O visitante que se aproxima da Bebelplatz, em Berlim, um espaço amplo no centro da cidade, pode ser surpreendido por uma espécie de “buraco” no chão coberto por um painel de vidro. Apesar de se ver cercado por prédios imponentes, como a sede da Ópera Estatal da cidade, a Catedral de Santa Edviges, primeira igreja católica construída na Prússia depois da Reforma, e a Antiga Biblioteca da Universidade Humboldt, é inevitável observar com curiosidade a intrigante cavidade no chão, que não se trata de uma obra de metrô, gás ou luz, nem qualquer tipo de acidente no pavimento da calçada: é um memorial à célebre queima de livros que ocorreu naquele mesmo local, em 1933, por parte de membros e simpatizantes do Partido Nazista alemão (a maior parte deles estudantes).
Por trás do vidro, é possível ver uma série de prateleiras vazias, pintadas de branco, onde poderiam ser colocados por volta de 20 mil livros — o número de obras queimados pelos militantes enfurecidos.
Ao lado do memorial, projetado pelo artista israelense Mischa Ullman e inaugurada em 1995, encontra-se também uma singela placa no chão, explicando o contexto do ocorrido, junto com uma frase da peça “Almansor”, do escritor alemão Heinrich Heine: “Das war ein Vorspiel nur, dort wo man Bücher verbrennt, verbrennt man am Ende auch Menschen” (“Aquilo foi apenas um prelúdio, onde se queimam livros, também acabam por queimar pessoas”).
Criticar virou crime
Em 1933, Adolf Hitler tinha acabado de assumir o poder como Chanceler da Alemanha, conseguindo finalmente implementar de maneira oficial suas intenções de transformar o país novamente numa potência militar, depois do resultado catastrófico da Primeira Guerra e das sanções impostas pelo Tratado de Versalhes, e reorganizar todo o Estado alemão com base numa filosofia de exaltação à raça germânica, que seria superior a todas as outras e, por isso, deveria ocupar uma posição de superioridade — não só na própria Alemanha, como na Europa e no resto do mundo.
Criticar o regime passou a ser crime, e a cultura e educação no país passaram a ser controladas pelo Ministro da Propaganda e Educação Pública do Reich, Joseph Goebbels, assim como toda a imprensa do país. Imediatamente deu-se início uma perseguição generalizada a todo tipo de autor, artista ou filósofo cuja forma de pensar expressasse qualquer tipo de dissonância com o que pregava o regime. Havia uma intenção manifesta de purificar a cultura alemã de suas influências “externas” — particularmente, daquela exercida pelos judeus, que, à época, tinham uma presença forte na elite cultural e intelectual do país.
As organizações estudantis há tempos já faziam parte integral desse processo de radicalização da vida política alemã. Na verdade, muitos deles estavam à frente de muitos destes movimentos radicais, e o antissemitismo e nacionalismo já arraigado no meio universitário alemão foi um terreno fértil para a implantação do nacional-socialismo com a erosão da República de Weimar depois da Primeira Guerra.
As 12 teses
Uma das primeiras medidas de Hitler ao subir ao poder foi fortalecer a Liga de Trabalhadores Jovens (“Jugendbund”), braço “jovem” de seu partido desde 1922, transformando-a no que veio a ser conhecida como a “Juventude Hitlerista”, que praticamente uniu todas as militâncias jovens numa só organização, profundamente fundamentadas num conceito praticamente militar de respeito à hierarquia, e se tornou uma espécie de “estágio” para que estes jovens acedessem futuramente a postos na SA, a infame “Sturmabteilung”, responsável por, entre tantas atrocidades, a Noite dos Cristais.
Em 1926, um braço do Partido Nazista foi designado para integrar a ideologia nazista com o que era lecionado nas universidades alemãs: a União Nacional-Socialista dos Estudantes Alemães. Em 6 de abril de 1933, o seu Departamento de Propaganda e Imprensa deu início a uma campanha nacional intitulada “Ação contra o Espírito Não-Alemão”, visando purgar, pelo fogo se necessário, a literatura alemã.
Cada seção local do Departamento foi instada a fornecer à imprensa listas negras de autores responsáveis por artigos e obras que atentassem contra a pátria, além de fazer pronunciamentos públicos expondo estes autores. Dois dias depois foram publicadas as Doze Teses, numa clara alusão às 95 Teses publicadas por Martinho Lutero contra a Igreja Católica: nela, os estudantes declaravam a base que julgavam necessária para uma cultura nacional “pura”, e estabeleciam os fundamentos para que o “intelectualismo judaico” fosse eliminado, e assim purificando não só a vida cultural alemã, como até mesmo o idioma germânico. As universidades passaram a ser vistas como bastiões da cultura alemã, um foco de resistência nacionalista contra uma campanha mundial conduzida pelos judeus contra a Alemanha e os valores tradicionais germânicos. O grito de guerra tinha sido dado pelo ministro Goebbels: “o Estado foi conquistado, mas não as universidades!”
