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Deixar que a narrativa pró-suicídio do Ocidente prospere ilesa, sem enfrentamento retórico, é o mesmo que desligar os aparelhos da liberdade
Deixar que a narrativa pró-suicídio do Ocidente prospere ilesa, sem enfrentamento retórico, é o mesmo que desligar os aparelhos da liberdade| Foto: Pixabay

Jonah Goldberg é um conservador outsider, o que isso significa? Que ele é conservador na medida em que entende que o Ocidente é fruto de escolhas, debates e batalhas árduas, que o que temos aqui é quase literalmente um milagre. Goldberg não parte de uma visão naturalista de direitos intrínsecos, mas da percepção de que nossos direitos e deveres são frutos de uma arquitetura histórica árdua, desenhada por mentes corajosas e absurdamente virtuosas que pensaram a sociedade com as sólidas bases do passado, rumando obstinadamente a um futuro próspero.

Nunca antes tivemos tantos benefícios materiais, liberdade política e jurídica, além de confortos medicinais e psíquicos como agora; e não conservar as vias, veias e vielas desses caminhos que nos trouxeram até estes rincões de benesses é algo puramente tolo. Ser conservador não é somente a melhor escolha política, é a única escolha social realmente viável do ponto de vista do cuidado com o acervo do legado ocidental. Acreditar que somos capazes de abandonar todo o baú histórico e filosófico do Ocidente a fim de construirmos uma sociedade nova não é tolice apenas do ponto de vista arquitetônico da empreitada, mas também do biológico, psicológico, matemático, etc. E é a partir dessa compreensão fulcral que Jonah Goldberg desenrola a sua maravilhosa capacidade de análise do mundo contemporâneo.

Com esse espírito de guardião do acervo ocidental, Goldberg escreveu o magnífico Suicide of the West: how the rebirth of tribalism, populism, nationalism, and identity politics is destroying american democracy, lançado no Brasil pela Editora Record sob o título: O suicídio do Ocidente: como o tribalismo, o populismo, o nacionalismo e a política identitária estão destruindo a democracia. Jonah é considerado pelo jornal The Atlantic um dos 50 analistas políticos mais proeminentes dos Estados Unidos, é colunista do Los Angeles Times, membro do glorioso hall do Fox News All-Stars, além de ex-editor do famoso National Review.

Seu currículo é extenso e pomposo, mas o que nos importa mesmo aqui é a sua escrita e tese; ele é considerado um daqueles escritores capazes de pegar temas extensos e chatos e transformá-los em assuntos palatáveis e assustadoramente compreensíveis. Foi assim que ele transformou em bestseller americano o seu Liberal fascism: the secret history of the american left, from Mussolini to the politics of meaning, de 2008 ‒ lançado no Brasil como Fascismo de esquerda: a história secreta do esquerdismo americano, também pela Editora Record, em 2009. Esse livro figurou por semanas, em 2008, em primeiro lugar dos mais vendidos na lista de não-ficção do jornal progressista The New York Times.

Ou seja, não é discutível a rara capacidade analítica de Jonah Goldber. Todavia, o que ele fez de novo em O suicídio do Ocidente, que achei digno de análise neste ensaio, foi mostrar como estamos deliberadamente abandonando um projeto humanístico de mais de dois mil anos, em nome de um tribalismo identitário, populista e burocrata cada vez mais destrutivo e irracional.

A ideologia de gênero sendo pautada religiosamente pelo mainstream e pelos governos, o coletivismo ideológico que abarca tanto a direita quanto a esquerda ao redor do globo, a sede incessante das grandes empresas por regulamentações estatais, a normalização cada vez mais crescente da censura a certos grupos tidos como “fascistas” e “intolerantes”, tudo isso mostra que os nossos valores ocidentais estão se corrompendo e que o foco traçado pelo iluminismo (principalmente o britânico) está cada dia mais capenga. As emoções e os impulsos primitivos do homem, unidos à sede de poder das ideologias progressistas e dos grandes conglomerados de poder, estão literalmente ganhando essa batalha contra a civilização ordeira.

Qual o problema disso? Se você for um liberal roussoniano ‒ ou seja, um progressista ‒, nenhum. Afinal, para os progressistas, o quanto mais pelado e selvagem você estiver, melhor; no entanto, para aqueles mais lockianos e ‒ por que não ‒ hobbesianos, há um problema real nisso.

