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Esau McCaulley: teologia tradicional e pregação antirracismo
Esau McCaulley: teologia tradicional e pregação antirracismo| Foto: Divulgação

No 2020 de George Floyd, de João Alberto e de Matheus Pires Barbosa, o combate ao racismo esteve em voga no debate público. E as igrejas, como palco de algumas das relações mais importantes na composição de uma comunidade, não foram deixadas de fora da conversa. Termos como “teologia negra”, “teoria crítica racial” e “racismo estrutural” tomaram púlpitos nos Estados Unidos e na América Latina.

De um lado, religiosos e acadêmicos adeptos das políticas identitárias mais progressistas propõe leituras revolucionárias dos Evangelhos, aos moldes da Teologia da Libertação ou da Missão Integral (a “teologia da libertação evangélica”, por assim dizer), aplicadas às agenda de movimentos como o Black Lives Matter e grupos LGBT.

De outro, pastores, sacerdotes e teólogos ciosos das neo-teologias mantém os pés fincados na tradição e, eventualmente, são acusados por jovens fiéis de negligenciar pautas sociais relevantes. É possível alcançar o equilíbrio?

Doutor em Novo Testamento pela Universidade de Saint Andrews, onde estudou sob a tutela do famoso teólogo anglicano N. T. Wright, Esau McCaulley é um dos que tenta conciliar estes “dois mundos”. Seu livro “Reading While Black” foi vencedor do concurso anual da revista Christianity Today na categoria “beautiful orthodoxy book of the year” (o melhor livro ortodoxo do ano).

Em um mergulho na tradição litúrgica das igrejas cristãs afro-americanas, McCaulley afirma que a discussão sobre racismo faz parte da teologia há muito tempo — sem a necessidade de romper com todas as crenças comuns aos evangélicos. Nesta entrevista à Gazeta do Povo, o teólogo explica como a Bíblia ajuda a compreender a revolta diante do racismo e as possíveis respostas ao problema, ressaltando não acreditar que a violência seja a melhor forma de transformar a sociedade. "Na maioria dos protestos violentos, ou conflitos movidos por esta revolta, são nossas próprias comunidades que sofrem", diz.

No livro, você descreve como a música fez parte do seu cotidiano e influenciou sua formação intelectual e espiritual. Como se deu esse processo? 

Eu fui criado em uma Igreja Batista em Huntsville, Alabama, em um lar onde se ouvia música gospel o tempo todo. Ao mesmo tempo, era um garoto negro do sul dos Estados Unidos apaixonado por hip hop. O hip hop descrevia o mundo em que eu vivia: o cotidiano dos meus amigos e da minha comunidade, bem como a frustração que os jovens negros sentem diante das injustiças e do racismo. Tudo isso está representado na música, que frequentemente continha algum niilismo, uma falta de esperança.

Por outro lado, a música gospel me conectava a uma longa tradição de cristãos afro-americanos que encontraram esperança apesar das dificuldades. E eu me encontrava entre essas duas lutas: o niilismo contra a esperança. Não significa que todo o hip hop tenha esse tom; mas ele é parte da cultura, tanto quanto a base cristã das igrejas negras.

O diálogo entre religião, racismo e arte sempre esteve presente nessas comunidades?

Sim. Há uma longa tradição de autores afro-americanos que falam de cristianismo e das lutas raciais — desde James Baldwin, Aretha Franklin e outros poetas. Quando se fala sobre os reflexos da literatura e da arte na história negra nos Estados Unidos, a religião sempre desempenhou um papel importante.

Muitos artistas afro-americanos começaram a compor música gospel entre os anos 1960 e 1970 e traduziram isso para o Soul e R&B. Não estão lá apenas os valores, mas a cadência, o estilo, os acordes. Esses estilos vêm dos púlpitos negros. Mesmo hoje, grupos seculares que usam corais são herdeiros da música gospel afro-americana.

Nesse sentido, é um pouco parecido com ser católico no Brasil: é parte da cultura. Ela permeia muitos dos costumes no qual você está inserido.

