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Muitas vezes se diz que vivemos agora uma era de ouro da comédia, com todo tipo de humor novo surgindo em todas as telas e palcos de bares de comédia. Temos sorte de vivermos na era de Hannibal Buress e Amy Schumer, de seriados como “Jane the Virgin” e “Black-ish”, de “Broad City” e “Louie”, de Amy Poehler e Tig Notaro e de um elenco do “Saturday Night Live” que finalmente conseguiu quebrar o ciclo de 40 anos do programa de falta de representatividade. 

Toda semana, na TV a cabo e na aberta, no YouTube e no Twitter, ultrapassamos antigos limites, misturamos as categorias e rompemos com estereótipos, conforme os assuntos do momento vão sendo transformados em material para novos comentários mordazes, piadas e palhaçadas em geral.

Mas, ao mesmo tempo, estamos no meio de uma crise no humor. O mundo está cheio de piadas, mas também de gente incapaz de levá-las na brincadeira. 

Se formos ver as redes sociais e as safras semanais de discussões da internet, parece que a comédia oscila num pêndulo rápido entre a graça e o escândalo. As piadas que amamos são as que chegam bem na fronteira do permitido, mas a gente também gosta de se voltar contra o piadista que desrespeita nossos próprios tabus. 

Num piscar de olhos, as mídias sociais se inflamam, não com os cliques do compartilhamento coletivo de links, mas com as chamas da fúria da multidão indignada. Queremos piadas novas. E queremos que elas venham com um pedido de desculpas.

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O riso deveria servir como força de unificação, niveladora de distinções e cura contra as divisões. Mas, em nosso ambiente polarizado, com frequência o riso parece ser, tanto quanto qualquer outra coisa, uma força divisora. Será que não é possível para nos divertirmos juntos? 

Talvez a comédia tenha se tornado o modo pelo qual discutimos os assuntos que são dolorosos demais, desconfortáveis ou explosivos demais, se tratados de qualquer outro modo. 

Nesses tempos constrangidos, desconfiados, defensivos – quando a configuração padrão do discurso público parece vacilar entre a pena e a fúria –, a comédia pode ser o único veículo mais à mão para discussões que não gostaríamos de propor de nenhuma outra maneira.

Brigar sobre o que tem ou não tem graça é o nosso jeito de discutir questões como justiça, inclusão social e responsabilidade.

Estamos no meio de uma crise no humor. O mundo está cheio de piadas, mas também de gente incapaz de levá-las na brincadeira. Nas redes sociais, parece que a comédia oscila num pêndulo rápido entre a graça e o escândalo.

A.O. Scott, jornalista e crítico de cinema do “New York Times”.

Quem pode contar qual piada, e às custas de quem? Quem pode rir? Um homem tem permissão para contar uma piada de estupro? E uma mulher? Os comediantes gays, negros ou judeus – ou pertencentes a quaisquer outros grupos sociais oprimidos, marginalizados ou mal compreendidos, ou mesmo os comediantes brancos – têm o direito exclusivo de tirar sarro de seu próprio grupo ou precisam tomar cuidado também? 

Está bem claro que essas questões não são só sobre o que acontece na televisão ou no palco de um stand-up, sob o holofote.

Há muitas causas para se indignar, incluindo o fato de que as pessoas continuam se indignando. 

Você se chocou com as piadas de pedofilia de Louis C. K. em seu monólogo para o “Saturday Night Live”? Se ofendeu com a esquete de Lena Dunham para a revista “New Yorker” em que compara seu namorado judeu com um cachorro? Se enfureceu com os tuítes de Trevor Noah, comediante sul-africano designado como herdeiro do “Daily Show” de Jon Stewart, que fez piadas maldosas com Israel, os judeus e as “gordinhas”? 

Se sim, você está em boa companhia – ou, se não é boa, pelo menos é barulhenta. Se não, você provavelmente deve ter sido hipócrita de reclamar de qualquer outra coisa também. A arte da indignação exige que se vire o jogo com frequência, numa forçação de barra constante com as analogias, a iteração infinita das palavras “mas e os...?”.