A sociedade ocidental, junto com as suas liberdades, prosperidades e ciências, é parte de uma construção intencional, e não de uma epifania panteísta; e como toda construção humana, aos poucos certas ideias, paredes, instituições e alicerces começam a naturalmente se degradar, e, quando isso chega a um tal nível de perigo, as reformas precisam ser iniciadas.

Isto é uma verdade facilmente observável se tivermos um panorama da história ocidental mais ou menos arrumada em nossas cabeças. A diferença é que em algum momento pós-renascimento começamos a “inventar moda”, passamos a achar que paredes podem ser telhados, bem como ideologias fabricadas em universidades podem se tornar magicamente os alicerces das relações humanas. Tal investida construtivista da história vem se reafirmando com veemência na contemporaneidade. É contra isso que Goldberg batalha ferozmente em seu livro, o cerne do problema político atual. Precisamos entender então...

Somado à ânsia irracional e naturalista anteriormente analisada, os radicais decididamente abandonam as construções éticas e sociais do Ocidente, juntando-se à seita arrogante que cultua aquela ideia que tomei a liberdade de denominar de “cientificismo pseudocristológico”. Isto é, a doutrina que afirma que após destruirmos o templo ocidental, o reconstruiremos em poucos dias a partir de nossos tijolos identitários revestidos de militância política, que assentaremos a nova humanidade em vigas feitas de ideias inclusivas de gabinete. “O radicalismo é o romantismo levado ao extremo. Livre-se de tudo e recomece!”

Construir uma civilização requer a maturação do tempo, a liga da experiência geracional, o cozimento das tradições regadas nas maestrias de homens e mulheres geniais ‒ não inteligentes, geniais. Qualquer um que se levante com a ideia de remontar uma sociedade a partir de valores fast-food, não passa de um embusteiro perigoso. Como diria Jordan Peterson em 12 regras para a vida: “Apenas a filosofia mais cínica e sem esperança insiste que a realidade poderia ser melhorada pela falsificação”

A efetividade da análise do analista político americano está nos crescentes e inegáveis arroubos totalitários contemporâneos ao redor do mundo. É verdade que as ditaduras majoritariamente estão na conta do socialismo, mas é possível ver, segundo o analista, o movimento antidemocrático surgir também no coletivismo e no protecionismo pseudoconservador.

Fica claro no livro, no entanto, que Goldberg considera o progressismo contemporâneo o irmão gêmeo do reacionarismo. O ativista de gênero, por exemplo, o mais completo reacionário do ponto de vista dos fins que ele almeja, ou seja: uma sociedade fragmentada em tribos, sentimentalesca e utópica. O que ele chama de tribos antidemocráticas são aquelas que apostam em uma supressão das liberdades daqueles que pensam diferentes deles.

Afirmo que todas as rebeliões contra a ordem liberal do Milagre (Ocidente moderno) são de natureza fundamentalmente romântica e reacionária. Elas buscam alguma concepção moderna e futurística da organização social. Em vez disso, retornam a alguma forma de solidariedade tribal na qual estamos todos unidos. O romantismo é a voz comum a qual nosso homem primitivo interior grita: “Tem de haver uma maneira melhor” (p. 23, grifo meu).

Quando tais construções progressistas/reacionárias são levadas a sério, a própria vontade popular, como esteio da democracia, passa a ser relativizada. Basta ver os discursos que inflamaram as recentes passeatas do Black Lives Metter ou os protestos do Femen, por exemplo. As pautas tribais estão acima do que os eleitores de um país demandam como caminho a ser seguido.

Não à toa, hoje, diz Goldberg, a política funciona através de instituições não eleitas. Nos EUA, é muito notável que haja várias diretrizes nacionais que são definidas por conglomerados de burocratas não eleitos, denominado pelo autor como “Estado administrativo”; cá, no Brasil, essa função republicana alternativa, atualmente, fica a encargo do Supremo Tribunal Federal.

É a democracia apodrecendo em jantares gourmet, vestidos em trajes de gala e discursos empoderados. É a própria definição de pesos-e-contrapesos, a garantia máxima do funcionamento sadio da democracia, sendo colocada de lado em nome de pautas particulares de grupelhos atomizados, porém, paradoxalmente unidos na insanidade identitária do momento.

É claro, e nisso Michel Foucault estava irritantemente correto, tudo isso é questão de poder. A resposta para a crescente debandada antidemocrática da contemporaneidade é somente uma: a sanha pelo poder político, o controle social do debate e, por consequência, da sociedade como um todo. “Por trás de cada padrão duplo se esconde um padrão único, e não vocalizado, e, em praticamente toda campanha de política identitária, esse padrão é o poder.”