No mesmo ano, o Partido Nazista tinha iniciado uma grande campanha contra homossexuais, incluindo organizações, autores e grupos que fossem vistos como defensores ou mesmo tolerantes a qualquer tipo de sexualidade que fosse considerada por seus membros como fora dos padrões tidos como aceitáveis para a época, dando início uma perseguição feroz a homossexuais que não poupou sequer membros da própria SA e da SS.
Uma dessas organizações era o Instituto para o Estudo da Sexualidade (“Institut für Sexualwissenschaft”), fundado em em 1919 por Magnus Hirschfeld; o próprio Hirschfeld foi responsável por cunhar o termo “transexualismo”, e seu instituto foi responsável por diversos estudos pioneiros a respeito de um tema que tabus religiosos e comportamentais ainda consideravam “inabordáveis”. Como uma espécie de prelúdio ao que estava por vir, em 6 de maio de 1933 o instituto foi invadido por cerca de 80 estudantes encapuzados, e todo o seu arquivo, que consistia de 12 a 20 mil livros e periódicos, foi apreendido.
Especula-se também que Dora Richter, a primeira pessoa a ter feito uma cirurgia de mudança de sexo, possa igualmente ter sido morta durante esse ataque — enquanto Hirschfeld, que estava detido à época, acabou sendo poupado. Estas obras foram então levadas para o quartel-general dos centros estudantis, onde algumas poucas de caráter científico foram poupadas, enquanto aquelas consideradas “não-alemãs” foram guardadas para um destino menos digno.
Listas de Einstein a Marx
Enquanto isso, listas de autores igualmente tidos como contrários ao espírito alemão estavam sendo compiladas. Alexander Skipis, diretor da Associação de Editores e Livreiros da Alemanha, declarou recentemente à Deutsche Welle, a participação de sua categoria neste expurgo: “Fizemos listas. Instruímos os donos de livrarias a não vender determinados livros. Então, no fim das contas, acabamos apoiando o regime nazista e suas ideias.” Para ele, sua categoria “se curvou” sem qualquer pudor ao regime, na esperança de algum tipo de benefício econômico.
Autores judeus, esquerdistas, liberais, pacifistas ou que fizessem qualquer tipo de crítica ao regime eram incluídos nestas listas. Cerca de 100 autores, entre eles estavam alguns dos maiores nomes que já escreveram no idioma alemão. Escritores e dramaturgos como Bertolt Brecht, Herman Hesse, Thomas Mann, Walter Benjamin, Georg Lukács, cientistas como Albert Einstein e Sigmund Freud, e além de mais de 40 outros autores estrangeiros, como Ernest Hemingway, Fyodor Dostoievsky, F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Vladimir Nabokov, Leon Tolstoy e André Gide — além, obviamente, de autores obviamente socialistas como Karl Marx e Vladimir Lenin — todos entraram numa espécie de lista negra. Policiais e estudantes se empenharam então numa verdadeira caçada a exemplares dos autores que “violavam os valores alemães”, confiscando-os de bibliotecas, livrarias, e até mesmo de coleções privadas.
Já pressentindo o que estava prestes a acontecer, diversas personalidades ao redor do mundo, principalmente nos Estados Unidos, começaram a se pronunciar contra o que viam diante de seus olhos. A escritora e ativista Helen Keller, ela própria entre os autores proscritos, escreveu: “A história não lhes ensinou nada, se vocês acham que são capazes de matar ideias. Tiranos já tentaram fazê-lo antes, e as ideias acabaram por se erguer e destruí-los. Vocês podem queimar meus livros, e os livros das maiores mentes da Europa, mas as ideias contidas neles escaparam por milhões de canais, e continuarão a despertar as mentes de outros”. Sherwood Anderson, Faith Baldwin, Erwin Cobb, Sinclair Lewis e inúmeros outros autores americanos manifestaram sua repulsa ao que viam acontecer, inclusive lembrando-se da frase profética de Heine.
Alguns dias depois, em 10 de maio, diversas manifestações foram feitas em inúmeras cidades universitárias alemãs, com estudantes empunhando tochas. Obras consideradas contrárias ao Reich eram queimadas enquanto autoridades nazistas, assim como líderes universitários e professores faziam discursos fervorosos. Um deles era o filósofo Martin Heidegger, então recém empossado como reitor da Universidade de Freiburg: “Chamas, falem conosco, nos iluminem, mostrem-nos o caminho a partir do qual não há mais volta! Chamas acesas, queimem os corações!”
Queimado "vivo"
Mas foi em Berlim que uma multidão colossal de 40 mil pessoas se reuniu durante uma noite chuvosa na Bebelplatz — que, à época, ainda se chamava Kaiser-Franz-Josef-Platz, em homenagem ao imperador austro-húngaro Franz Josef (embora coloquialmente nunca tenha deixado de ser conhecida como Opernplatz, devido à presença do prédio da Ópera Estatal) onde presenciou um grupo de milhares de estudantes, de maneira praticamente simbólica, diante do prédio da biblioteca da Universidade Humboldt, e empilharam no centro da praça não só os exemplares apreendidos do instituto de Hirschfeld, como exemplares de todos os autores que faziam parte da lista negra, assim como diversas imagens e objetos de cunho sexual.
