Jon-un fazem manifestação contra os Estados Unidos em Pyongyang| Foto: STR/ AFP

Na última quarta-feira (2) o jornal Gazeta do Povo publicou, em seu site, um artigo assinado pelas jornalistas Renata Rondino e Antoniele Luciano, cujo tema central foi uma palestra que realizamos na Universidade Federal do ABC (UFABC) sobre a República Popular Democrática da Coreia, ou Coreia do Norte. 

Tendo nossas falas como base, as jornalistas partiram para uma disputa retórica contra nossas vozes… gravadas. Seria natural que qualquer jornalista interessado nos abordasse ao final da palestra, fazendo as perguntas e considerações que achasse cabíveis, como sugerimos no começo do evento a qualquer um que tivesse dúvidas ou discordâncias. Mas não foi o que fizeram.  

Felizmente, somos representantes de uma concepção de jornalismo que entendia os jornais como espaços de debate e embate aberto entre grupos e posições políticas. Assim, passamos a tratar dos pontos levantados pelas jornalistas: 

1 – Liberdade democrática 

Não tentamos “derrubar a ideia de que os norte-coreanos vivem sob uma ditadura”, mas estabelecer um paralelo com nosso país. Questionamos, de fato, o regime político em nosso país. Talvez a razão seja o fato de termos como ferramenta política somente, como a maior parte da população brasileira, o voto (que, os últimos acontecimentos demonstram, não tem grande valor objetivo, de fato) e o das manifestações (muitas vezes reprimidas com violência neste paraíso democrático em que vivemos.) 

A jornalista cita “dados da Anistia Internacional e da Human Rights Watch, que acusam a Coreia do Norte de violar brutalmente os direitos humanos” como um contraponto à ideia de que a Coreia do Norte não constitui uma ditadura (ponto que ela estabeleceu, não nós). Talvez a jornalista não tenha contato com as violações aos direitos humanos que ocorrem debaixo de seu nariz, em nosso país. Falemos de campos de trabalho e de prisões: 40% dos presos em nosso país não foram sequer julgados, somos o terceiro país que mais encarcera no mundo, atrás somente da China e dos Estados Unidos (país que ocupa o primeiro lugar no mundo, onde há trabalho forçado nas prisões, cujo governo também se preocupa muito com “direitos humanos” na Coreia do Norte). A superlotação impera, com 372 mil vagas para 622 mil presos. Ora; o artigo no fim concorda com nós? o Brasil também não é uma democracia? 

2 – Coesão do povo 

André Ortega não "defendeu a existência de uma coesão, de viés socialista, entre o povo da Coreia do Norte". Na verdade, aparentemente a autora do artigo sequer compreende o termo coesão e o confunde com a ideia de consenso. Apontar a coesão na Coreia do Norte é simplesmente apontar um fato descrito por acadêmicos como Andrei Lankov (The Real North Korea: Life and Politics in the Failed Stalinist Utopia), Sung Chull Kim (sul-coreano, North Korea under Kim Jong Il) e Bruce Cummings (Korea's place in the sun, North Korea: Another Country, Corporatism in North Korea). 

Já é amplamente reconhecido, inclusive na mídia, que Shin Dong-hyuk, de “Fuga do Campo 14” mente, e que ele reconheceu como verdadeira a exposição que o regime norte-coreano fez de sua pessoa em um documentário. 

Uma pesquisa simples já informa isso. O The Guardian, por exemplo, possui pelo menos duas matérias a respeito. Em uma destas, um outro suposto fugitivo de um “campo de trabalho” da Coreia do Norte, Kim Yong-soon, declara sobre Dong-hyuk que “nós não devemos culpar os fugitivos, mas devemos ser cuidadosos quando vemos fugitivos falando de forma incoerente, inventando coisas e mentindo para se tornarem mais valorosos. Não estou dizendo que Shin é um cara ruim. Ele sofreu quando jovem. Mas eu espero que na comunidade de fugitivos haja somente honestidade, sem mentiras em troca de dinheiro”, o que reforça o que dissemos em nossa palestra: há um mercado para notícias bizarras sobre a Coreia do Norte. 

