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Estátua de um elefante, símbolo do Partido Republicano, é exibido do lado de fora de um evento republicano em Iowa| Foto: Mario Tama/Getty Images/AFP

Não é muito fácil agradar, ao mesmo tempo, ao filósofo socialista e professor da Universidade de Harvard Cornel West e ao editor do portal The American Conservative e autor do best-seller “A Opção Beneditina” Rod Dreher. Pois o professor Patrick J. Deneen, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, realizou essa façanha.

Em 2018, seu livro “Por que o liberalismo fracassou?”, ultrapassou as fronteiras de Indiana e do universo conservador e chegou às mãos do ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, recebendo várias resenhas positivas em jornais como The New York Times e The Walt Street Journal. No Brasil, foi traduzido pela Editora Âyiné.

Quase três anos depois do lançamento, Deneen afirma que vê alternativas ao que ele chama de “dois projetos liberais” que, hoje, dominam a política - tanto o da esquerda quanto da direita, ambos nocivos para a construção de uma cultura de solidariedade. Para ele, estes projetos, aliás, são responsáveis pela derrocada das “artes liberais” na educação.

Embora não veja a figura de Donald Trump com simpatia, defende que o Partido Republicano pode tirar lições positivas do último quadriênio da Casa Branca, e que os próximos anos de Joe Biden podem, sim, ser positivos para a América, contando que a oposição detenha o Senado. “A última coisa que um país dividido precisa é ter 51% da população mandando nos outros 49%”. A seguir, sua entrevista à Gazeta do Povo.

Quando foi lançado, em fevereiro de 2018, seu livro foi bem recebido por intelectuais de esquerda e de direita. O que explica este público tão improvável?

A maior parte do mundo se refere ao termo “liberalismo” de uma forma específica: como sinônimo do liberalismo clássico, econômico, libertário. Penso que o livro teve tanta repercussão nos Estados Unidos porque tratei essas pessoas como "liberais", em um contexto no qual elas são chamadas de conservadoras.

Tudo o que fiz foi usar o ‘rótulo’ que a maior parte do mundo usa para argumentar que a divisão política americana se dá, na verdade, entre duas versões do liberalismo: o que se entende como "clássico" e o que aqui chamamos de progressista.

Meu argumento é que ambos os lados estão, na verdade, profundamente comprometidos com um aspecto dessa ideologia, divergindo apenas quanto aos meios adequados para a libertação do indivíduo. Os liberais conservadores argumentam que é o mercado, os progressistas pensam que é através do Estado.

Acredito que os dois aspectos trabalham juntos. Nós passamos os últimos 50 anos nos Estados Unidos dizendo que estas são as duas principais opções políticas, enquanto as assistimos trabalhar juntas para criar um mundo cada vez mais fragmentado, sem qualquer senso de bem comum, destruindo todas as instituições através das quais as pessoas verdadeiramente florescem – a família, as comunidades, a religião, as igrejas e etc.

Três anos depois do lançamento, o senhor acredita que o livro precisa ser atualizado?

“Por que o liberalismo fracassou?” chegou em um momento no qual a população começava a rejeitar esses dois lados do liberalismo: o econômico e o progressista. Foi o que deu origem ao Brexit, o que elegeu Donald Trump e o que tem sido chamado de populismo. A ideologia estava pagando seu preço.

O que eu não sabia quando escrevi o livro foi que o que eu estava descrevendo enquanto uma teoria econômico-filosófica acabaria acontecendo na política. Se eu fosse revisar a obra agora diria “veja, agora temos uma alternativa”.

O que nós temos visto no Ocidente é o reavivamento dos lados que rejeitam o liberalismo: uma nova forma de marxismo e de conservadorismo.

O marxismo e o conservadorismo não são forças ainda mais opostas? O que pode surgir de bom desse debate?

Como opostos ao centro individualista do pensamento liberal, o marxismo e o conservadorismo partilham muita coisa, embora só consigam caminhar juntos até certo ponto da jornada: eles concordam que não gostam do liberalismo e que deve haver um cuidado especial para com os que estão em desvantagem.

