Não sei vocês, mas eu estou um pouco cansada de ler sobre “cultura do cancelamento” ou sobre as novas manias no “novo normal”, tal como de ler reportagens, análises, palpites e pitacos da esquerda, da direita, de cima e de baixo sobre “o impacto das fake news na democracia” ou sobre como as redes sociais são feitas para nos transformar em zumbis acoplados aos aparelhos de celular.
A essa altura do ano 1. d.c. (depois do coronavírus), se você não ouviu falar em nenhum destes assuntos - seja através da imprensa tradicional, de um influenciador ou de uma figurinha de WhatsApp -, é porque levou o isolamento social a sério e foi morar na roça (nada contra, inclusive, está todo mundo louco para fazer o mesmo).
Daí que por conta dessa gastura toda, pensei que assistir ao documentário O Dilema das Redes, recém-estreado na Netflix, não valeria a pena. Pois tudo o que começa a pipocar pelo Instagram dos coleguinhas jornalistas, intelectuais e cia. limitada com adjetivos como “essencial”, “necessário”, “indispensável”, em geral, dá uma certa canseira.
Um cheiro de discussão chique que vai gerar um monte de retuítes no clube da Bolinha Azul (nada contra, inclusive, quando eu crescer também hei de ter uma) e que vai passar a quilômetros do meu pai, que não usa Twitter, das minhas irmãs, que preferem o Instagram, e da minha tia, que mora com um par de gatos e para quem ter um celular é sinônimo de ter Facebook (enfim, a verdade é que a discussão sobre o distanciamento dos esclarecidos do resto da humanidade também já deu gastura, rs).
Mesmo assim, decidi dar uma chance ao novo bafafá das redes - Lindinhas, vejam só, já ocorreu há algo de quatro ou cinco polêmicas atrás - e voltei aqui para recomendar que você, leitor, possa fazê-lo também.
O enredo
Não gastarei muitas linhas descrevendo o enredo: ex-CEOs, designers, fundadores e funcionários de grandes empresas de tecnologia confessam, com riqueza de detalhes, como os ícones coloridos que povoam as telas dos nossos smartphones, com seus corações, joinhas, reticências de “digitando” e notificações barulhentas foram milimetricamente criados para prender nossa atenção durante o maior tempo possível. E o resto é conversa.
Psicólogos gabaritados como o americano Jonathan Haidt explicam como nossos humildes cérebros não estão, de forma alguma, preparados para lidar com esse frenesi de aprovação, essa necessidade humana básica transformada em uma espécie de cocaína que está levando toda uma geração aos mais altos índices de depressão, ansiedade e suicídio da história.
No fim da conversa, chegamos à política: todas essas traquitanas envolvem coleta de dados, informações preciosas que muito valem para o poder. Presos às bolhas de viés de confirmação, fomentadas pelos próprios sistemas que favorecem a proliferação de notícias sensacionalistas, distorcidas e falsas (mais “engajantes” do que as verdadeiras), somos sistematicamente manipulados por grandes corporações e governos interessados em - no que mais? - dinheiro e poder, enquanto essa corda tão etérea quanto real à qual chamamos de “sociedade” vai se esticando, arrebentando aos pouquinhos. Vai dizer que é alguma novidade?
Para não dizer que não falei das flores: também não é surpresa a presença do presidente Jair Bolsonaro entre os governos tidos como eleitos no esteio desse esgarçamento social. Convenhamos que não é como se a Netflix tivesse sido a pioneira a atirar a pedra.
O outro lado
E para que o leitor não acuse me acuse de “esquerdopata” a partir desta linha, adentro, por fim, o ponto deste texto: você pode discordar desta leitura. Pode trazer à mesa o argumento de que o fracasso da esquerda foi o que levou à ascensão da direita no mundo. Pode dizer que a esquerda também produz informações falsas e tem seu currículo de linchamentos virtuais (vide o caso recente da deputada Tábata Amaral). Mas não pode negar que as coisas estão, sim, meio viradas do avesso.
Tenho impressão, por exemplo, de que, até outro dia, o seu sobrinho meio de esquerda era só um jovem… sendo jovem, tanto quanto você o foi, rebelde à sua maneira, e não um ataque ambulante à civilização, um defensor incorrigível e inato de toda sorte de corrupção existente no mundo.
Da mesma forma, há três, quatro anos, as tias velhinhas incomodavam mais por fazer comentários desnecessários em grupos de família do que por se parecerem, de fato, com uma ameaça à democracia.
Durante as eleições de 2018, insistia com frequência que, se seu tio acredita que surrar um homossexual na rua seja menos pior do que surrar qualquer outra pessoa, duvido com força que seja o tipo de pessoa cuja companhia você apreciava até então.
O mesmo vale para o primo “petista”: tem certeza de que ele virou um babaca arrogante quando botou o adesivinho do Haddad ou ele já não fazia questão de mandar “feliz aniversário” no grupo da família? Quão duro seria o golpe nos nossos castelos morais se descobríssemos que, uau, defensores de posse de arma ou de campanhas contra o racismo podem estar preocupados com a própria sobrevivência? Como desaprendemos a dar ouvidos?
Simples: do mesmo jeito que desaprendemos a desconectar. “O Dilema das Redes”, portanto, é de uma insistência justificável (ou, “necessária”, “essencial”, “indispensável”, como dizem os especialistas). Porque a gente já sabe de várias dessas coisas. E esquece todos os dias. As manchetes sobre saúde mental, vício em telas, polarização, etc. etc. são tantas, que passam batidas entre curtidas e marcações - mesmo para mim, que sou jornalista.
Já fiz dezenas de entrevistas sobre vício em telas e, ainda assim, enquanto assistia ao documentário, dei-me conta de que massageava as palmas das mãos, doloridas nos pontos onde apoio o celular.
Mais uma? Há dois dias, um número razoavelmente reduzido de visualizações nos stories do meu Instagram me deixou preocupada. Dado que a minha renda nada tem a ver com as selfies que posto naquelas bandas, o motivo da inquietação não poderia ser outro senão o vício latente nos malditos corações e elogios. Quão mais leve eu seria se desse menos bola para essa porcaria?
C. S. Lewis, em seu magistral Cristianismo Puro e Simples, lembra que o escritor Samuel Johnson, que muito lhe inspirou, costumava dizer que “bem mais frequentemente, as pessoas precisam ser relembradas que instruídas”. E, para mim, essa é a importância de “o Dilema das Redes”: a lembrança de que, antes de nos defendermos dos chineses, dos comunistas, do Bolsonaro ou de quem quer que seja, é importante defender o que nos faz humanos.
Reitero, leitor, que você pode discordar das soluções apresentadas pelos especialistas do documentário. Mas é muito difícil negar o problema - e só teremos chance de resolvê-lo à base de muita conversa. Esse negócio cafona e fora de moda, cuja ausência nos priva de cabeças mais frias e noites mais quentes. E que nenhuma “curtida” há de superar.
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