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A “ventosaterapia” é um dos tratamentos da medicina tradicional chinesa sobre o qual não existem evidências científicas sólidas para referendá-lo | Pixabay
A “ventosaterapia” é um dos tratamentos da medicina tradicional chinesa sobre o qual não existem evidências científicas sólidas para referendá-lo| Foto: Pixabay

A partir do próximo ano, os países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), entre eles o Brasil, devem iniciar a adoção da 11ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde, mais conhecida pela sigla CID (ou ICD, em inglês). Esta edição, a CID-11, terá, pela primeira vez, um capítulo inteiro dedicado a transtornos descritos por uma modalidade “alternativa” de medicina, a Medicina Tradicional Chinesa (MTC). 

O alcance e o impacto da CID são enormes: seu sistema de classificação influencia desde diagnósticos no consultório a políticas públicas de saúde em todo o mundo. No Brasil, o DATASUS, sistema de controle estatístico dos dados de saúde pública, classifica doenças de acordo com a edição atualmente em vigor do catálogo da OMS, a CID-10. 

A inclusão de diagnósticos típicos da Medicina Tradicional Chinesa na CID-11 poderá levar a uma maior aceitação dessa modalidade de tratamento em todo o mundo, e ajudar a legitimá-la perante órgãos reguladores e empresas que oferecem planos de saúde, aponta reportagem sobre o assunto publicada na revista “Nature”.  

Partes de animais em extinção 

A maioria dos tratamentos e remédios considerados parte da MTC não foi submetida aos testes de segurança e eficácia que são rotineiramente exigidos para que medicamentos que não têm a chancela de “tradicionais” ou “alternativos” possam ser lançados, ou mesmo consigam permanecer no mercado. 

O que se convencionou chamar de MTC não corresponde a um sistema orgânico de práticas medicinais, mas a um conjunto amplo de procedimentos adotados na China, Japão, Coreia e outros países asiáticos, baseados em folclore, tradições locais e crenças metafísicas como a da existência de uma energia vital (“chi” ou “qi”), de uma necessária harmonia dos opostos (“yin” e “yang”) e de metáforas baseadas nas supostas interações dos cinco elementos fundamentais chineses (terra, fogo, madeira, metal e água). 

Um apanhado de diversas tradições e sistemas de crença asiáticos, a MTC pode incluir práticas como acupuntura, disciplinas físicas como tai chi e o uso de preparados de ervas, minerais e tecidos animais – incluindo partes de animais ameaçados de extinção, que são caçados para abastecer esse mercado. Algumas das práticas da MTC podem ser úteis (tai chi como atividade física, por exemplo) e outras, perigosas (uma planta de uso milenar tradicional, gênero Aristolochia, é tóxica e cancerígena). 

Evidências de má qualidade

Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos apontam que não existe evidência científica de que a maioria das práticas associadas à MTC traga benefícios para a saúde. 

De 70 revisões sistemáticas de estudos envolvendo MTC, incluindo acupuntura, 41 foram inconclusivas, porque os estudos levantados eram de muito baixa qualidade. Outros 29 sugeriram algum benefício mínimo, mas não puderam afirmar nada, porque os trabalhos eram pequenos ou, mais uma vez, de má qualidade

“Há informes de que produtos fitoterápicos chineses são contaminados com drogas, toxinas ou metais pesados, ou não contêm os ingredientes listados”, informa o relatório do NIH, disponível online

“Ervas usadas na medicina chinesa podem interagir com drogas, apresentar efeitos colaterais graves ou não serem seguras para portadores de certas condições médicas”, adverte o órgão do governo americano. 

Um estudo publicado em 2013 por pesquisadores da Malásia encontrou contaminação por bactérias e metais pesados, incluindo chumbo, em ingredientes usados em MTC. Outro, realizado na Austrália e publicado em 2015, encontrou não apenas metais pesados mas também drogas “ocidentais”, como diclofenaco e paracetamol, nas preparações supostamente “naturais”. 

A principal história de sucesso apresentada pelos promotores da MTC foi a descoberta da artemisinina, uma droga que mata o parasita causador da malária, purificada a partir de uma planta citada em textos tradicionais chineses. A farmacologista chinesa Tu Youyou recebeu o Nobel de Medicina de 2015 por seu trabalho crucial nessa área. Críticos apontam que, embora a descoberta da artemisinina tenha sido inspirada por relatos tradicionais, todo o processo de purificação, teste, validação e comprovação dos efeitos benéficos da droga seguiu os princípios e protocolos da medicina “comum”. 

