No aniversário de 50 anos de “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, vale analisar a assustadora cena de abertura do filme. Um rosto emerge das sombras e diz: “Eu acredito na América”. A cena parece até mais assustadora agora, quando nossas principais instituições, empresas e até Hollywood defendem a descrença e a aversão aos Estados Unidos – como se vê nas mitologias destrutivas e niilistas presentes em "Spotlight: Segredos Revelados", "12 Anos de Escravidão", "Moonlight: Sob a Luz do Luar", "A Forma da Água", "Nomadland "e "Ataque dos Cães", além das subversões contidas no infame Projeto 1619.
Coppola não previu nada disso. O rosto que ele revela não é o de um Pai Fundador caucasiano e emperucado, e sim a de um mendigo sujo que desperta nossa solidariedade. Isso imediatamente amplia a definição do caráter norte-americano, a ponto de incluir variedades étnicas (ou “pessoas de cor”, na odiosa linguagem contemporânea). A popularidade de “O Poderoso Chefão” se deve também ao fato de o filme inspirar uma identificação no mundo todo. O retrato vívido que o filme faz dos Corleone, uma família mafiosa, envolve mais do que a simples crítica aos EUA capitalista ou às contradições sociais do país.
Como Coppola revelou em duas sequências necessárias, a história de ambição, sucesso e tragédia contida em “O Poderoso Chefão” atualiza a história épica da luta confusa da Humanidade em busca da felicidade secular. Don Vito Corleone (Marlon Brando) e seu filho Michael (Al Pacino) tentam fugir das sombras da servidão da classe trabalhadora e da ignomínia nacional por meio da concorrência implacável, violência e traição.
Claro que todos os países têm seus Corleone — como fica claro em “O Poderoso Chefão Parte II” e “O Poderoso Chefão Parte III”, nas quais a saga revela suas conexões com a herança cultural do Velho Mundo. A lendária crítica Pauline Kael descreveu a verdade do conceito de Coppola como “as sementes da destruição que os imigrantes trouxeram para o Novo Mundo, com sicilianos, wasps [sigla em inglês para brancos, anglos-saxões e protestantes] e judeus socialmente separados, mas juntos no crime e na corrupção política”.
Hoje, porém, no mundo pós-Guerra do Vietnã e pós-luta pelos direitos civis, a corrupção norte-americana reverbera de outra forma. Rever “O Poderoso Chefão” enquanto os Estados Unidos e Hollywood estão à beira do colapso nos faz lembrar não apenas da bússola moral que guiava Coppola (e que se perdeu no cinema atual), como também do estado risível da política mundial.
Não basta apenas revisitar “O Poderoso Chefão”, compartilhando neuroticamente do mesmo romancismo e sofrimento. O clássico de Coppola deveria inspirar os espectadores a explorarem os filmes que influenciaram “O Poderoso Chefão”, que dá continuidade à sua fidelidade aos rigores da tragédia grega, Shakespeare e até dos Evangelhos. Entre os sucessores do filme estão "Vincere", de Bellochio, "O Presidente", de Makhmalbaf, "Cadê a Minha Entrega", de Benny Boom, "Incêndios", de Denis Villeneuve, "Roubo à Máfia", de Raymond DeFelitta, "Mãe e Pai", de Brian Taylor, "Vox Luz", de Brady Corbet e "Justiça Brutal", de S. Craig Zahler.
Nesses filmes, destacando as histórias domésticas que encaram as complexidades do filme de Coppola – as experiências nas quais a confusa psiquê norte-americana rejeita certas características e demandas da vida contemporânea e resiste aos clichês dos justiceiros sociais. Esses filmes posteriores a “O Poderoso Chefão” “rejeitam o americanismo em si”, como escreveu Robert Warshow no ensaio “The Gangster as Tragic Hero” [O mafioso como herói trágico], de 1948. Eles estão em busca de algo reconhecível e até assustador da vida norte-americana – não como os personagens de “Os Bons Companheiros” ou “Cassino”, que são distorções do sonho americano, seduzindo-nos perversamente a fazermos parte do crime, traição e sadismo. Scorsese traiu a percepção ética de seu semiautobiográfico “Caminhos Perigosos", mas Coppola retomou sua abordagem dela quando “O Poderoso Chefão Parte III” trouxe para o primeiro plano a Igreja (o arrependimento de Michael” e a Ópera (a punição de Michael).
É o conflito étnico-religioso de “O Poderoso Chefão” (o contraponto entre o batismo e a guerra da máfia, como na sequência da oração no campo de batalha que Coppola criou em “Patton") que o torna uma refutação dos filmes triviais recentes de Scorsese. E aquele assustador rosto angustiado do mendigo siciliano na cena de abertura fundamenta a história num sentido ainda relevante do ideal norte-americano.
Na luta contra o avassalador anonimato da sociedade, o sonho norte-americano pode se tornar um pesadelo. Os mafiosos nostálgicos de Coppola compreendem isso melhor do que os radicais de hoje. Esses radicais preferem filmes que propõem uma visão estreita, deteriorada, emasculada e baseada na raça e no gênero da autoimagem norte-americana – o que explica o entusiasmo pela alegoria presente em “Parasita”, Bong Joon-Ho (afinal, a descrença nos Estados Unidos também alcança os que admiram o fascínio de Bong pelo potencial fascista da Coreia do Sul).
“O Poderoso Chefão” estabeleceu um padrão artístico que também é um desafio político e moral. Filmes que não encaram esse desafio são falsos – sintomas de uma decadência cultural.
Armond White é crítico cultural e escreve sobre cinema para a National Review.
©2022 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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