Época mais simples

Talvez a comédia tenha se tornado o modo pelo qual discutimos os assuntos que são dolorosos demais, desconfortáveis ou explosivos demais para tratarmos de qualquer outro modo.

A.O. Scott, jornalista e crítico de cinema do “New York Times”.

De nada adianta sentir saudades de uma época mais simples, mas é possível imaginar que houve um tempo em que essas coisas eram mais claras. Durante as décadas da metade do século 20, para ouvirem suas piadas, as pessoas circulavam por lugares segregados por raça, gosto e gênero. Os homens fumando nos bares podiam rir de piadas sujas sobre mulheres sem o constrangimento de ter uma mulher presente de verdade. O humor racista podia correr livre pelos country clubs onde os únicos negros eram os garçons e os carregadores de tacos no golfe. Com poucas exceções, os humoristas afro-americanos ofereciam seus serviços no “Chitlin’ Circuit” [como era chamado o circuito das casas em que era seguro para eles se apresentarem], e os judeus ficavam em sua maior parte no “Borscht Belt” [região majoritariamente judaica no estado de Nova York]. 

A televisão punha em prática essas divisões também, enquanto mantinha seus ideais puritanos de decência. Mas, conforme tentava expandir e homogenizar uma plateia variada e dividida, o meio também ajudou a derrubar costumes antigos e restritivos. 

Um público norte-americano mais amplo foi apresentado a Flip Wilson e George Carlin, Joan Rivers e Richard Pryor. Comediantes como esses podiam ser, na TV, ao mesmo tempo cultura dominante e contracultura. E, se às vezes eles se debatessem contra os limites do formato, se metendo em problemas por causa de piadas de teor picante ou político demais, seus novos fãs sabiam que, fora da TV – nas apresentações ao vivo ou em disco, para um público entendido ou um porão com os seus amigos –, eles podiam forçar ainda mais esses limites.

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Parecia evidente, ainda que por vezes alegórico, qual era o alvo que eles estavam combatendo: o “sistema”, o “establishment”, os agentes do poder centralizado oficial. 

Lenny Bruce se tornou um mártir da liberdade de expressão porque foi ameaçado com censura e cadeia por fazer piadas que nos dias de hoje mal exigiriam um aviso parental na TV a cabo.

Pryor deixava as emissoras tão apavoradas que elas televisionavam suas apresentações ao vivo com um atraso de 10 segundos para que quaisquer palavras ofensivas pudessem ser censuradas com bipes. E ele e outros comediantes negros – antecessores como Dick Gregory e Redd Foxx, e herdeiros como Eddie Murphy e Chris Rock – mudaram a cara do “humor étnico”. Eles foram além do insulto fácil e da caricatura ignorante em prol do confronto e da análise, forçando os ouvintes a refletir sobre as contradições espinhosas da identidade nos EUA, e a rir delas juntos.

Mudanças

Essas contradições só foram se multiplicando, e a fantasia de um público unido para rir de uma autoridade austera acabou desfeita. 

A censura vinda de cima, aplicada pelo Estado ou por estações cautelosas, é uma memória distante. Agora, no “The Daily Show”, os bipes fazem parte da piada e dá para ouvir cada palavra se você for assistir a um segmento dele online no dia seguinte.

Não me levem a mal. Não estou lamentando por uma queda nos padrões de “decência”, nem, menos ainda, pela dessegregação da cultura. Pelo contrário: o fato de que estamos todos face a face e envolvidos nos negócios um do outro é uma das grandes conquistas da democracia. 

O “sistema” não vai determinar mais o que podemos ou não dizer, o que significa que é tarefa nossa definir isso agora. Não é uma situação das mais confortáveis. Estamos menos protegidos contra o humor cruel e ofensivo, por mais que as definições do que é que constitui crueldade e ofensa estejam sujeitas a um debate vigoroso e muitas vezes pouco cordial.

Que esse debate tenha se tornado mais intenso e insistente nos últimos anos é em parte consequência das próprias mudanças culturais e tecnológicas que alimentaram a expansão da comédia. 

