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Ao contrário do que diz a narrativa que impulsiona os protestos vioentos, os números mostram que casos como o de George Floyd são exceção, não regra.
Ao contrário do que diz a narrativa que impulsiona os protestos vioentos, os números mostram que casos como o de George Floyd são exceção, não regra.| Foto: AFP

Depois da morte de George Floyd, que estava sob custódia da polícia de Minneapolis — morte que, pelo vídeo, parece ter sido o caso do uso excessivo e injustificado da força policial —, arruaceiros botaram fogo em cidades dos Estados Unidos, destruindo propriedades e atacando os policiais. Para muitos, esses distúrbios civis são surpreendentes. Não deveriam ser.

A polícia é alvo de uma campanha venenosa de décadas, campanha essa que pinta a polícia como uma engrenagem violenta na máquina de um sistema de justiça criminal racialmente opressor. À medida que mais e mais pessoas aceitam essa narrativa, ignorando o incrível progresso alcançado no que diz respeito à tolerância racial, a questão deixa de ser se os Estados Unidos enfrentarão protestos em larga escala como os da década de 1960 — quando as acusações de racismo na força policial faziam sentido  — e se torna apenas uma questão de quando.

Muitos dos que apoiam os protestos se dizem frustrados com a atenção dada a um punhado de agitadores que pregam a violência e os saques — comportamento, dizem, que distorce a imagem de um movimento majoritariamente pacífico. A frustração deles é compreensível, mas também irônica: a narrativa que levou milhares às ruas é, em si, uma distorção. Assim como a violência que aterroriza o povo norte-americano não representa os manifestantes pacíficos que estão exercendo seu direito de expressar seu descontentamento, a violência policial retratada em vídeos que viralizaram não caracteriza a polícia enquanto instituição.

Isso não quer dizer que a polícia seja perfeita ou que os policiais jamais abusem do poder. Eles não são perfeitos e muitos sucumbem ao que pode ser uma viciante sensação de autoridade. É algo que eu mesmo já enfrentei. Isso tampouco quer dizer que não haja espaço para se melhorar a polícia, a fim de tornar a relação entre policiais e cidadãos mais segura e menos traumática. Mas, para que haja a esperança de se transpor o abismo representado pelo asfalto cheio de cacos de vidro que separa os arruaceiros dos policiais, as hipérboles destrutivas precisam ser reconhecidas pelo que elas são.

Os dados sobre o uso da força revelam o profissionalismo e o autocontrole dos policiais. Ainda assim, como acontece a respeito de tantos outros aspectos do debate sobre a reforma da justiça criminal nos Estados Unidos, o contexto e a nuance são geralmente desprezados em favor do obscurantismo e da caricaturização.

Pegue, por exemplo, o artigo escrito pela colunista Catherine Rampell, do Washington Post, no qual ela lamenta: “no ano passado, a polícia norte-americana matou mais de mil pessoas. Em comparação, na Inglaterra e no País de Gales menos de cem pessoas morreram em confronto com a polícia nas últimas duas décadas”. Apesar de os fatos corresponderem à realidade, a observação ignora as diferenças entre os países. Os Estados Unidos abrigam quase 330 milhões de pessoas, por exemplo, enquanto a Inglaterra e o País de Gales têm, somados, uma população de cerca de 59 milhões de pessoas.

A comparação também ignora as enormes diferenças na criminalidade. Com base nos dados de 2018, a Inglaterra e o País de Gales têm cerca de 726 homicídios por ano. Compare esse número com os homicídios em quatro bairros vizinhos no West Side de Chicago (Humboldt Park, Austin, East e West Garfield Park), que, em 2018, tiveram 121 assassinatos. Isso equivale a 16% de todos os homicídios na Inglaterra e no País de Gales. Uma estatística reveladora, levando em conta que a população estimada nesses bairros é de apenas 189.846 habitantes — aproximadamente 0,3% da população da Inglaterra e do País de Gales. A taxa de assassinatos nesses quatro bairros (63,73/100 mil habitantes) é 50 vezes maior do que a taxa na Inglaterra e no País de Gales (cerca de 1,23/100 mil habitantes).

Nos distritos policiais do sudoeste e oeste de Baltimore — com uma população total de 103.052 pessoas — houve 100 homicídios em 2018. Em outras palavras, uns poucos bairros de duas cidades norte-americanas respondem por 30% dos homicídios vistos em toda a Inglaterra e País de Gales — e a população total desses lugares (292.898 habitantes) representa apenas 0,5% da população da Inglaterra e País de Gales.

Esses números explicam por que os Estados Unidos têm mais conflitos fatais entre a polícia e os cidadãos do que democracias europeias com as quais o país costuma ser comparado. A taxa mais alta de uso da força também deve ser contextualizada à luz da atividade policial como um todo. Em 2018, estima-se que os policiais tenham disparado suas armas 3.043 vezes, matando 992 pessoas. Sem mais informações, é compreensível que se possa dizer que esses números sugerem que violência policial é algo comum. Mas é preciso levar em conta que, no mesmo ano, estima-se que os 686.665 policiais do país realizaram 10,3 milhões de prisões — uma fração dos mais de 50 milhões de interações (dados de 2015) entre policiais e o povo (investigações, blitz, abordagens, etc.).

Como argumentei recentemente na publicação The Federalist Society Review, mesmo que atribuíssemos cada um dos 3.043 disparos estimados para policiais diferentes, estaríamos dizendo que, no máximo, 0,4% dos policiais sacaram e dispararam suas armas em 2018. E, se supuséssemos que os tiros ocorreram durante uma prisão distinta, estaríamos dizendo que, no máximo, a polícia usou a força letal em apenas 0,003% das prisões.

Isso está de acordo com outros dados que mencionei nestes artigos há dois anos — isto é, um estudo de 2018 publicado pelo Journal of Trauma and Acute Care Surgery, que analisou mais de 114 mil prisões em três departamentos de polícia de porte médio, descobriu que mais de 99% das prisões foram feitas sem o uso da força. Em 98% dos casos em que o policial teve de usar a força, os suspeitos “não foram feridos ou tiveram ferimentos leves”.

O contexto histórico também é importante. Em 1971, a polícia de Nova York fez 810 disparos com armas de fogo, ferindo 221 pessoas e matando 93. Em 1990, esses números caíram para 307, 72 e 39, respectivamente. Em 2016, a polícia fez apenas 72 disparos, ferindo 23 pessoas e matando 9. Isso é um avanço real que seria visto com espanto por todos os que observam manifestantes insultando e jogando pedras e coquetéis Molotov nos policiais cansados e desmoralizados de Nova York.

Por mais problemáticos que sejam casos como o de George Floyd, temos de lembrar que são casos isolados. Isso não consola nem faz justiça àqueles feridos ou mortos por policiais que fazem um uso injustificável da força, tampouco para seus familiares. Mas pode ajudar a diminuir a temperatura de um ambiente inóspito para o debate saudável.

Basear o debate sobre a melhora da polícia em dados, e não em hipérboles, pode ajudar a rebater a narrativa tóxica quanto ao policiamento, narrativa essa que ganhou grande aceitação na sociedade. A persistência dessa narrativa só levará a mais destruição e anarquia.

Rafael A. Mangual é diretor jurídico do Manhattan Institute for Policy Research e editor do City Journal.

© 2020 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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