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A descida aos infernos, representação iconográfica que representa a vitória de Cristo sobre a morte, em uma ilustração de um saltério do século XII.
A descida aos infernos, representação iconográfica que representa a vitória de Cristo sobre a morte, em uma ilustração de um saltério do século XII.| Foto: Wikimedia Commons

Dia desses conversava com um amigo que andava muito assustado com a pandemia do coronavírus. Para tranquilizá-lo, caçoei: “Li num jornal que saiu uma pesquisa científica que garantiu que 100% das pessoas vão morrer. Só não se sabe o dia e a hora”. “Ah sim, claro”, disse ele, e riu. A afirmação nua e crua teve um efeito catártico e pudemos continuar o papo com mais leveza.

Disclaimer. Antes de continuar, peço desculpas ao leitor se o texto soar pessoal demais, mas quando é preciso escrever sobre a morte não consigo enxergar outra abordagem. Afinal, são poucas coisas que são tão particulares quanto a morte. Como disse um escritor cujo nome não recordo: “cada um morre sua própria morte”. É um fato que não podemos delegar.

Confesso que, no início da pandemia, a ideia de um vírus novo altamente transmissível e possivelmente letal circulando por aí me apavorava.

Buscava ler tudo o que podia em busca de uma informação que me tranquilizasse, mas só chegava a uma conclusão: sob quase todos os aspectos o coronavírus é um problemão.

Como numa gravura de Goya, minha imaginação produzia quimeras: “vai todo mundo morrer”, pensava. E foi aí que cheguei à mesma catarse que descrevi no início: de fato, a morte, cedo ou tarde, é inescapável. Resta apenas lidar com isso.

Apesar de vermos a morte quase todos os dias, nos filmes e novelas, no noticiário, ou mesmo quando nos deparamos com o falecimento de alguém querido, recusamos a pensar que isso nos afetaria. E mesmo quando se discute sobre a morte, frequentemente com aquele tom que oculta o sentimento de que “se fulano morreu é porque deve ter feito algo errado”, jamais falamos sobre a nossa. Mesmo com os mais íntimos ou com nosso cônjuge, muito raramente se diz “olha, eu gostaria de ter uma morte assim ou assado”.

Pensar isso é difícil. Não queremos nos deparar que um dia nossa existência terrena tenha um fim. Contudo, isso é absolutamente certo. A pandemia só veio nos lembrar disso.

Fiz então o que muita gente está procurando fazer (se o corte salarial ainda não chegou) para manter a sanidade mental após dois meses de confinamento: conversei com um psicólogo. Nesse caso com o curitibano João Paulo Borgonhoni.

“A verdade é que a morte é tão óbvia que a gente acaba a deixando de lado”, disse-me ele, “as pessoas só pensam nela quando percebem que há algo que as transcende (como um sentido superior ou Deus). Em geral a gente vive apenas no imediato, pensando só em prazeres e no próximo boleto. Mas quando a gente vê a morte como algo pessoal, isso nos obriga a pensar sobre a nossa vida e para onde ela está nos levando. É como diz Antoine de Saint-Exupéry no livro Terra dos Homens: ‘O que dá sentido à morte também dá sentido à vida’.”

Isso me fez lembrar as lições de Julián Marías, grande filósofo espanhol, que dedicou a sua vida a estudar o caráter biográfico da vida humana. Dizia ele: “o homem não é animal apenas biológico, mas principalmente histórico”.

De fato, o ser humano é o único animal que conta e inventa histórias. E as produz em profusão: mitos, lendas, contos, crônicas, romances, biografias, relatos históricos e jornalísticos. Tudo isso mostra ao homem uma série de vidas possíveis, nas quais ele pode encontrar um sentido para si.

Mas uma vida humana só pode completar um sentido quando ela chega ao fim. Todos se recordam, por exemplo, da história do “bom ladrão”, que num último gesto ressignificou toda sua vida. Se ele tivesse simplesmente ficado calado ao lado de Cristo na cruz, o sentido de sua morte seria outro. E é por isso que uma vida humana só pode ser compreendida à luz da morte.

É na juventude que as perguntas sobre o sentido da vida ganham relevância. Porque o jovem deixa o mundo de pequenas histórias infantis que dão sentido às brincadeiras para entrar numa esfera em que ele precisa perceber que suas ações têm algum sentido para si no mundo concreto. Daí tantas dúvidas vocacionais no início da juventude, como as angústias sobre que curso seguir no vestibular.

Perguntei ao psicólogo se a juventude poderia se beneficiar em pensar sobre a morte.

“Jovens em geral, respondeu-me ele, têm dificuldade em seguir valores e em ter compromisso, porque experimentam o tempo como se fosse infinito: ele acredita no mantra ‘eu posso ser tudo o que eu quiser’. Quando o tempo vai passando, ele percebe que as possibilidades vão diminuindo. Pensar na morte é, portanto, também pensar em envelhecer, pensar em envelhecer é pensar na idade que você está e perceber como você foi morrendo aos poucos para uma série de coisas, decorrentes das escolhas que fez.”

“Essas são pequenas mortes, simbólicas. Seria ótimo se os jovens pensassem ‘bom talvez eu não morra cedo, mas minha juventude logo vai morrer’. Isso certamente os ajudaria a definir melhor as hierarquias para sua vida", concluiu.

Portanto, se a pandemia nos revelou definitivamente que vamos morrer, podemos aproveitar a ocasião para rever como estamos escrevendo nossa biografia, lembrando que o último ato é o decisivo. Como nos lembra aquele verso de Mallarmé sobre o túmulo de Edgard Poe: “A eternidade o transforma enfim naquilo que ele era”.

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