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Não se trata de propor fome ou guerra. A questão é reconhecer a abundância em que vivemos graças a pessoas que padeceram de sofrimentos reais.
Não se trata de propor fome ou guerra. A questão é reconhecer a abundância em que vivemos graças a pessoas que padeceram de sofrimentos reais.| Foto: Pixabay

Tarefa inglória, essa de “defender” o sofrimento. Que, todos sabemos, existe deste o início dos tempos e continuará existindo depois que todos nós estivermos mortos. Viver é, por definição, atravessar um mar de lágrimas – ainda que a imagem esteja gasta e beire a pieguice. E quem sabe disso, isto é, quem tem consciência da própria danação sofre, de acordo com o Eclesiastes. Ou seja, o sofrimento (e a rejeição a ele) está na base de toda a ação humana. E sofremos só de saber disso.

Grande parte desse sofrimento é filosófico e espiritual – dores da alma, para quem acredita, ou das reações químicas neurais ao acaso, para quem acredita. E superar esses aspectos imateriais do sofrimento é uma questão de fé e sabedoria. Outra parte, contudo, a parte que nos fez chegar ao ponto de levar um homem à Lua, é material, e diz respeito sobretudo à nossa sobrevivência enquanto espécie. Daí porque desenvolvemos, ao longo de milênios, sucessivas tecnologias que não só facilitam nossa vida como também nos dão a sensação de termos alcançado alguma segurança no aspecto mais palpável da coisa toda.

Não ignoro, aqui, o contingente de miseráveis que ainda não tem acesso nem à tecnologia nem a essa abundância toda que fomos capazes de produzir nos últimos 50 anos. Esses continuam sofrendo – e lutar para acabar de vez com a fome e a falta de um teto sobre a cabeça das pessoas é algo que ainda move a melhor parte da chamada Civilização Ocidental. Estou me referindo a pessoas que, embora possam ser consideradas pobres pelos burocratas diante de uma indefectível tabela de Excel, não têm a fome no horizonte próximo.

O problema é que esse estado de abundância, que em grande medida elimina o sofrimento material, é uma novidade. Com a qual, desconfio, não estamos sabendo lidar direito. Pela primeira vez na história da Humanidade, temos nossa sobrevivência enquanto espécie praticamente garantida. E isso está, ao que parece, dando um nó nas gerações que nunca souberam o que é ingerir menos calorias do que o recomendado pelo médico ou por um tecnocrata qualquer da FAO.

Como resultado, temos toda uma geração (ou mais do que uma, dependendo de quem conta) que, incapaz de perceber a abundância em que vive, diz sofrer por qualquer coisa, desde uma fome de mentirinha até uma fantasia de carnaval considerada ofensiva, e ao mesmo tempo não sofre por absolutamente nada.

Fome de mentirinha

Veja o caso, por exemplo, de uma discussão que tomou conta de parte das redes sociais recentemente. É uma parte dessa comunidade virtual que acompanha celebridades, novelas, bandas pop coreanas e reality shows, então talvez não seja a parte do leitor típico deste tipo de texto. Mas é uma parte que existe e que merece atenção.

Pois essa turba ensandecida, do tipo que aprendeu a aliviar o antigo sofrimento filosófico e espiritual da solidão e da incapacidade de se fazer ouvido se manifestando aos berros pelas redes sociais, ficou revoltada com a produção do reality show Big Brother Brasil, que já está na vigésima edição (quem diria!). Tudo porque uma das participantes estaria passando fome.

“Fome” é uma palavra e um conceito que já motivou guerras, levou monarcas à guilhotina e fez com que famílias se mudassem da Letônia para o interior do Paraná. É um sofrimento tão lamentável, tão abjeto que desviamos o olhar diante da imagem de africanos subnutridos ou esqueléticos judeus nos famigerados campos de concentração da Alemanha nazista.

É o sofrimento material em seu estado mais puro. Sofrimento que, felizmente, não atinge mais o todo da Humanidade.

Mas a fome a que se referiam os indignados de plantão era, na verdade, uma escassez passageira e parcial de alimentos, consequência de uma das regras do programa. A participante, chamada Telma, não chegou nem perto de virar uma figurante num filme sobre Holodomor. Ela não teve de comer terra para tentar dela extrair algum nutriente, como descreve o narrador de Fuga do Campo 14, livro que narra os horrores da Coreia do Norte.