Para comprovar tal análise, basta-nos observar como ficam a grande mídia, os formadores de opinião, o dito mainstream como um todo, quando as suas ideias e conduções políticas não ganham a aderência da grande população. Enlouquecem furiosamente...

O modus operandi dos vermes corruptivos e dos engenheiros de utopias, afirma Jonah, é tão somente um: dominar o debate através da imposição ideológica e do cerceamento da liberdade do opositor. Calar previamente aqueles que se contrapõem, estigmatizá-los como hereges modernos, impuros, fascistas, antidemocráticos, intolerantes, enfim, tudo é válido. Imponham isso através de turbas, discursos populistas, através de leis transloucadas, pressões de cartilhas internacionais, não importa, a regra é clara: calem a boca dos divergentes.

Mas a busca pelo poder não é meramente reduzível ao carreirismo e ao lucro. A dinâmica mais importante, que torna tal ideologia tão atraente, é o desejo de ter autoridade sobre os outros, de controlar os termos do debate e de se estabelecer como nova autoridade sobre aquilo que é legítimo. Toda sociedade, desde a revolução agrícola, criou uma classe clerical que definia o escopo do pensamento correto e da ação correta. Durante milênios esse papel foi desempenhado pelos sacerdotes. Na sociedade moderna, o clero moderno é cada vez mais encontrado entre a autonomeada classe de acadêmicos, ativistas, escritores e artistas que alegam ter o monopólio da virtude política. Eles definem unilateralmente quem deve ser anatematizado ou excomungado por pensar de maneira errada. E os campi das universidades servem como seus mais formidáveis monastérios e cidadelas.

Tudo isso se dá, segundo Jonah Goldberg, pela intrínseca incompetência daqueles que enxergam o descalabro e, ainda que tenham ressonância retórica para defender aqueles valores fundamentais que seguram a escada, calam-se, complacentes ‒ ou interessados, talvez ‒, ostentando a já conhecida covardia que habita os mais pomposos. A lógica da crítica geral de Goldberg em Suicídio do Ocidente é relativamente fácil de compreender: se é covardia, é também deliberada, e, se assistimos deliberadamente à morte dos nossos valores ocidentais, então o descalabro não é fruto de um ataque externo, mas sim de um suicídio adubado pela fraqueza dos homens nossa era.

Quando vemos passivamente a junção de tribalismo, coletivismo, burocracia e incompetência, o único fim que podemos considerar é a morte daqueles valores que possibilitaram a humanidade desfrutar da maior prosperidade material, psicológica e científica de todas a eras.

O capitalismo é a causa de todo o conforto e liberdade que todos nós juramos defender ‒ ainda que silenciosamente, ainda que no diretório da universidade o neguemos peremptoriamente. Se, para H. D. Thoreau, é boa a vida nos bosques, só o é à medida que, no fim da sua greve, ele pode voltar para a sociedade material e organizada da qual ele jurava querer fugir.

Mas o texto não finaliza com melancolia geral, ainda que o tom geral seja esse. Há uma luz no fim do túnel, pois, segundo o autor, o próprio capitalismo gesta um sistema de expurgo de absurdos, uma destruição criativa. Tese da qual eu discordo veementemente. Ainda que o capitalismo passe por recessões para surgir pujante novamente, os valores morais não são guiados por cálculos econométricos, por mais que os economistas pensem que sim.

Os valores são mais complexos e demandam ingredientes raros e completamente alheios aos números e às análises assertivas da matemática; a história, a psicologia, e até o clima influencia os valores de uma época. Ora, um homem no passado pode ter fundado, sem saber, a conduta cavalheiresca moderna na busca de conquistar o coração de sua morena, e hoje, após milênios, ainda admiramos um indivíduo cordato que abre a porta do carro para sua esposa. O padrão de conduta de uma civilização inteira pode ter iniciado, ou ganhado relevância, a partir de um rapaz paquerador da velha Galileia, ou quem sabe de um guerreiro viking mais poeticamente sensível.

O que gestou a liberdade como valor inegociável no coração dos ingleses da Revolução Gloriosa não foi uma busca inicial por melhores meios econômicos, foi a sensação básica de que suas liberdades mais basilares estavam sendo ameaçadas por um tirano comum; e, depois de algumas batalhas vencidas, o que fez com que a liberdade política e econômica prosperasse e se espalhasse pelo mundo ocidental foi a vigilância e luta incessante dos indivíduos pelas instituições que possibilitavam tal liberdade.

