Em artigo publicado na “PLOS One”, em 2017, um grupo de psicólogos – em uma pesquisa da qual participaram 3.530 voluntários — descreve o que se sabe da comunidade de indivíduos autoproclamados “poliamorosos”. “Poliamor”, para quem não sabe, é considerada a prática de quem tem vários parceiros sexuais. Os autores, infelizmente, rotulam poliamor como uma identidade – como se precisássemos de mais uma. Alguns até afirmam que poliamor pode ser uma tendência inata. (Talvez até deva ser uma classe protegida).
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Os autores do estudo PLOS One acreditam que entre 4 e 5% da população vive relacionamentos não monogâmicos consensuais (CNM, sigla para “consensual non-monogamy”, em inglês). Discordo. Pouco menos de 10% dos adultos nos Estados Unidos (com idade entre 18 e 60, de acordo com a pesquisa “Relacionamentos na América”) afirmaram ter mantido relacionamentos sexuais concomitantes, por pelo menos um mês, em algum momento da vida, sendo que pouquíssimos ainda os mantêm. Disseram ainda que a maioria desses relacionamentos eram secretos, passageiros ou pagos.
Estranhamente, somente 37% dos 3.530 entrevistados foram incluídos no estudo PLOS One. E por que os autores do estudo incluíram apenas uma minoria (de uma minoria)? Porque eles desejavam limitar o seu estudo de poliamor a um tipo mais “tradicional” – aquele em que os participantes têm um parceiro sexual primário e outro secundário. Pensei que esse fosse o significado de poliamor. Mas, segundo os autores, cerca de dois terços dos autodeclarados “poliamorosos” não se encaixam nessa definição, graças às “enormes diferenças na configuração do relacionamento”. Portanto, eles procuraram analisar somente os relacionamentos que enfatizassem o aspecto do “compromisso”, em vez de relacionamentos “abertos” e outros tipos de relações concomitantes.
O compromisso, até onde posso afirmar, está em se relacionar com o parceiro secundário por um longo período e ter com ele um vínculo emocional e romântico, e não apenas sexual. Os autores do estudo informam ainda que pessoas que mantêm relacionamentos CNM não são diferentes dos monogâmicos em relação à satisfação ou ao compromisso – desde que, é claro, o compromisso seja entendido como um vínculo emocional, em vez do sentido mais tradicional que sempre associamos ao termo. Embora os autores afirmem que os participantes de CNM demonstrem ciúme na mesma intensidade que os monogâmicos, a fonte que eles citam não corrobora isso. “Os ciúmes são comuns em relacionamentos consensuais não monogâmicos”, está escrito no estudo. Outras fontes citadas pelos autores dizem não haver diferença na questão da satisfação na relação, embora a amostra tenha apenas 76 entrevistados – um número muito baixo para detectar qualquer coisa exceto grandes distinções.
Até mesmo a frequência sexual seria comparável em estudos anteriores. Isso, para mim, soa absurdo. Quer dizer que poliamorosos não têm mais relações que a média dos monogâmicos? Então, qual seria o sentido do poliamor? Examinemos mais atentamente.
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Sexo e poliamor
Na pesquisa feita com 1.308 entrevistados com um parceiro primário e um secundário – um grupo que não foi comparado aos monogâmicos –, a maior diferença entre relacionamentos com parceiros primários e secundários estava na quantidade de tempo dedicada ao sexo. Os entrevistados calcularam dedicar 21% do seu tempo com parceiros primários a atividades sexuais, enquanto que, com parceiros secundários, eles dedicavam 37% do tempo. (A finalidade de manter um segundo relacionamento romântico está claramente relacionada ao sexo.) No entanto, se esses números estiverem corretos, uma boa quantidade de tempo é gasta com sexo. Suspeito até que esse tempo tenha sido superestimado. Se um a cada cinco minutos junto do parceiro primário é gasto em uma atividade sexual – sendo que 72% desses parceiros moram com os entrevistados –, pode-se concluir que poliamorosos não passam muito tempo em casa, ou passam muito tempo na cama, ou ainda: não são muito bons de matemática. Prefiro a última explicação, porque segundo estudos demográficos, em média, um a cada quatro casais que moram juntos (e apenas um a cada cinco casais casados) fazem sexo regularmente.
“Sistemas de casamento monogâmico precederam o surgimento de instituições democráticas e propiciaram noções como direitos humanos e igualdade entre os sexos”.
Desde 2012, tenho sido alvo de uma enxurrada de acusações de ser tendencioso em tudo que escrevo sobre sexo e relacionamento sexual, mesmo quando embasado por outros estudos. O leitor, naturalmente, pode achar que estou certo ou errado. Mas não pode – pelo menos, não de boa-fé – supor que pesquisas baseadas em estudos revisados por simpatizantes da causa do “poliamor”, como o artigo PLOS One e seus autores, não estejam interessadas em legitimar esses novos estilos de relacionamento. A descrição de uma amostra pré-selecionada, expressa em linguagem que descreve a sua “complexidade”, acaba por tentar legitimar uma forma de relacionamento que fere a dignidade da pessoa humana. A “objetificação” sexual – o tratamento da pessoa como objeto – é a raiz da crise em que vivemos atualmente, em relação ao poder e à consensualidade, e é inevitável quando os relacionamentos são essencialmente baseados em sexo.
