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Vista aérea da favela de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro
Vista aérea da favela de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro| Foto: va/se/VANDERLEI ALMEIDA

A favela do Rio das Pedras, em Jacarepaguá, veio para os holofotes por causa de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz. Que as favelas não são dominadas pelo Estado brasileiro, não é exatamente uma novidade. O problema mais antigo e mais famoso é o do tráfico, uma vez que até as pedras sabem que as facções exercem controle territorial, tanto quanto as milícias. Na verdade, as facções dos narcotraficantes também deveriam ser chamadas de milícia, pois constituem exércitos privados que controlam territórios habitados, sem nenhum respeito pelas leis do Brasil ou pelos Direitos Humanos.

Antes de Flávio Bolsonaro, as milícias tiveram uns cinco minutos de má fama por causa de Tropa de Elite 2. Aí o brasileiro comum, afastado da Zona Oeste carioca, passou a ter uma noção do que é uma milícia carioca: algo como policiais corruptos cobrando para não atacar, e mantendo monopólio de certos serviços piratas. Mas isso é muito pouco, perto da dimensão das atividades das milícias.

O que é favela?

A classe média tradicional, que mora em prédios regulares, usa o conceito de favela de uma maneira bem consistente. Favela é uma porção de casas feitas de modo irregular. Um barraco sozinho não é uma favela. Quando ricos constroem às pressas casas em cima de manguezal ou sobre a areia da praia, e depois subornam todo mundo pra não botar abaixo, a classe média chama o local de favela de rico. Se um bairro regular decaiu e passou a ser habitado por pobres, segue sendo chamado de bairro. E aqueles casebres insalubres que a prefeitura regulariza anos depois só pra cobrar IPTU a classe média chama de favela também.

Já para os habitantes desses locais irregulares, o critério é diferente. Se moram numa casinha à beira do asfalto, não dizem que moram na favela dos seus vizinhos, com os quais às vezes dividem paredes. Dizem que moram na rua tal. Favela é o que não tem asfalto nem logradouro.

O mercado de casas irregulares é bem parecido com o formal: pouca gente constrói, a maioria compra ou aluga. E o imóvel entendido como exterior à favela é mais caro. Pode parecer besteira, mas para receber compras faz toda a diferença. Uns têm CEP, outros não. Uns têm que fazer alguma mágica para botar a geladeira dentro de casa, outros não.

Nas favelas da Zona Oeste carioca, área de milícia, a coisa se embaralha. Tem até shopping. Shopping pequeno, mas shopping, com placa escrito “shopping” e tudo. Nesse cenário muito peculiar, o marco favela versus não-favela é bem mais complicado. Não há nada com mais cara de não-favela que apartamento e shopping. Botam asfalto na porta. E de fato essa população da favela (favela em classemediês) considera não-favela os prédios de miliciano.

Anos atrás, minha falecida avó resolveu se vingar da vizinha, uma comerciante sertaneja egressa do Rio das Pedras que vivia botando defeito nas netas dela. (A neta carioca, sardenta, tem a “cara manchada”, e a da Bahia é “magra”. Para sertanejos, magreza é indício de doença ou fome.) Indignada, vovó sacou da gaveta, como se fosse uma arma nuclear reservada para graves conflitos com a vizinha, uma matéria de O Globo mostrando que o condomínio do apartamento comprado pela filha dela, do qual ela contou muita vantagem, era na verdade feito por milicianos. Para a minha avó, isso era um indício incontestável de que a filha da vizinha comprou um apartamento na favela. Mas a vizinha, egressa do Rio das Pedras, nem tchum: sabia que era de miliciano, e dizia que não era favela, não, porque era tudo arrumado. Até mesmo depois da queda de prédios da Muzema o povo continua comprando. Afinal, do montão de prédios que eles construíram, só aqueles caíram, e a reputação de um miliciano-empreiteiro pode cair sem afetar a dos demais. É aquela visão de mundo personalista que Sérgio Buarque chamou de cordialismo.

No fim das contas, já depois de a minha avó morrer, a vizinha se cansou de pagar IPTU, água e luz, e foi para um prédio desses. É tudo arrumado e traz óbvias vantagens orçamentárias. Tem a taxa da milícia? Claro, mas sai em conta.

Período eleitoral

Eu nunca tinha estado no Rio das Pedras em época de eleição. Li nos jornais que há restrição, da parte dos milicianos, de quem pode fazer campanha lá, então fiquei atenta. O primeiro material eleitoral que vi foi um calhambeque com o nome de um sujeito (não lembro) e o número de urna 65065. Microscópico, estava o símbolo do PCdoB, possivelmente em cumprimento de alguma regra eleitoral. O calhambeque devia ser dele mesmo, pois depois tive a oportunidade de ouvir, de dentro da casa dos meus parentes (tem quarto que dá para a favela), o comício dele.