A diferença, é claro, é que, do ponto de vista de Marx, uma sociedade igualitária requer a eliminação ou, ao menos, a reestruturação de todas as instituições. Marx defendia a eliminação das nações, o fim da história no qual não haveria Estados, nem religiões – o ópio do povo; o próprio Engels dizia que isso causaria a eliminação da família, “um efeito secundário do capitalismo”.

O conservadorismo, por sua vez, diz que sem essas instituições não pode haver nenhuma forma concreta de igualdade. As pessoas precisam dessas instituições para desenvolver certos traços de caráter que nos tornam seres humanos que podem, de fato, coexistir em sociedade, crescer e prosperar. Para isso, precisamos de apoio local das instituições, e não do Estado.

Ocorre que, com o domínio do liberalismo, a esquerda que está efetivamente preocupada com o bem-estar do povo não está bem representada nos Estados Unidos. Atualmente, a esquerda americana é completamente definida pelas políticas "igualitárias" de identidade. E o fato de que esse compromisso com o igualitarismo seja expresso muito mais no desejo de ter igualdade de identidade - de gênero, raça, etc -, na prática mantém as estruturas de classe em seus lugares.

O resultado disso foi expresso na nossa última eleição; basta ver quem apoiou Donald Trump: trabalhadores de construção, carpinteiros, operadores de máquinas, sindicalistas e fazendeiros. E quem apoiou Joe Biden? Professores universitários, jornalistas, artistas e intelectuais. Quem se realmente beneficia das estruturas de classe existentes está usando as políticas identitárias para acobertar seu profundo comprometimento com o status quo. Como o tipo de gente que não quer ter restrições às próprias criações.

Segundo a lógica conservadora, nós nunca seremos completamente iguais - e é justamente por isso que precisamos de estruturas para proteger a classe trabalhadora e, em alguns casos, isso pode significar restringir a imigração, criar impostos sobre produtos importados, investir na indústria nacional. Esses argumentos, é claro, são tachados de racistas pelas pessoas com as credenciais destes círculos.

O curioso é que são medidas que apoiam o benefício econômico da classe trabalhadora agora são vistos como problemáticos por aqueles que veem tudo pelas lentes da identidade. A esquerda contemporânea está muito menos acostumada a pensar em primeiro lugar na classe, e o foco na identidade acaba por permitir que a desigualdade continue.

Diante disso, penso que vai ser interessante ver uma geração de políticos que seja capaz de entender o que o povo realmente quer. E aí, haverá mais dos debates clássicos entre esquerda e direita, todos atentos ao que as pessoas verdadeiramente precisam. Contanto que as instituições continuem como estão.

O senhor está satisfeito com o resultado da eleição presidencial nos Estados Unidos?

É preciso considerar que temos um longo caminho de recontagens e batalhas judiciais para enfrentar. Também é possível – eu realmente não sei – que descubram que alguns desses envelopes eram inválidos. Não é à toa que a França não permite votos por correio, a não ser em situações extremamente excepcionais: porque são facilmente manipuláveis.

Mas deixemos isso de lado - digamos que Joe Biden permaneça com a vitória. O fato é que nós ainda não sabemos o verdadeiro resultado da eleição porque duas das cadeiras do Senado americano não serão decididas até janeiro.

Nossos olhos estão agora voltados para o estado da Georgia, onde Joe Biden ganhou por uma margem muito estreita. Se o Partido Republicano detiver ao menos uma dessas cadeiras, formando uma maioria mínima, teremos um governo dividido; e penso que este cenário seria muito bom para o país.

Muita gente vai ter que concordar para que se faça qualquer coisa – e eu acho que é exatamente disso que precisamos agora. Quando você tem uma nação dividida, a última coisa que você precisa é ter 51% do país mandando nos outros 49%.

No entanto, caso as cadeiras do Senado sejam completamente divididas - 50% para cada partido -, Kamala Harris será chamada para dar o voto decisivo. A proposta de alguns membros do Partido Democrata é de basicamente mudar todo o nosso sistema político, acrescentando estados que dariam vantagem à legenda, mudando o número de cadeiras na Suprema Corte de forma a beneficiar o partido e eliminando a regra dos 60 votos para a aprovação de leis no Senado.

Tudo isso faria com que metade do país deixasse de ser representada no governo federal pela próxima geração. Um cenário gravíssimo que pode desembocar em rebelião. Seria um pesadelo.