Truque comunista 

No livro “Truque ou Tratamento”, uma análise crítica de diversas modalidades de medicina alternativa, o médico alemão Edzard Ernst e o jornalista britânico Simon Singh descrevem a ideia de MTC como um sistema coerente, de validade equivalente à medicina usual, de base científica, como invenção da revolução comunista chinesa de 1949

Além dos objetivos de estimular o orgulho nacionalista chinês e de projetar para o mundo a imagem da China como um celeiro de sabedoria milenar, o líder da revolução, Mao Tsé-tung, “havia prometido levar cuidados médicos a preços razoáveis às zonas urbanas e rurais, o que só seria factível por meio de uma rede de curandeiros tradicionais (...) Mao não ligava se a Medicina Tradicional Chinesa funcionava, só queria que mantivesse as massas contentes”, escrevem os autores. 

Em suas memórias, “A Vida Privada do Camarada Mao”, o médico particular do líder chinês, Li Zhisui, escreve que Mao “era o principal defensor da medicina tradicional, mas recusava-se a usá-la em si mesmo”. 

O atual líder supremo da China, Xi Jinping, também é um entusiasta (não se sabe, porém, se é só da boca para fora), tendo se referido à MTC como a “joia da ciência tradicional chinesa”. Sob o governo de Xi, a China intensificou seus esforços não só para expandir o uso da MTC dentro de suas fronteiras, como também para estimular sua exportação. 

Documento oficial do governo chinês, publicado em 2016, afirma que a expansão do uso de MTC pelo globo é um “importante veículo para que a China e outros países trabalhem juntos na promoção da paz mundial, melhorem o bem-estar da humanidade e desenvolvam uma comunidade de futuro compartilhado”. 

Em 2017, o então governador do Estado de São Paulo e candidato derrotado à Presidência, Geraldo Alckmin, reuniu-se com autoridades chinesas para tratar da implantação de um hospital dedicado à MTC em São Paulo. No mesmo ano, a revista britânica “The Economist” apontou a disseminação de “Institutos Confúcio” – centros culturais patrocinados pelo governo chinês – nas Américas como parte da estratégia de expansão da MTC pelo mundo. O mercado global de produtos ligados à MTC é estimado em US$ 50 bilhões, de acordo com a “Nature”. 

OMS: órgão político

“O governo chinês (...) trabalha em conjunto com a OMS para contribuir com o progresso da Medicina Tradicional Chinesa pelo mundo”, prossegue o documento do governo de Pequim. 

A inclusão de um capítulo sobre MTC no CID-11 causou estranheza na comunidade científica internacional. “Em algum momento, todo mundo vai perguntar: por que a OMS está permitindo que pessoas fiquem doentes?”, disse à “Nature” o imunologista americano Donald Marcus, professor emérito do Baylor College de Houston, ao criticar a medida. 

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O médico e pesquisador brasileiro Luis Correia, diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências e coordenador de Pesquisa do Hospital São Rafael de Salvador, na Bahia, diz que é importante avaliar que tipo de finalidade será dada à MTC. 

“Qual o desfecho que a gente quer? Se for o mesmo de um anti-hipertensivo, ou de um antibiótico, então são necessárias evidências como as que a medicina usual tem de apresentar. Se a proposta é reduzir a incidência de desfechos ‘duros’, como chamamos, como infarto ou derrame, por exemplo, então precisamos de evidências como as da medicina ‘ocidental’ de que o tratamento realmente afeta esse desfecho”. 

E essa evidência, prossegue ele, tem de ser de boa qualidade. “Uma minoria dos trabalhos tem alta qualidade”, aponta. “Hoje em dia tem artigo científico publicado sobre tudo, então é preciso olhar a qualidade do trabalho, e exigir que seja excelente”. 

Correia lembra que, além de técnico, a OMS é um órgão político. “Nem tudo que ela diz é baseado em evidências”, aponta. A “Nature” lembra que a médica chinesa Margaret Chan, que presidiu a OMS de 2006 e até o ano passado, é uma entusiasta das chamadas medicinas tradicionais. 

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Ainda assim, a linguagem usada pela OMS para se referir às práticas de saúde tradicionais em geral – e à MTC em particular – é ambígua e bem menos clara que a que aparece nos documentos sobre terapias testadas cientificamente. Consultado pela “Nature”, o escritório da OMS em Pequim disse que a organização “não endossa práticas ou remédios específicos da medicina tradicional ou complementar”. 

A reportagem nota em seguida que “isso contrasta fortemente com as ações da OMS em outras áreas. A agência dá aos países-membros conselhos específicos sobre quais vacinas ou medicamentos usar” – quando o que está em questão é a medicina de base científica.

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