Seu livro fala sobre como a Bíblia contém a resposta para a raiva que os negros sentem frente às situações de racismo. Que resposta é essa? É correto sentir raiva?

A primeira coisa que sempre digo sobre este assunto é que a Bíblia contém a raiva dos povos oprimidos. Há Salmos em referência ao exílio do povo de Israel no Egito que expressam a revolta diante da impotência: “Senhor, me ajude, meus inimigos me cercam e estão tentando me destruir, estão tentando me explorar”.

As Escrituras falam disso várias e várias vezes. E, diante da injustiça, nós somos frequentemente confrontados com a pergunta: tudo bem sentir raiva? Eu respondo: perceba que a Bíblia registra a raiva, mesmo em orações. Há retratos de frustração semelhantes à que hoje outros povos sentem. O milagre, no entanto, é que o mesmo livro que descreve a raiva, aponta também para um mundo construído do outro lado deste ressentimento, com os inimigos reconciliados.

É importante notar que a Bíblia não elimina a justiça. Ela não diz “vamos fingir que nada aconteceu”. Ela aponta o que é certo e errado, mas fala também de uma comunidade.

Na luta contra a discriminação racial, a violência é justificável?

Eu sou um cristão da tradição de Martin Luther King: nós simplesmente não acreditamos que a violência seja a melhor forma de conseguir a transformação da sociedade. Parte disso está nos ensinamentos de Jesus, que ao invés de se vingar dos seus inimigos morreu para que eles possam se reconciliar com Deus. Isso não significa que é meu trabalho morrer pela salvação de quem me maltrata. O que eu quero é lutar para que a justiça seja feita sem perder minha integridade. Eu não quero me tornar o que eu odeio.

Ainda assim, penso que é importante ouvir as razões de quem tem raiva. E, depois, explicar porque essa solução não é a melhor. Inclusive porque na maioria dos protestos violentos, ou conflitos movidos por esta revolta, são nossas próprias comunidades que sofrem. Nós pagamos o preço da violência. Diz-se que “a violência é a voz dos que não têm voz”, mas isso não apenas não justifica o ato como não funciona na prática. O que funciona é dar voz a essas pessoas.

Aprendi com um pastor que “a raiva é como fogo: uma vez que você acende esse fogo, ele tende a queimar muito mais do que você espera”. Se você é consumido por ela, é difícil mantê-la direcionada a um alvo, ela tende a se espalhar. No fim das contas, ela queima, mas não constrói nada. O que a Bíblia faz é incluir pessoas que estão frustradas por serem maltratadas; mas nos pede para lutar por um futuro onde a raiva não tenha a última palavra.

Atualmente, falar em uma Igrejas afro-americanas remete ao que se convencionou chamar de teologia negra, uma linha que, via de regra, está associada a interpretações mais progressistas da doutrina cristã evangélica. Estes grupos fazem parte da mesma tradição à qual o senhor se refere no livro?

Este é um ponto importante. Pense na Igreja Católica: há católicos progressistas e há católicos “tradicionais”, que seguem o Catecismo como está. Por alguma razão, a linha progressista das igrejas afro-americanas tem recebido mais publicidade e atenção. Eles são mais vistos. Mas eles não são a maioria dos cristãos negros nos Estados Unidos, a maioria acredita na teologia tradicional.

Meu livro foi escrito também com a intenção de fazer essa distinção e dizer: nós sabemos que há cristãos negros progressistas e pode ser que, nos Estados Unidos, eles representem algo em torno 25% deste público. Mas há uma longa tradição de cristãos negros falando sobre racismo, injustiça e ação social que segue outros preceitos comuns aos cristãos, acreditam nas Escrituras etc.

Meu objetivo é, justamente, mostrar como as igrejas tradicionais já falavam sobre temas que hoje estão em voga. O livro não é contra as igrejas progressistas, mas a ideia é dizer: é possível ser negro, ser teólogo, falar sobre injustiça racial e não ser progressista. É uma nuance importante.

No Brasil, há a impressão de que parte dos cristãos negros não participam mais ativamente de conversas sobre racismo porque elas estão completamente atreladas ao progressismo.