O que deixou Trump tão vulnerável dessa vez?

Bom, acho que todo mundo sabe o que aconteceu. É uma figura extremamente volátil, um homem de instintos mais do que de reflexões. Esses instintos lhe serviram bem em 2016, quando ele percebeu que havia uma parte do eleitorado que ninguém estava ouvindo, mas mantê-los fora de controle afastou muita gente.

A verdade é que, se nós estivéssemos apenas avaliando as políticas dos quatro anos de Donald Trump, se ele fosse um pouco mais gentil, muito mais gente votaria nele. Pense bem: ele cortou impostos, nós não fomos à guerra, houve acordos de paz no Oriente Médio – e nenhum presidente foi indicado ao Nobel da Paz pelo que ele fez.

Foi realmente a “persona” de Donald Trump que afastou muitos possíveis eleitores, e, é claro, sua resposta ao coronavírus. Na verdade, penso que suas medidas não foram tão diferentes do que as que um democrata teria tomado, mas Joe Biden certamente teria dito “usem máscara”.

É importante dizer que Donald Trump perdeu também porque as principais instituições americanas estavam absolutamente dedicadas a arruinar sua presidência desde o dia da sua candidatura. O que é curioso é que, na prática, ele aumentou seu número de votos. Depois de quatro anos sendo acusado de racismo, ele aumentou seus votos entre o público negro e latino.

Isto tudo posto, penso que Trump foi razoavelmente bem. Se eu fosse um democrata hoje, estaria bastante preocupado. Um republicano um pouco menos tóxico e mais diplomático tomaria de volta todos os estados perdidos pelo presidente, criaria ainda mais raízes entre as verdadeiras minorias – a classe trabalhadora -, enquanto o Partido Democrata se torna o partido da elite. E os votos estão com o povo.

Donald Trump, então, tem algo a ensinar ao Partido Republicano?

Ele ensinou que não há apoio real no povo para o liberalismo clássico. Desde a época de Ronald Reagan, a legenda teve três pilares: o econômico, calcado no liberalismo clássico; a política militar extremamente forte, de oposição ao comunismo durante a Guerra Fria; e, por fim, os conservadores, especialmente cristãos evangélicos, católicos etc.

O que Trump fez foi quebrar a ortodoxia clássica do partido e dizer: ‘eu não quero os Estados Unidos lutando guerras que não sejam efetivamente em defesa da nação’. É primeiro presidente a não começar uma guerra desde Ronald Reagan – e ninguém fala disso -, além de se livrar do militarismo e de parte da agenda libertária característica da legenda.

Por isso, penso que o futuro do Grand Old Party é se tornar um partido para a os trabalhadores, mais aberto à social democracia no campo econômico, provendo saúde básica, menos aventuras militares e com capacidade de conversar com essa classe. Acredito que o Partido Republicano vai mudar depois do Trump: haverá uma batalha e ele sairá mais unido, enquanto os democratas ficam severamente divididos entre radicais e moderados.

Muitos líderes que dizem falar pelos trabalhadores acabam se tornando populistas. Como evitar este mal?

Depende do que você entende por populismo. Eu tendo a acreditar que populismo é o termo que as elites costumam usar quando não gostam dos resultados democráticos. Penso que o aspecto com o qual devíamos nos preocupar que é a irresponsabilidade: ‘vamos te dar dinheiro, imprimir cheques, punir os ricos, etc’.

Contudo, há algo a se elogiar sobre o que chamamos de populismo: se você quer ter um governo responsável, que de fato apoie as condições que as pessoas normais precisam para prosperar, algum nível de ‘populismo’ é necessário – especialmente o que restringe o elemento oligárquico comum a toda sociedade.

O problema da América é que nossa oligarquia diz que é igualitária, e o populismo surgiu para lutar justamente contra estes grupos. O problema, a meu ver, é que os "bons" populistas - os partidos que lutam pelo povo - carecem de bons líderes no momento.

Muita gente disse que a pandemia do novo coronavírus decretou o fim do neoliberalismo ao expor a dependência de nações de seus sistemas públicos de saúde e auxílios financeiros dos governos. A crise, afinal, ajudou a mostrar que o liberalismo fracassou?

