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Incêndios, tornados, tempestades: apesar de tantos eventos terríveis, a natureza não está tentando se vingar
Incêndios, tornados, tempestades: apesar de tantos eventos terríveis, a natureza não está tentando se vingar| Foto: BigStock

Em agosto deste ano, o físico austríaco Fritjof Capra, autor dos best-sellers O Tao da Física e Ponto de Mutação, concedeu uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo em que denuncia: “O coronavírus deve ser visto como uma resposta biológica de Gaia, nosso planeta vivo, à emergência social e ecológica que a humanidade criou para si própria. A pandemia emergiu de um desequilíbrio ecológico e tem consequências dramáticas por conta de desigualdades sociais e econômicas”.

O geógrafo David Harvey concorda, e acrescenta, no artigo Política anticapitalista em tempos de Covid-19 , uma explicação marxista para a pandemia. “O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz num contexto de consequências não intencionais (como as mudanças climáticas) e contra as forças evolutivas autônomas e independentes que estão perpetuamente remodelando as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe um verdadeiro desastre natural”.

Esse raciocínio não surgiu com a pandemia de Covid-19. A ideia de que tudo acontece por um motivo, mesmo os desastres naturais, e que o planeta é capaz de se vingar de quem o maltrata, é recorrente e perpassa escritos de diferentes épocas e locais, do teólogo brasileiro Leonardo Boff ao ambientalista britânico James Lovelock (autor de A Vingança de Gaia). O problema é: trata-se de uma falácia, construída sobre o argumento de que o mundo é justo e capaz de se corrigir sozinho.

“Eventos aleatórios”

Falácias são raciocínios que não se sustentam, mas simulam veracidade. Neste caso, a falácia é considerar que tudo que acontece se equilibra em uma relação de causa e efeito. Coisas boas acontecem com quem é bom, coisas más a quem merece, tanto no plano individual quanto no coletivo – daí a noção de que a pandemia é resultado das supostas más ações da humanidade inteira.

A teoria da crença no mundo justo surgiu pelas mãos do professor de psicologia social americano Melvin Lemer. “Este autor iniciou os seus trabalhos em meados dos anos 60, tendo como ponto de partida a sua experiência com doentes mentais, enquanto psicólogo clínico, e com alunos de que era professor numa faculdade de Medicina”, escreve Isabel Falcão Correia no artigo “A teoria da crença no mundo justo e a vitimização secundária: Estudos empíricos e desenvolvimentos teóricos”. “Lemer reparou que os médicos do hospital desvalorizavam e culpabilizavam os doentes mentais pela situação em que estes últimos se encontravam e pelas dificuldades consequentes com que se confrontavam”.

Segundo a teoria de Lemer, “para manter a própria sanidade mental, muitas pessoas não podem se dar ao luxo de aceitar que o mundo é governado por uma agenda de eventos aleatórios”. Por outro lado, diz ele, acreditar na existência do mundo justo permite “conduzir a vida com um senso de confiança e esperança no futuro”.

Em outras palavras, “as pessoas acreditam que recebem o que merecem, ou merecem o que recebem”. E essa crença surgiria, segundo Lemer, durante a infância, quando a criança substitui o “princípio do prazer” pelo “princípio da realidade”. No lugar de buscar a satisfação imediata, passa a agir conforme conceitos morais prevendo uma recompensa maior, no longo prazo. Na medida em que envelhece, diz ele, a pessoa que acredita que fez por merecer recompensas maiores do que a vida entregou tende a sentir raiva e frustração.

O problema, como aponta Isabel Falcão Correia, é que “diversos estudos têm mostrado que as pessoas com maior crença no mundo justo tendem a culpabilizar mais as vítimas do que as pessoas que acreditam menos no mundo justo”. Ou seja, quem considera que existe um mundo justo tende a ser menos empático em relação às dificuldades alheias, e também a se tornar mais amargurado quando a recompensa projetada não chega.

Abordagem cosmológica

Para o professor de filosofia John Florindo de Miranda, doutorando pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o conceito de mundo justo abrange diferentes pontos de vista. “Existe a abordagem cosmológica ou teológica. “Se você pensa que a pandemia caiu sobre nós é porque merecemos, essa explicação se baseia numa ordem que é colocada, seja pela própria natureza ou por um criador do universo”, afirma.

“Mesmo em culturas não cristãs, como a Grécia Antiga, já notamos a associação entre a justiça e a vontade de um deus”, prossegue. “As tragédias gregas retratam diversos episódios em que os homens são punidos pela prática do mal. Ésquilo, por exemplo, mostra que Agamenon paga com a própria vida pelo erro que cometeu”.

Tradicionalmente, diz ele, a esquerda progressista aborda a falácia do mundo justo do ponto de vista das instituições, e então questiona se o Estado reproduz conceitos justos em suas ações. Há também, explica o professor, “o mundo justo do ponto de vista das ações pessoais. É quando entram as considerações psicológicas, que diferenciam a disposição de caráter dos indivíduos”.

E a explicação para a pandemia a partir da falácia do mundo justo? “Não, a Covid-19 não vai restaurar a justiça para o universo”, afirma Riley Haas em um artigo para um site inteiramente dedicado a questionar o conceito de mundo justo. “Não existe nenhum significado inerente ao vírus, e o mundo não vai se tornar mais justo só porque surgiu um ser que lentamente infecta a maior quantidade possível de humanos”. Em outras palavras, diz ele, “o vírus não se importa com o que você pensa. Ele não tem como se importar: é um vírus”.

Como diz o professor John Florindo de Miranda, “Se a justiça envolve sempre um agente voluntário e intencional, então a atual pandemia não pode ser uma ‘vingança’ ou obra de justiça da natureza contra a humanidade – pois é muito implausível pensar que a natureza é um agente intencional”.

Nova oportunidade

De toda forma, afirma o docente da UFPel, o fato de o mundo não funcionar com equilíbrio e justiça perfeitos não significa que as pessoas não devam praticar a justiça. “A justiça é algo interpessoal, obrigatório (diferentemente da misericórdia), imparcial e voluntário (quer dizer, demanda um agente)”.

Desde a Antiguidade, diz o professor, “é usual para nós concebermos a justiça como uma virtude, uma qualidade do caráter, razão pela qual é possível ser justo mesmo numa sociedade injusta e corrompida. Hoje há uma tendência de responsabilizar a sociedade pelos erros individuais das pessoas. Mas os autores clássicos nos mostram que a ideia mesma de justiça depende de uma vontade e de uma disposição pessoal para agir bem”.

Nesse sentido, diz ele, a pandemia não é um ato de vingança, mas sim “uma oportunidade de repensarmos a nossa vida”.

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