Isso também é um problema nos Estados Unidos. E penso que esta é uma das razões pelas quais as pessoas gostaram tanto do livro. Eu claramente me coloco na linha tradicional da igreja, mas falo sobre racismo e opressão.

Nós podemos nos preocupar com as injustiças e falar de salvação pessoal, podemos falar sobre nossa relação pessoal com Cristo e sobre discriminação. O que a sociedade separou em duas tradições diferentes, eu tento colocar em uma só dizendo: não tem problema acreditar na Bíblia e se preocupar com essas coisas.

Que tipo de discussão faz parte desta tradição das igrejas afro-americanas e que é mais antiga do que parece entre os cristãos?

Uma coisa que parece óbvia, mas que muita gente não entende de verdade, é que quando os negros se converteram ao cristianismo, nos Estados Unidos, eles eram escravos, porque a escravidão era lei. Então, quando os cristãos afro-americanos se converteram e começaram a protestar, seus protestos eram contra a lei.

Isso significa que este cristianismo afro-americano sempre foi político, mas sempre teve espaço para falar de Jesus. Sempre falamos de questões relacionadas ao Estado e como ele poderia funcionar melhor. Sempre foi uma combinação de luta contra as leis que oprimiam as pessoas e sua relação pessoal com Cristo.

O que as pessoas não entendem é que quando as igrejas negras foram fundadas nos Estados Unidos, não havia recompensa por ser cristão. Os fundadores poderiam ter “alterado” a doutrina como quisessem. Portanto, o que quer que acreditassem, seria porque chegaram àquela conclusão honestamente. E o que se viu é que, no fim das contas, eles mantiveram a teologia tradicional, mas acrescentaram uma força ativista. São pessoas que, há 250 anos, provavam que é possível ser um cristão tradicional e se opor ao racismo estrutural.

A que você se refere quando fala de racismo estrutural? Pergunto porque o termo se tornou um conceito amplo e quase inquestionável.

Tomemos a ganância por exemplo. Se uma pessoa é gananciosa, mas não possui um negócio, não tem subordinados, ela não afeta ninguém exceto a própria família. Mas digamos que essa pessoa abre uma empresa e faz sucesso, de modo a conseguir influenciar o governo para lhe dar condições especiais. Ela vai usar essas condições especiais para oprimir seus empregados. Agora, um pecado individual se torna um sistema na sociedade. E um grupo de pessoas é permanentemente excluído.

O que acontece quando alguém que tem ideias racistas chega ao poder? Essas ideias começam a influenciar as instituições, que contém o caráter coletivo das pessoas que as comandam. E ninguém duvida que havia racistas no poder nos Estados Unidos nos anos 1970, 1980 e até hoje. Do contrário, seria como dizer que os únicos racistas do mundo são pessoas que não têm poder.

Ocorre que, não raramente, quem afirma que o racismo é estrutural entende que é preciso destruir as instituições — e há pessoas dentro delas. Se é assim, como combater a discriminação racial sem deixar de respeitar os indivíduos e o papel das instituições?

Sou adepto da ideia de que as instituições podem ser transformadas. Martin Luther King dizia que não via um futuro para a América que não incluísse pessoas negras e brancas juntas. Não há uma versão do futuro americano em que os afro-americanos queimam tudo e estabelecem seu próprio reino nos Estados Unidos.

Então, penso que é possível transformar as instituições sem destruí-las. Isso não significa que não precisemos de partidos políticos melhores ou que não possamos rever leis, mas que as instituições são necessárias e inevitáveis. Como você disse, elas são feitas de pessoas e foram construídas ao longo de séculos.

Há discussões acaloradas na internet sobre a forma como pessoas brancas devem participar de discussões sobre racismo: há quem defenda que elas devem ficar sempre em silêncio e quem diga que devem dizer o que pensam. Para você, qual é a melhor fórmula?

Ter humildade é importante. Por exemplo, há situações em que se diz que “os brancos não entendem o racismo”. Não significa que você nasceu assim, como se Deus tivesse “baixado” o racismo na pele branca, mas que você, provavelmente, não precisou pensar muito sobre isso.

