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O poliamor poderia ser considerado como uma “distração”, que não chega a resolver as angústias do ser humano. Imagem ilustrativa.
O poliamor poderia ser considerado como uma “distração”, que não chega a resolver as angústias do ser humano. Imagem ilustrativa.| Foto: Mangostar/Bigstock

A cidade de Somerville, no estado americano de Massachusetts, fez recentemente uma série de pequenas mudanças na legislação que trata das chamadas parcerias domésticas, leis que garantem direitos a casais não casados oficialmente.

Ao retirar expressões como “ele,” “ela,” “ambos” e “duas pessoas” de seus códigos legais, e substituí-los por palavras neutras que não restringem a quantidade de indivíduos envolvidos na relação – no requerimento oficial de reconhecimento de parceria doméstica há espaço para até seis assinaturas – o conselho municipal, equivalente americano das câmaras de vereadores, na prática reconheceu como válidos perante a lei os relacionamentos poliamorosos.

De acordo com um dos conselheiros municipais de Somerville, Lance Davis, a mudança foi provocada em parte pela pandemia de Covid-19. Sem uma regulamentação específica, pessoas não casadas oficialmente não poderiam, por exemplo, se beneficiar do plano de saúde ou visitar o (a) parceiro (a) internado com a doença por não constituírem uma família. “[Esta mudança] valida a existência deles, valida a forma como eles se amam”, disse Davis, em entrevista a uma emissora de TV local.

Mas para especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo a medida, mais do que garantir direitos a uma pequena parcela da população, pode trazer prejuízos em médio e longo prazo, principalmente no campo da saúde mental tanto dos próprios adeptos do poliamor quanto para as crianças nascidas de relacionamentos poliamorosos.

É o que afirma a psicanalista e psicóloga especialista em Psicologia Clínica (PUC/RJ) e Neuropsicologa (UFRJ) Iane Kestelman. Ela explicou que apesar de a ideia do poliamor não ser nenhuma novidade – “existiu, existe e sempre existirá” – o problema reside em tentar normatizar essa forma de relacionamento sem se levar em conta os impactos que isso trará nas futuras gerações.

“Desde que a gente se constituiu enquanto civilização a família tomou esse lugar de estruturar a educação, e a referência pai/mãe, para a psicanálise, não necessariamente é um lugar biológico. No poliamor o que se coloca como uma questão é quantas pessoas cumprirão essa função. E de que maneira a estrutura psicológica de uma criança é capaz de lidar com isso. Eu tenho 40 anos de experiência nesse trabalho, sou psicóloga clínica, trabalho todos os dias no meu consultório nessa área. O que eu vejo é que as crianças e inclusive os adolescentes cujas famílias não são nem famílias que vivem poliamor, mas cujas famílias estão totalmente desestruturadas do ponto de vista das relações amorosas dos pais, essas crianças chegam para mim com prejuízos absurdos. Muitas destruídas psicologicamente,” disse.

Perfil poliamoroso

E quem são esses adultos que escolhem viver em relacionamentos amorosos com mais de uma pessoa de cada vez? Possivelmente indivíduos que não conseguem ou não querem amadurecer, nem enfrentar as angústias típicas da vida adulta.

Para a psicóloga formada pela USP e psicoterapeuta de casais Lidia Aratangy, pode ser estabelecida ainda uma outra relação: “Poliamor tem muito a ver com o medo do abandono”, enfatizou. Segundo ela, quanto maior a entrega entre os parceiros, maior o medo da perda. E é aumentando o número de parceiros que os adeptos do poliamor buscam diluir o sentimento de perda.

Outro ponto abordado por Aratangy é que quem pratica o poliamor, por ampliar a quantidade de parceiros, quer encontrar algo que não existe.

“Digo isso pela minha experiência de consultório. O que as pessoas mesmo buscam é uma parceria. E ainda com a fantasia de que pode encontrar uma parceria completa para juntar os dois e fazer uma coisa inteira. Não vai, nunca. Encontrar a metade da laranja é uma besteira. Duas metades de laranja podem fazer uma boa laranjada, mas duas metades de pessoas não fazem um casal. Para fazer um casal precisa de duas pessoas inteiras, diferentes, e que as diferenças incentivem esse vínculo, e não o ameacem. Ficam dando nome, mudando a quantidade de opções, mas continua sendo sobre amor, sobre esse desejo de completude, do desejo de descansar a cabeça no peito de alguém de confiança. De chegar em casa e encontrar alguém querendo o seu colo, que nos faz sentir importante. Tenta-se com três, quatro, cinco, seis. E isso não traz completude”, reforçou.