O Twitter pode funcionar como uma versão global das noites de microfone aberto. Mas também é um vespeiro de “hecklers” [como chamam os espectadores que fazem comentários maldosos em shows de stand-up], um refúgio para aqueles que levam tudo ao pé da letra e um megafone capaz de transformar sussurros cínicos em gritos irritantes. 

Todo mundo em qualquer boate tem um smartphone, o que significa que os trechos mais feios ou brilhantes do seu repertório podem ser compartilhados, e a piada pode viralizar. O que também quer dizer que você não tem para onde fugir.

É difícil ponderar essas questões sem pensar no “Charlie Hebdo”. Ao passo que o assassinato de editores e cartunistas é o tipo de evento que frustra qualquer tentativa de comparação – um “tuitaço” humilhante em nada se parece com os disparos de um fuzil automático –, o atentado de janeiro contra os escritórios da revista satírica em Paris reacendeu as discussões duradouras já na Europa e na América sobre os limites da liberdade de expressão e a ética do humor. 

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Nos meses após o massacre, após o horror inicial e as expressões internacionais de solidariedade do tipo “Je suis Charlie”, as atenções se voltaram ao conteúdo da revista em si, que não tinha apenas desenhos representando o profeta Maomé, mas também o que parecia ser um padrão de preconceito racista e islamofóbico.

Ninguém está querendo justificar violência ou sugerir que a liberdade de expressão seja tolhida. Mas o “Charlie Hebdo” encontrou críticos onde também encontrou defensores, em meio à legião de europeus e americanos que por muito tempo estiveram contentes em ignorar sua existência. 

Numa palestra amplamente noticiada, Garry Trudeau, o criador da tirinha “Doonesbury” e patrono dos cartunistas satíricos norte-americanos, criticou o “Charlie” por seus “golpes baixos”, por tomar como o alvo de riso os mais vulneráveis e impotentes, em particular os muçulmanos e imigrantes franceses. 

Os comentários de Trudeau foram repetidos mais tarde, na primavera, quando um grupo de escritores, incluindo Peter Carey e Francine Prose, boicotaram o evento de gala da PEN [organização sem fins lucrativos que promove a literatura nos EUA] em que os membros sobreviventes da equipe da revista receberam um prêmio por liberdade de expressão.

Havia um tanto de farisaísmo de ambos os lados da discussão, e um monte de gente de repente virou especialista sobre os sentimentos dos muçulmanos da França e sobre as tradições republicanas seculares do humor francês. 

As mesmas imagens foram usadas para provar argumentos opostos. As caricaturas raciais – de um ministro negro do governo francês como um macaco; de jovens nigerianas raptadas pelo Boko Haram como mães solteiras exigindo pensão – eram interpretadas tanto como zombarias às custas do pensamento racista quanto como exemplos venenosos de racismo. 

Se isso parecer meio forçado ou francês demais, pensemos então na capa da “New Yorker” do verão de 2008 que representava Barack e Michelle Obama como terroristas comemorando na Sala Oval. Era uma paródia óbvia de uma fantasia assombrosamente comum entre a direita sobre os Obamas. Mas era óbvio também que reproduzia igualmente essa fantasia.

E aqui vive a crise do humor: nas questões espinhosas, quase filosóficas, sobre intenção, contexto e poder social. 

É fácil formular uma distinção entre a sátira redentora que tem seus alvos em cima, mirando os assentos de privilégio e autoridade, versus o tipo que faz “bullying” contra os indefesos. Mas é um pouco mais difícil entender onde fica o lado de cima e traçar uma distinção clara entre solidariedade e agressão. Talvez seja virtualmente impossível fazer uma piada sobre racismo que não seja também uma piada racista.

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Isso quer dizer que devemos nos calar? Ou só fazer comédia que não ofenda ninguém? Ou insistir que ninguém deva se ofender com nada? Que “É só uma piada” ou que “Você não entendeu” deviam ser o fim da discussão? Não, absolutamente. 

Só quer dizer que o riso é algo que todos devíamos levar a sério. E também que devíamos todos relaxar um pouco.

Tradução de Adriano Scandolara.
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