As autoras querem usar como fantoche a figura de um "ativista" que é, no mínimo, mentiroso confesso e que teve o centro da sua história refutado, que retirou publicamente a sua história fantasiosa precisamente quando seu pai apareceu na televisão coreana, refutando a fantasia sobre "dívida de sangue" familiar e campos de concentração. 

Não é preciso ler mídia independente, como a revista Opera, para descobrir o que pode ser encontrado no Guardian, por exemplo. É muito fácil se utilizar de um mentiroso que diz coisas aceitáveis no imaginário do senso comum sobre a Coreia do Norte e comprometer nossas reputações no processo - difícil é fazer um trabalho sério e crítico como o nosso, a custa de ataques gratuitos e ridicularização pública. A mãe do “ativista” também está viva, e desta maneira o artigo do Gazeta configura mais uma proeza midiática de atribuir aos norte coreanos o poder da ressurreição (como ocorreu em outros casos - e nós que somos apologetas?) 

3 – Governo moderado 

Ninguém afirmou que o "regime" é moderado, o que inclusive não teria sentido: o que foi dito, um tanto de passagem, é que existem diferenças nos discursos das elites políticas de acordo com interesses institucionais, e que, dentre esses, os membros do gabinete e a chancelaria são os mais moderados, pelo menos no seu discurso. Isso é especificamente tratado no livro "Inside the Red Box", de Patrick McEachern, por exemplo.  

Quando as autoras afirmam que “a diplomacia já estaria perto do limite”, em função de uma declaração do líder norte-coreano Kim Jong-Un sobre o alcance de seus mísseis, revelam limpidamente seu desconhecimento sobre a questão coreana (ou, ainda, sobre os princípios básicos da política). O uso de testes de mísseis ou da tensão diplomática como moeda de barganha por parte do país não é apontado somente por acadêmicos como Paulo Visentini, mas também por figuras insuspeitas como o estrategista militar e consultor do Departamento de Estado norte-americano Edward Luttwak. 

 É natural que os norte-coreanos persigam seus interesses, sobrevivência e soberania. Uma descrição mais ampla da estratégia norte-coreana e o fracasso completo da estratégia dos Estados Unidos de isolar, sancionar e esfomear o país asiático está no livro (norte-americano) organizado pelos acadêmicos Suk Hi Kim, Terence Roeherig e Bernard Selinger, The Survival of North Korea - o livro traz uma análise inteligente e realista dos interesses do pequeno país, a lógica por trás da sua atuação, o tamanho de seu papel na Ásia e principalmente a necessidade de se construir negociações que até então o radicalismo dos norte-americanos impediu (acreditaram que seria fácil, não aceitando que o problema norte-coreano é de longo prazo). Não fosse por isso, é inclusive certo que mais reformas já teriam ocorrido no regime (apesar de não podermos dimensionar a profundidade do que não conseguiram fazer). Em 2009, a administração Obama na prática reconheceu o fracasso da política linha dura ao anunciar os avanços "preocupantes", ("muito superiores ao Irã") que a Coreia havia feito no seu programa nuclear a despeito do estrangulamento. 

A situação é a seguinte: os norte-coreanos elevam o tom, o governo norte-americano finge se escandalizar, os grandes veículos tratam dos “perigos” da Coreia do Norte e as jornalistas brasileiras tomam para si e reproduzem o discurso norte-americano, ingenuamente. 