O medo da frustração, tão comum entre as gerações mais novas, pode também ser um sentimento forte entre os adeptos do poliamor. Para Kestelman, são adultos que não aprenderam a lidar com a frustração de não poder ter tudo, um dos conceitos mais básicos quando se fala da passagem da infância para a idade adulta. Imaturos, não conseguem entender que por mais que tudo lhes seja permitido, nem tudo lhes é franqueado.

“Como se educa um filho? Dizendo coisas como ‘isso não pode,’ ou ‘isso pode, mas pode só um pouquinho, não pode tanto assim’. O sistema que a gente vive, e assim se dá no âmbito do psiquismo, é regulado por interdições, por leis, e eu não estou falando de repressão. Quando eu, adulto, não consigo dizer para mim mesmo que eu tenho que tolerar a frustração de viver uma relação de cada vez, e que essa relação, sejam tantas quantas eu tiver, vai me frustrar, e eu não quero me frustrar, eu quero cinco relações para que cada uma me complemente numa falta, estou dizendo que eu não consigo ascender da infância para a maturidade. Quando se diz para um filho ‘sim’, ‘não’, você está ensinando o quê para o seu filho? Ensinando que ele vai ter que aceitar que a vida, infelizmente, goste ele ou não, carrega uma dose significativa de renúncia e frustração. Eu acho que é disso que se trata”, detalhou a psicanalista.

Ciúmes

Para algumas pessoas, assumir um relacionamento poliamoroso é sinal de que o indivíduo, de alguma forma, é um ser “evoluído.” Não é difícil encontrar relatos de quem garante que “trabalha o ciúme” na relação a três.

Outros vão ainda mais longe, e dizem que “não existe espaço para o ciúme” no poliamor. Situações que, aplicadas à vida real, são difíceis de ter em conta como verdadeiras já que a espécie humana conta com uma propensão natural a ter ciúmes.

Como bem explicou o psicólogo e terapeuta de casais Aílton Amélio da Silva, por mais poderosa que seja a influência do fator cultural sobre uma pessoa, existem limites biológicos que levam à propensão pelo ciúme, principalmente quando se está em jogo o chamado investimento parental.

Este comportamento aparece de formas diferentes no homem e na mulher, disse Amélio da Silva. “Estudos mostram que o homem tem mais ciúme que a mulher faça sexo com outro parceiro e a mulher tem mais ciúme que o homem se afeiçoe à outra parceira. Os homens que permitiam o poliamor das mulheres, essa raça, essa variedade de homem não deixou descendentes, pois havia a grande chance de os filhos dessa relação não serem deles. Eles investiram esforço, e as crianças demoravam cerca de 11 anos para poder sobreviver sozinha. Exigia um grande esforço. Os homens não queriam investir seus esforços em filhos alheios e as mulheres tinham medo do marido se apaixonar por outra e abandonar o próprio filho, e assim a chance de sobrevivência da criança diminuiria”, detalhou.

Para Lidia Aratangy, o sentimento de ciúmes é talvez o mais primário dos seres humanos. E quando o relacionamento envolve mais de duas pessoas, garante a terapeuta, sempre vai haver um excluído.

Essa falta de simetria entre o que se está disposto a oferecer e o que se recebe na prática mina qualquer possibilidade de não haver ciúmes numa relação de poliamor.

“Você pode fingir qualquer coisa, mas o ciúme talvez seja o sentimento mais primário que a gente tem. Ciúme não tem nada a ver com posse, tem a ver com uma criança pequena do lado de fora do quarto dos pais sabendo que lá dentro tem duas pessoas que são importantes para ele e ele está excluído. Ciúme tem a ver com exclusão, não com posse. E a exclusão é muito primitiva, é anterior à posse e anterior à palavra. Ciúme nos remete a essa situação. O ciumento não tem acesso aos seus recursos mais elaborados, adultos, sofisticados, é como uma criança desamparada”, avaliou.

Do ponto de vista amoroso, as relações triangulares tendem a ser perversas, apontou Iane Kestelman. Elas trazem sofrimento porque uma das pontas desse triângulo, em algum momento da relação, sempre vai ficar de fora.