À meia-noite, Goebbels então se postou diante da multidão e fez um discurso, com o perdão do trocadilho não-intencional, inflamado: “A era do intelectualismo judeu exagerado ainda não terminou. (...) O alemão do futuro não será apenas um homem de livros, mas um homem de caráter. É para isto que queremos educá-los. E é por isso que agora, à meia-noite, vocês estão certíssimos em manter para o fogo o espírito perverso do passado. (...) Se vocês estudantes assumirem o direito de jogar esta sujeira intelectual nas chamas, vocês também precisam assumir a responsabilidade de retirar este lixo do caminho para obras verdadeiramente alemãs. O nacional-socialismo preparou o terreno. A alma popular alemã pode novamente se expressar. (...) Essas chamas não estão apenas iluminando o fim de uma era; eras estão dando luz a uma nova! (...) O antigo queima nas chamas, e o novo será forjado a partir das chamas em nossos corações”.
A chuva não dava trégua, e os bombeiros foram obrigados a jogar gasolina na fogueira para mantê-la acesa, enquanto os estudantes se empenhavam com aquele fervor que só a imaturidade ideológica juvenil consegue proporcionar. Um dos poucos autores a presenciar suas próprias obras sendo queimadas — já que a maior parte deles já tinha ou sido morta ou fugido do país — foi Erich Kästner, que observou silenciosamente o ocorrido, chegando até mesmo a ser reconhecido em em meio à multidão, que praticamente nem se deu conta de sua presença enquanto cantava de maneira praticamente hipnótica a “Horst-Wessel-Lied”, o hino oficial da SA e do Partido Nazista.
Uma jornalista americana presente na ocasião, Lilian Mowrer, descreve o que presenciou: “Prendi minha respiração enquanto o primeiro volume foi jogado às chamas; foi como se algo estivesse sendo queimado vivo. Então estudantes começaram a chegar com os braços repletos de livros, enquanto meninos gritaram nos microfones os motivos pelo qual condenavam este ou aquele autor, e, à medida que cada nome era mencionado, a multidão vaiava e apupava. Podia-se sentir o veneno de Goebbels por trás de cada uma daquelas acusações. Crianças de catorze anos dirigindo insultos a Heine!!
Bibliocausto
No dia seguinte, Goebbels, ele mesmo filho de um livreiro fervorosamente católico, escreveu em seu diário: “Trabalhei até tarde em casa. À noite fiz um discurso em frente à Ópera, diante da fogueira na qual os livros sujos e asquerosos estavam sendo queimados pelos estudantes. Estive em meu auge. Uma multidão gigante.”
Uma multidão muito maior, no entanto, tomou as ruas de Nova York no dia seguinte. Cerca de 100 mil pessoas marcharam para protestar contra a atitude dos nazistas, e o mesmo foi visto em Chicago, St. Louis, e Filadélfia. A revista Time descreveu o ocorrido como um “bibliocausto”, e o colunista Walter Lippmann, do New York Herald Tribune, definiu o que o mundo tinha presenciado como um sinal sinistro da meta final dos nazistas: “Estes atos simbolizam o caráter moral e intelectual do regime nazista, (...) pois estas fogueiras não são obras de estudantes ou multidões, mas do atual governo alemão. (...) O simbolismo sinistro [deste ato] e destas fogueiras é o de que existe um governo na Alemanha que quer ensinar a seu povo que sua salvação virá através da violência”.
Este não foi o primeiro caso (nem provavelmente será o último) de uma queima de livros; desde os tempos bíblicos, e em todas as civilizações do mundo, exemplos de se tentar combater um inimigo ou uma cultura através da destruição física de seus escritos foram incontáveis e constantes. Mas um precedente célebre já tinha ocorrido na mesma Alemanha, pouco mais de 100 anos antes. Em 1817, dois anos depois da vitória dos alemães sobre Napoleão, essas mesmas associações estudantis, à época conhecidas em alemão como Burschenschaften, e que acabaram tendo um papel crucial na posterior unificação do país, resolveram comemorar os 300 anos das 95 teses de Lutero, através de uma peregrinação até Wartburg, então um epicentro do nacionalismo germânico justamente por ter sido usada como um refúgio pelo próprio Lutero contra as autoridades católicas.
Lá, estes estudantes declararam que as universidades do país não mais aceitariam estudantes “estrangeiros” — referindo-se claramente aos franceses, inimigos que tinham acabado de derrotar, bem como os judeus, tradicionais bodes expiatórios em praticamente todas as revoluções europeias. Para concluir a cerimônia, diversos livros foram lançados numa fogueira, entre eles o Código Civil de Napoleão e obras de autores conservadores alemães, como August von Kotzebue. O próprio Heinrich Heine, de família judaica, teria fugido da Alemanha e se refugiado em Paris diante da onda de perseguição que se seguiu à essa época, onde acabaria por escrever essa frase que até hoje estampa o memorial da Bebelplatz.
Estudantes da Universidade Humboldt realizam todo ano, no dia 10 de maio, uma feira de livros na praça, como forma de dar um novo significado ao sinistro acontecimento.
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