Um argumento que eu ouço o tempo todo é: o cristianismo é uma religião de gente branca, a doutrina foi formada por europeus etc, como você pode ser negro e cristão? E eu tenho que responder a essa pergunta. Diante de tantas imagens de santos, teólogos, cardeais e  Papas brancos, é improvável que um branco tenha precisado pensar o mesmo.

É disso que trato quando falo que é importante levar em conta as experiências. Mas é importante lembrar que afro-americanos, bem como qualquer etnia, não são infalíveis. Nós podemos estar errados como qualquer um. O que eu acho que acontece é que não há uma escuta profunda antes da discordância. O que tende a acontecer é que há uma caricatura da opinião dos ativistas negros que muitas pessoas combatem sem entendê-lo. Costumo dizer que, a menos que eu consiga articular a opinião da pessoa com quem estou debatendo, eu não ouvi ainda.

Discursos duros contra o racismo ainda são efetivos?

Sim. Por muito tempo ouvimos dizer que deveríamos “ajustar a linguagem”, mudar o jeito de falar para alcançar mais pessoas. E não é assim que funciona. Você pode — e, em muitas situações, deve — fazer discursos duros contra o racismo. A diferença está entre os que pregam a esperança e os que pregam o niilismo. Você pode ser duro e, ainda assim, tentar apontar para um futuro. As perguntas para discernir entre discursos que ajudam e os que não ajudam têm que ser: quem vê um futuro de cooperação? Quem só está tentando destruir relacionamentos?

Uma crítica comum às igrejas progressistas de modo geral é que elas deixam de lado valores entendidos como conservadores com o cuidado com a família, o respeito às tradições e à sabedoria dos antigos. Como fazer com que essas discussões cheguem à periferia?

Veja: este é um tema sobre o qual as igrejas negras tradicionais sempre se debruçaram. Sempre houve um foco muito grande na família porque, historicamente, por conta da escravidão e de outros fatores, as famílias negras foram despedaçadas. Há uma longa tradição de reconstrução das famílias e este é um tema que está no cerne da tradição cristã negra.

Na verdade, essa é a parte mais difícil de se entender a tradição das igrejas afro-americanas: 99% das coisas que você ouve são só de um lado. A maioria das pessoas não têm ideia do que elas são, de verdade. Elas ouvem sobre as progressistas e os outros 75% ficam na sombra. Nós falamos sobre salvação pessoal, sobre pecados individuais, falamos de família, casamento, educação etc. Falamos até de negócios, de ética de trabalho e empreendedorismo. E, no meio de tudo isso, falamos de racismo.

O senhor defende que a cruz é a resposta final para a raiva dos negros diante da injustiça. Quais são as implicações práticas dessa resposta?

O que a cruz me força a fazer é entender que Deus me leva muito a sério e está ciente do sofrimento humano. A segunda coisa é que ela deixa muito clara — e essa é a parte difícil — é que mesmo que eu seja alguém que experimentou a opressão, eu também sou um pecador que precisou ser salvo. E a mesma salvação que está disponível para mim tem que estar disponível para outras pessoas. Isso não significa que eu não ligo para a justiça, mas que se Deus me perdoou, e eu preciso, ao menos, vislumbrar a possibilidade de perdoar o próximo.

O último capítulo do meu livro começa com uma citação de Leonard Black, um escravo que escapou de seus donos e relatou seu sofrimento em sua obra. Este homem, depois de vinte anos de escravidão, conseguiu enviar uma carta ao seu antigo dono, quando este estava à beira da morte, dizendo: “você precisa se arrepender dos seus pecados agora”.

Imagine um ex-escravo capaz de dizer a este homem: você ainda tem oportunidade de se tornar uma pessoa melhor. Pode libertar os escravos que ainda tem e reparar o que você fez. Não posso imaginar o quão difícil foi, mas é o que precisa ser feito. Ele não disse que era “tudo bem ter escravos”. Mas está chamando ao arrependimento. A ideia de que o perdão é possível é a base do cristianismo.

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