Nada disso. Ela teve apenas de consumir uma ração restrita por algum tempo, a fim de poder continuar na busca por fama e dinheiro que caracteriza os participantes de reality shows. Mesmo assim, os sofrimentos da jovem Telma foram o suficiente para mobilizar milhares de pessoas que ficaram revoltadas com a privação calórica temporária usada como entretenimento.

Neossofrimentos

O problema de termos eliminado uma grande porção do nosso sofrimento material é que isso parece ter afetado nossa capacidade de superarmos nossos sofrimentos filosóficos e espirituais. Um sinal disso são todos os neossofrimentos que surgiram nos últimos tempos, criando novas demandas sociais e políticas e, por consequência, novas formas, muitas delas conflituosas, de amenizar ou eliminar esses sofrimentos que, de tão inventados, chegam a ser mentirosos.

Dois neossofrimentos chamaram a atenção nos últimos dias. O primeiro deles é tão novo e improvável que me pareceu, a princípio, apenas uma piada. Mas ali estava o selo BBC de qualidade, o que me leva a crer que se trata mesmo de um sofrimento que aflige um grupo razoavelmente relevante de indivíduos – ou, talvez, meia-dúzia de pessoas com acesso aos produtores da BBC.

No vídeo, uma pessoa não-binária expressa, num “poema” declamado, toda a sua dor por não poder cortar os cabelos num lugar onde ela se sentisse realmente confortável. O salão lhe soa feminino demais. O ser não-binário não se sente mulher o bastante para isso. (Ela menciona ainda o problema de cortes de cabelo femininos serem mais caros, mas isso é outro assunto). Ela tampouco se sente homem o bastante para ir a um barbeiro e cortar os cabelos ao som do rock saudosista que hoje une marmanjos quarentões nestes antros de masculinidade.

“Há lutas cotidianas que as pessoas travam em silêncio, como encontrar uma forma de expressar sua individualidade e ao mesmo tempo transitar por um mundo no qual nem sempre nos encaixamos”, diz o menino (ou menina ou nem uma coisa nem outra), para concluir: “Somos não-binários e aqui estamos, e a vida pode ser bem difícil lá fora, então você tem mesmo de criar problemas ou poderia apenas cortar o nosso cabelo?”

Diante do que pergunto: mas que sofrimento é esse de não se sentir à vontade para cortar o cabelo num lugar ou no outro? Que tipo de força surgirá da coragem de se enfrentar esse dilema – ou da covardia de choramingar sua dorzinha existencial para milhões de espectadores? Como a criação de um ambiente neutro para o corte de cabelos contribuirá para a construção de uma sociedade mais saudável?

O sofrimento que irmana

O interessante é perceber que essa mesma geração que não sabe o que é sofrer quer sofrer – e justamente por isso inventa sofrimentos. Porque o sofrimento irmana. O sofrimento gera imediatamente uma confortável rede de solidariedade ou, para usar a palavrinha da moda, de empatia. A tristeza gosta de companhia, como diz a música.

Mais uma vez, é o sofrimento filosófico e espiritual ocupando o espaço do sofrimento material. Porque mesmo quando se está de barriga cheia, com os olhos fixos no mais moderno smartphone e a bordo de um Tesla, questões primordiais como a necessidade de aceitação e pertencimento continuam gerando um sofrimento que precisa ser aliviado a qualquer custo.

Exemplo disso foi o choro de uma menina, supostamente uma índia, quando, no meio de um bloco de carnaval na cidade grande do homem branco, se deparou com um folião usando um cocar falso como fantasia. “Eu senti agulhadas no meu espírito”, teria dito ela. A notícia percorreu a caixa de ressonância das redes sociais, dando origem a uma onda de memes bem-humorados e, aqui e ali, marolas de indignação identitária.

Força criativa

Não se trata, aqui, de propor o retorno da fome ou a eclosão de uma guerra ou ainda um regime tirânico de trabalhos forçados como formas de dar vazão a essa necessidade ancestral de sofrimento material. Pelo contrário. A questão aqui é reconhecer e agradecer a abundância que conseguimos gerar ao longo de milênios, graças à engenhosidade e criatividade de incontáveis pessoas que padeceram de sofrimentos reais.

E de usar esse excesso de calorias e tempo livre a fim de empregar a força criativa das dores filosóficas e espirituais (entre as quais incluo a busca pela fama, a confusão identitária e a incapacidade de aceitar um mundo menos do que perfeito) para dar forma a algo virtuoso, capaz de, por algum tempo, aliviar esse sofrimento.

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