Pode não ser sempre a mesma pessoa, como explicou a psicanalista, mas quem fica escanteado tem a sensação, mesmo que inconsciente, que algo lhe está sendo sonegado. Lutar contra essa realidade, garante ela, é brigar com a lógica do psiquismo.

“O ser humano é assim, é a natureza humana. Nós somos seres marcados pela falta. E essa falta nos deixa um registro, que por mais que tenhamos muito, nós nunca temos tudo. Algo sempre precisa nos faltar para que a gente possa a partir dessa falta, mobilizar desejos e buscar sentido na vida através da busca e da realização desses desejos. Todo o tempo, nós seres humanos inconscientemente temos a sensação de que algo nos está sendo sonegado, subtraído em todos os momentos. Você imagina nas relações amorosas. Daí também advém muitas vezes o ciúme. Porque eu sempre acho que a porção de amor que me é dada é menor, menor do que eu gostaria e menor do que eu acho que mereceria. Então eliminar por decreto essas sutilezas que permeiam o imaginário coletivo, o psiquismo humano, parece-me que não é uma tarefa muito fácil,” pontuou.

O que diz a lei

Eliminar o ciúme por decreto, como disse Kestelman, realmente não é tarefa das mais fáceis. Mas mudar a legislação brasileira para tornar os relacionamentos poliamorosos aceitos nos termos da lei parece algo que está no radar de parte do legislativo.

No Congresso Nacional, um projeto de lei, de autoria do deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), defende uma nova concepção de família, estabelecida a partir das relações afetivas de mais de duas pessoas. Neste momento, o projeto de lei aguarda parecer do relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). Ganhou o apelido de Estatuto das Famílias do Século XXI.

A essa iniciativa se contrapõe o chamado Estatuto da Família, que tramita desde 2013 e é de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE). A proposta quer, a exemplo do que ocorreu com o Estatuto do Idoso e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, acelerar a adoção de políticas pública protetivas a essa “unidade-base” da sociedade. O projeto já tramitou em todas as comissões e está pronto para ser submetido ao plenário da Câmara dos Deputados.

Outra proposta tramitando no Congresso, de relatoria do deputado Alan Rick (DEM/AC), proíbe expressamente o reconhecimento da chamada união poliafetiva. O projeto de lei 4.302/2016 está pronto para ser votado pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara.

Poliamor monogâmico

A psicoterapeuta Lidia Aratangy classifica o poliamor como uma “distração”, que não chega a resolver as angústias do ser humano que busca pela sua própria completude em outros parceiros.

Mas é uma distração rápida, que “evapora”, nas palavras da especialista. E ela, mesmo rechaçando a ideia de que todo mundo precisa encontrar sua “metade da laranja” para ser feliz, diz que ainda assim vale a pena alimentar fantasias como as dos contos de fadas e seu indefectível “felizes para sempre.”

A certidão de casamento com o marido data de 60 anos atrás, mas ainda assim ela explica: não continua casada com o mesmo homem. “Só se eu fosse louca”, diz a psicóloga. E dá pistas de como seu relacionamento pode ser um exemplo de algo que, a princípio, parece impossível: uma relação monogâmica de poliamor.

“Eu sou casada. Há 60 anos. Com o mesmo homem? Só se eu fosse louca. Ele tem o mesmo RG, mas o que eu iria fazer hoje com 4 filhos, 10 netos e essa vida toda complicada com aquele moleque com quem eu me casei há 60 anos? Eu também não sou a mesma. Quantos casamentos existem num casamento de tanto tempo? Quantas vezes a gente se renovou e se modificou, e teve estranheza? De repente aquele rapaz do meu lado. Primeiro dá uma estranheza. Só que se depois vier uma curiosidade sobre saber quem é esse cara, aí a coisa começa a ter uma chance. Quando um casal se senta lá na minha frente [no consultório] e um deles diz ‘você mudou muito, está muito diferente do que quando a gente se casou’ eu pergunto: isso é uma queixa ou um elogio? E se ele continuasse sendo aquele mesmo? Você é a mesma? Na verdade, dá para viver um poliamor sem precisar trocar de parceiro. São tantos amores numa relação amorosa. Felizes para sempre provavelmente quer dizer uma vida cotidiana para arrancar a erva daninha que teima em crescer no meio da relação”, concluiu.

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