Ele falava da importância de os moradores do Rio das Pedras elegerem um morador do Rio das Pedras, porque tiraram a linha de ônibus para Madureira e ninguém fez nada. O comerciante sai do Rio das Pedras para comprar barato, em atacado, em Madureira, e agora precisa fazer baldeação. Fora que era um orgulho para os moradores do Rio das Pedras aquele ônibus, o primeiro a ter escrito “Rio das Pedras” no letreiro.

Aí pronto: se esse cara se elege, vem um monte de analista abestalhado interpretar isso como vitória da esquerda, como se ônibus para Madureira fosse algo ideológico. Algo interessante seria descobrir por que aquele cara escolheu o PCdoB para se candidatar, ou, melhor dizendo, descobrir qual é o critério do povo para escolher partido quando vai se candidatar. Minhas fichas estão no cordialismo; acho que ele devia ter algum chapa no PCdoB, e é tudo relação pessoal, cordialismo.

Esse foi um dos dois candidatos que eu sei que estiveram no Rio das Pedras pedindo voto. Teve carro de som tocando jingle de alguns outros. O outro candidato, com mais presença, foi Waldir Brazão, cujo sobrenome aparece em manchetes sobre a milícia, e tem até Brazão acusado de mandar matar Marielle.

Estava eu realizando uma típica atividade de lazer não etílico destas bandas — tomar açaí, ou a sensacional casquinha de açaí, que só vi em Jacarepaguá — quando apareceu o desfile. Pareciam querer imitar um cortejo real em tempos motorizados. Em vez de cavaleiros, à frente iam dois motoqueiros empinando as motos barulhentas, cada qual com uma periguete na garupa. Em vez de uma carruagem, ia numa caçamba, em pé, um senhor bonachão distribuindo acenos à multidão. Gente seguia, e em fez de fanfarra tinha o jingle festivo que o apresentava: “Eu sou Waldir Brazão.”

Terminado o açaí, voltei pra casa pensando primeiro que era um absurdo um ficha suja poder se candidatar. Depois pensei que, se não pudesse, aquele senhorzinho bonachão estaria no mesmo lugar, fazendo o seu cortejo, mas pedindo voto para um poste. E depois eu soube que a situação meio que já era essa, pois tem um monte de Brazão no Rio das Pedras, e aquele era um estreante. O Globo fez matéria sobre ele. Terminou eleito. O colega do PCdoB, não.

Se a milícia é tão poderosa, por que ainda faz campanha, em vez de simplesmente mandar o povo votar, já que a votação por seções não é secreta? E qual será o critério para determinar quem pode e quem não pode fazer campanha? Há muita coisa que não sabemos, e ninguém pergunta, já que as ciências sociais estão cheias de pseudocientistas que têm certeza de tudo.

Orçamento pesa no voto

A propósito: outra pérola que ouvi de analistas na TV foi que o voto de Crivella era o tal do voto evangélico. Quem se empenhar só um pouquinho em tentar entender os evangélicos saberá que existe muita denominação que odeia a Universal. De minha parte, só ouvi um parente carioca pensando em votar em Crivella no primeiro turno, e é logo um protegido de Xangô. Ele tem em vista a redução de IPTU prometida por Crivella.

Naturalmente, IPTU não é um motivo importante para a ex-vizinha da minha avó — que inclusive é da Universal, só vê Record e só lê revistas autorizadas pela igreja. No Rio das Pedras, tem Universal e tem uma porção de igreja de nome esquisito. Achei até uma “Socorro dos Vasos”! Quantos católicos, macumbeiros e evangélicos não-universais morarão nos condomínios de milícia? Bom, esses moradores não terão o IPTU como um motivo para votar em Crivella, e talvez odeiem a Universal.

(Parêntese: a perseguição à macumba foi, no Rio, inaugurada pelo falecido traficante Guarabu, da Ilha do Governador, evangélico; milícia não é necessariamente evangélica, e no Rio das Pedras tem “tenda espírita” também. O meu parente protegido por Xangô se diz espírita e acha que só na Bahia tem macumbeiro, porque macumbeiro é quem mata bicho. Já a minha prima diz que carioca não mata galinha porque é preguiçoso, e faz despacho com frango assado de padaria. Excetuado o “espírita”, todos os circunstantes concordaram com ela e confirmaram que há muito frango assado com farofa em despacho na Zona Oeste. Mas será que os “espíritas” deixam de matar só por preguiça, ou por princípios anti-macumba? Mistério.)

Aí, quando vários indivíduos de classe média com o perfil do meu parente “espírita” votam em Crivella, lá vêm os analistas querendo dizer que vota em Crivella porque é branco, hétero e sei lá mais o quê. Mas é o IPTU! Se a crente parda da favela e o rico da Zona Sul não votam em Crivella, não é porque ambos estão se lixando pro IPTU: é por causa da raça, consciência de classe ou esclarecimento leblonino.

Ao fim, é provável que Paes ganhe. Ele é da Zona Oeste, dizem por aqui que trouxe muito ônibus. Talvez até o ônibus para Madureira, que é o que importa.

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