No mundo do reflexo condicionado dos animais pensantes, “norte-coreano” deve ser seguido pela palavra "ameaça". A grande paranoia de certos setores midiáticos é que ao mesmo tempo que querem reafirmar a ameaça coreana, frequentemente querem apontar o seu atraso e debochar dos testes de mísseis. De fato, é ridículo pensar que a República Popular realmente represente uma ameaça direta para os Estados Unidos. A pequena marinha mal consegue sair da costa e, inclusive se conseguiram um lançador transcontinental, o país simplesmente não tem condições balísticas. Poderia, sem armas nucleares, destruir Seul, mas não existe interesse objetivo nisso; seria um ataque unilateral e completamente inconsistente com interesses ideológicos ou pragmáticos, culminando na destruição do regime por uma coalizão que incluiria russos e chineses. Isso só é "possibilidade" na narrativa mitológica de quem ao invés de estudar quer viver num mundo de conto de fadas em que o país asiático é dominado por loucos - às custas de quem lê Luttwak e Cummings para entender o país, não Barbara Demick e outras obras feitas para entreter leigos. Outro reflexo condicionado é martelar em nossas consciências, de forma incessante, que o país é uma desgraça, para justificar uma agressão contra seu povo como aceitável. 

4 – Sem isolamento 

Ao se referirem à questão cultural, as autoras misturaram um relato de viagem real no final da palestra (sobre os norte-coreanos gostarem muito do grupo sueco ABBA) com um recurso retórico do início da fala, que referia-se ao fato dos norte-coreanos terem os Estados Unidos como "o diabo". O ponto de partida está no histórico do país com o colonialismo japonês e depois com a guerra dos norte-americanos - os Estados Unidos mataram 1/4 da população norte-coreana e destruíram quase todas suas zonas urbanas. 

O artigo diz neste trecho que, “segundo nós”, o que haveria “é uma preocupação com a penetração de outras culturas.” Trata-se de uma distorção clara, que corrigimos com as exatas palavras de Pedro Marin (não de André Ortega, como cita a matéria): “Se tem uma situação na qual o governo norte-coreano tem uma preocupação, aliás, desde a década de 50, uma preocupação cultural com a penetração cultural no país, não uma penetração no sentido de ‘vamos nos isolar de tudo o que existe’, mas [da concepção] de que existe uma cultura reacionária e uma cultura popular nos outros países, e que o que deve ser feito é se aproximar da cultura popular dos outros países evitando incorporá-la mecanicamente, mas entendendo ela e tudo mais, e rejeitar a cultura reacionária. Então de certa forma de fato existe um isolamento cultural.” 

Quando afirmamos que “somos isolados, ao nosso modo”, não se trata de uma mea culpa ou um recuo; de fato, as jornalistas poderiam ter um esclarecimento produtivo sobre esse ponto se tivessem nos abordado ao final da palestra, em especial em um país que não lê Lima Barreto, Castro Alves ou Drummond, mas que transforma “Cinquenta Tons de Cinza” em best-seller, onde a produtora Vera Cruz morre, mas os blockbusters norte-americanos geram gordos lucros aos cinemas, onde se cita Barbara Demick sem se conhecer Paulo Visentini. 

5 – Se a Coreia do Norte é um inferno, nós também vivemos em um 

Por fim, ao contrário do que o artigo estabelece, “a conclusão da palestra” não foi a de que “tudo o que se sabe sobre a Coreia do Norte [...] seria resultado de uma ‘manipulação midiática’ articulada por grandes veículos de informação.” A palestra não tinha como objetivo “chegar a uma conclusão”, mas colocar em debate a realidade norte-coreana e contrastá-la com a nossa. É uma premissa simples: será que o escarcéu midiático feito em relação a um país separado de nós por 17 mil quilômetros não caberia à nossa própria realidade? É de fato sintomático que ao começo da palestra uma aluna tenha denunciado os casos de estupros na universidade, pauta que foi ignorada em virtude do artigo publicado pelo Gazeta. 

Quatro por cento de nosso povo é completamente analfabeto, ainda em 2017, 23% dele consegue ler, mas não é capaz de interpretar um texto, 42% está no nível rudimentar; conseguindo somente fazer pequenas inferências aos textos, 14,2 milhões de brasileiros estão desempregados, 8 milhões vivem na miséria (com uma média de R$ 73,16 per capita), quase 26 milhões estão abaixo da linha da pobreza (com uma média de R$ 161,96 per capita). Cinquenta por cento dos lares do Brasil não têm acesso à coleta de esgoto.