Penso que a pandemia revelou diferenças culturais muito profundas entre os países, com reflexos políticos. Veja como as sociedades mais liberais foram as que lidaram pior com o vírus - e os Estados Unidos são um dos exemplos mais proeminentes.

Quanto mais individualista for a nação, menos provável é que tenha sido capaz de implantar as medidas necessárias para impedir o contágio; enquanto quanto povos menos individualistas – como o Japão e a Coreia do Sul – tiveram, até onde sabemos pelas notícias, um desempenho muito melhor.

O ponto é: quanto mais solidária é a cultura, melhor a comunidade lidou com o coronavírus, ao passo que grupos movidos pelo "espírito do capitalismo" se deram pior. O coronavírus só ajudou a revelar esses aspectos. Não sei dizer se irá transformá-los.

Muito foi dito sobre o tal “mundo pós-coronavírus” e há quem creia que ele será mais autoritário. O que o senhor vê pela frente?

Vejo que as sociedades mais individualistas são as que mais temem as possíveis consequências autoritárias do vírus. E, por essa razão, parte dessas pessoas prefere negar a realidade, não usar máscara, não manter distância e, assim, demonstrar sua preferência pelo que elas entendem como liberdade ao invés de considerar o perigo da doença.

Eu, por exemplo, vivo em uma parte do país na qual as pessoas praticamente te olham com desaprovação se você usar uma máscara. Quando vou para áreas mais populosas do Indiana, é possível que eu seja a única pessoa usando uma.

Por outro lado, vejo que é mais provável que haja imposições autoritárias de formas menos governamentais, especialmente levando em conta o papel das grandes empresas de tecnologia, que aumentaram seus níveis e capacidade de vigilância das pessoas.

Até as universidades criaram sistemas que alertam caso alguém não esteja usando uma máscara ou mantendo a distância, fomentando que professores, funcionários e alunos sejam denunciados anonimamente. É o tipo de coisa que, em tese, é para evitar que as pessoas sejam irresponsáveis, mas soa como um sistema de vigilância comunitária importado da Alemanha Oriental. Não é o tipo de cultura que fomenta a verdadeira solidariedade.

Seu livro argumenta que o liberalismo acabou com as “artes liberais” - o que, no Brasil, entendemos por “ciências humanas”. Contudo, o que parece é que variações do marxismo dominam por toda parte. Qual é a explicação para isso? 

Meu argumento é que a premissa das artes liberais, que precede tanto o marxismo quanto o liberalismo, era de que você seria educado para se tornar uma pessoa livre. E, a partir dessa compreensão, enraizada na tradição clássica, grega e romana, e em toda a cristandade, a liberdade é o desenvolvimento de virtudes para governar a nós mesmos; desenvolver um tipo de caráter através do qual nós dominamos nossos apetites, a parte ruim da nossa natureza. E isso vale para os indivíduos e para nações, como uma continuidade entre as artes liberais e o tipo de educação que deveria moldar e guiar um povo.

Mas, no mundo moderno, a liberdade foi redefinida. Agora, significa ser livre para fazer o que eu quero e a definição antiga soa como opressão; um obstáculo a ser superado. Assim, as artes liberais são rebaixadas.

O que se torna predominante nas universidades são as disciplinas ligadas à matemática, ciências e tecnologia (STEM), porque permitem que o homem, literalmente, domine a natureza; e, para as humanidades, resta essa filosofia libertadora que, de volta à nossa conversa sobre marxismo, que pretende nos livrar de todas as instituições tradicionais.

Melhorar a educação, então, passa por ressignificar o conceito de liberdade?

Este é o ponto central de todo o meu argumento. As sociedades que abraçam essa ideia nova de liberdade não devem se surpreender quando tentam dar às crianças uma herança e, ao invés disso, deixam dívidas. Porque, quando você faz tudo o que quer, não dá a mínima para a próxima geração, cria crises ambientais porque consome o que quer sem olhar para o futuro. Você não tem mais filhos porque os enxerga como uma limitação.

Não importa se você é de esquerda ou de direita: repare que as principais doenças da nossa civilização são consequência desse ethos de liberdade que nós injetamos no sistema educacional. Não é que nós não educamos mais, mas mudamos a natureza da nossa civilização. Resgatar as humanas requer a coragem de falar sobre virtudes. 

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