A percepção que nos falta hoje, a de que seremos engolidos por uma máquina impessoal e brutal chamada Estado, de que o emudecimento tribal e a cegueira romântica são os talheres que nos levarão à boca do monstro; eram esses os tais entendimentos dos antigos que gestavam a reação contra a tirania ‒ em todas as suas formas ‒, reação essa que fechou tantas vezes no Ocidente o portão da democracia na face dos ditadores. Os valores só podem ser defendidos se o absurdo proposto como proveta for percebido, desnudado, colocado sob a luz do meio-dia, apontado como absurdo e combatido através de um debate contínuo.

Cada linha das 516 páginas Suicídio do Ocidente mostra-nos que os “milagres ocidentais”, os quais não vemos com tamanhas raízes e expressões, até hoje, em outros cantos do mundo, precisam ser preservadas dessa corrosão do sentimentalismo ideológico, do identitarismo político, dos engenheiros de utopias e do coletivismo burocrata.

Segundo Goldberg, o seu ponto é que os defensores do Milagre não podem se tornar arrogantes. Não podem baixar suas espadas retóricas e voltar para suas fazendas. Tudo que podemos fazer é defender os princípios e ideais que o Milagre tornou possíveis em nossas vidas e entregar o projeto a nossos filhos. Quando falhamos em fazer isso, quando não ensinamos nossos filhos a sentir gratidão por seu legado, eles permanecem infantis em suas expectativas sobre o que a política e a economia podem realizar (p. 130).

Na minha opinião, não se deve fazer diplomacia com a insanidade, não se deve tolerar pensamentos que deliberadamente buscam emudecer opositores; o Ocidente gestou sua liberdade naquela pouco falada, porém imensamente importante, intransigência fulcral com as ditaduras e políticas tirânicas.

Somos o Ocidente que até há pouco tempo tinha legalmente milhões de escravos, mas também somos o Ocidente que os libertou e gestou em seu cerne uma política, um código de ética e uma manta jurídica que basicamente inviabiliza qualquer proposta de retorno ao racismo como política de Estado e tradição popular.

Somos o Ocidente que até ontem não deixava mulheres trabalharem fora de seus lares, mas também somos o Ocidente que deixou de praticar tais restrições e hoje impulsiona, possibilita e mantém firme a convicção dos direitos delas.

O risco inerente de abandonar a história de uma civilização que paulatinamente se afastou ‒ e vem se afastando ‒ dos atos repulsivo de outrora, daquelas condutas que maculavam a dignidade do homem, é ter que recomeçar tudo isso do zero, passando de novo pelos absurdos, abjetos e impensáveis modos de agir das eras passadas. Como o comunismo e o nazismo nos mostraram no século XX com os seus genocídios, quando tentamos reconstruir a história a partir de nossas ideologias, nos deparamos com a inevitável necessidade de proceder de forma desprezível, forma essa que a maturidade civilizacional do Ocidente há muito tempo já vinha trabalhando para ser rechaçada.

Muito antes de o feminismo assumir a luta contra o estupro, a civilização já trabalhava para torná-lo inaceitável. O estupro é uma manifestação tangível da corrupção do comportamento humano civilizado. Se você quer retornar ao tempo do mítico bom selvagem, você quer retornar a um tempo no qual o estupro era uma parte rotineira e aceitável dos assuntos humanos.

Tudo isso está em jogo, e, assim como Goldberg não se conteve ao dizer, eu também digo, estamos a um passo de perdermos aquelas estacas que fincaram nessas bandas a possibilidade de sermos livres e de conquistarmos uma existência grandiosa através de nossos méritos. E essa ideia não pode ser facilmente considerada “reacionária”, ou “conspiratória”, afinal, Goldberg é um daqueles poucos conservadores americanos que são bem quistos entre democratas e republicanos, uma daquelas unanimidades no quesito: “avaliar política”.

A única maneira de enxergar o monstro é primeiro reconhecer a sua existência. Deixar que a narrativa pró-suicídio do Ocidente prospere ilesa, sem enfrentamento retórico, é o mesmo que desligar os aparelhos da liberdade, o que não lhe contaram dessa eutanásia, porém, é que você é um dos que respira nessas máquinas de oxigenação, as quais ouso aqui denominar de liberdade.

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