Em um ranking sobre a eficiência dos sistemas de saúde pelo mundo, feito entre 48 países, o Brasil ficou em último lugar. Os níveis de violência urbana são alarmantes; morrem mais pessoas em decorrência de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte decorrente de ações policiais no nosso país do que morrem na Síria, em decorrência da guerra. 

Tratemos da política; nosso presidente, que há pouco foi livrado das denúncias que todos conhecemos pelo Congresso, é aprovado por apenas 4% da população (e ainda assim segue confortavelmente sentado em sua cadeira), os partidos políticos são as instituições mais desprestigiadas do país (atrás somente do Congresso, do Presidente, do Governo Federal e do sistema eleitoral, vejam só) e, se o discurso quanto ao “controle hereditário” do poder na Coreia do Norte é tão frequente, nos perguntamos porque não é também tão frequente aqui no Brasil, já que, de acordo com a ONG Transparência Brasil, metade dos deputados eleitos em 2014 tinham algum laço familiar com outro político (no Rio Grande do Norte chegamos ao impressionante número de 100%). 

Estamos falando de um país de proporções continentais, com gigantes extensões de terras férteis, com uma riqueza natural de fazer inveja a todos os países do globo, com uma costa marítima enorme. Um colosso que, sem dúvidas, poderia constituir uma autarquia com relativa facilidade. Mas, no lugar disso, constitui um enorme campo de barbárie e obscenidades. É este o tema central de nossas falas, e é disso que tratamos quando falamos (a fala é de Pedro Marin, não de André Ortega, mais uma vez) que pode-se achar a Coreia um inferno, mas há de se reconhecer que vivemos em um inferno também - inferno que não é visto pelas lentes de tantos jornalistas, aparentemente. 

É importante, enfim, ressaltar alguns pontos, em função do desrespeito evidente do artigo: estudamos profundamente a Coreia do Norte. Ortega esteve por duas vezes no país, Marin realizou uma pesquisa durante um ano sobre o tratamento que a imprensa de nosso país dá à República Popular. Nós, da revista Opera, enxergamos nosso trabalho como um compromisso, uma missão séria, e não aceitamos que ele seja difamado pela falta de cuidado e preguiça. Primeiramente temos um comprometimento ético de expor a fábrica de mentiras a respeito do país, que é criada para vender jornais, e se mantemos uma posição política, é a de reafirmar a posição contra qualquer tipo de guerra ou provocação contra o país, independente do seu sistema político. Guerra que poderia custar centenas de milhares e até milhões de vidas humanas, como já ocorreu de fato na Guerra da Coreia.  

A propósito, Ortega de fato disse que não defende a derrubada do regime: nos perguntamos se é o que as jornalistas defendem. São elas, afinal, as radicais revolucionárias?  

Obras como a de Suk Hi Kim deixam claro como até então existe uma lógica estatal na atuação norte-coreana e que uma dissolução destrutiva do Estado naquele país poderia culminar não só numa guerra civil na região, arrastando o sul, mas no surgimento de senhores da guerra nucleares ou da explosão descontrolada de um mercado negro armamentista. McEachern é outro que estabelece que até então existe uma racionalidade estatal controlada pelo conflito entre agências oficias (e não senhores de guerra). O que querem os jornalistas inteligentes? Uma nova Líbia, uma nova Ucrânia? A política de estrangulamento já demonstrou que pode piorar a situação humanitária do ponto de vista alimentar, já uma dissolução do estado provavelmente implicaria na piora da situação dos direitos humanos. 

Se não por uma questão de moralidade, que seja por uma questão prática: basta estudar o mínimo para saber que a destruição da Coreia do Norte - seja por guerra ou seja por sufocamento - é ruim para todo o mundo, levaria toda a península à falência e prejudicaria a segurança econômica e energética de toda região, sem contar efeitos euroasiáticos e globais. Nossas canetas não sustentarão bombas, e é uma lástima que as de outros jornalistas brasileiros o façam: antes que sejam todos, mas nós não.

(*) Pedro Marin e André Ortega são jornalistas da revista Opera.

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