Como escrevi em Cheap Sex, as pessoas “precisam” de múltiplos parceiros tanto quanto precisam de três casas ou cinco carros. Esses desejos são pós-materialistas, e não requisitos. A rejeição à monogamia tornou-se possível não porque descobrimos que, no fundo, sempre fomos animais evoluídos, mas porque descobrimos como evitar a gravidez ou mesmo interrompê-la no início. Isso nos deixou livre para nos dedicarmos à arte da sexualidade, segundo a qual o corpo humano serve para o consumo, e não para a (re)produção.
O quebra-cabeça do casamento monogâmico
E se o relacionamento não monogâmico consensual se tornar cada vez mais popular? Escolhas privadas não prejudicam as vidas das outras pessoas, certo? Errado. O relaxamento dos padrões sexuais – como a monogamia – não significa que todos serão livres para fazer o que quiserem. Grupos e comunidades não funcionam desta forma. Sempre haverá regras – com vencedores e perdedores – em qualquer sistema sexual. Se o poliamor for popularizado, o número de casamentos cairá ainda mais – vertiginosamente.
Um sistema monogâmico, no entanto, comporta mais vencedores do que um poligâmico. Isto é: mais homens e mulheres têm relacionamentos bem-sucedidos. Como assim?
Uma equipe formada por um economista, um antropólogo e um cientista ambiental decidiu solucionar o que os pesquisadores chamaram de “quebra-cabeça do casamento monogâmico”. Historicamente, arranjos monogâmicos sempre foram minoria em sociedades do mundo inteiro, exceto na grande maioria das sociedades mais prósperas — e esses pesquisadores queriam descobrir o motivo. Com riqueza de detalhes, eles explicam que o casamento monogâmico incentiva a prudência com gastos e ganhos econômicos, além de reduzir a competição entre homens e mulheres, reduzindo assim o número de homens solteiros, com perfil de risco e de status social mais baixo. E isso, por sua vez, também reduz os diversos tipos de crime, abusos e conflitos familiares, permitindo que as crianças desfrutem da atenção de seus pais e tenham níveis de estresse consideravelmente mais baixos do que crianças cujas casas abrigam todos os tipos de intrusos.
“Poliamor significa que uma grande dose de confiança é constantemente exigida de pessoas que resistem abertamente à ideia de fidelidade. No fundo, é tudo bastante irônico, e é também por isso que tais relações quase nunca duram.”
A monogamia também promove maior igualdade. Mais homens e mulheres têm a oportunidade de conhecer, casar, economizar e investir em longo prazo, em vez de competir (e gastar recursos) pela atenção dos outros. É por isso que os sistemas de casamento monogâmico precederam o surgimento de instituições democráticas e propiciaram noções como direitos humanos e igualdade entre os sexos. Esse “pacote de normas e instituições que constituem os arranjos monogâmicos se espalhou pela Europa, e de lá para o mundo inteiro”, justamente porque funciona muito bem. Monogamia, afinal de contas, é disciplina – por definição.
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Estabilidade, compromisso e capital social
O que o estudo PLOS One nos diz sobre os filhos de poliamorosos? Nada. Segundo os autores, isso seria assunto para outro estudo. “Investimentos tangíveis”, dizem eles, incluindo filhos, “não são facilmente distribuídos de maneira igual nesses relacionamentos.” Parece que os filhos são “ativos” cujo tempo deveriam ser distribuídos igualmente entre os diferentes relacionamentos sexuais que os polioamorosos mantêm. Uma perspectiva um tanto quanto focada no adulto, convenhamos.
Se existe algo com o qual o mundo científico (das ciências sociais) pareceu concordar, desde o furor provocado pelo meu artigo de 2012, sobre filhos adultos de pais que mantiveram relações homossexuais, é que a estabilidade é uma coisa boa para as crianças. Mas estabilidade não é apenas uma variável de controle. Estabilidade é a questão.
O estudo PLOS One aponta que relações secundárias duraram, em média, um pouco menos de dois anos e meio, enquanto que, até agora, relações primárias duraram, em média, pouco mais de oito anos – e essa suposta longevidade é relatada como algo impressionante. Quando essas médias alcançarem, digamos, vinte anos, eu ficarei de fato impressionado. Aí sim poderemos falar sobre “compromisso”. No fundo, poliamor significa que uma grande dose de confiança é constantemente exigida de pessoas que resistem abertamente à ideia de fidelidade. No fundo, é tudo bastante irônico, e é também por isso que tais relações quase nunca duram.
É possível que o Ocidente esteja vivendo do capital social acumulado por gerações de casais monogâmicos – ainda imperfeitamente vivida – para assistir àqueles que mais se beneficiaram dela ignorar os riscos sociais inerentes ao solapamento de um sistema monogâmico. O novo poliamor é mascarado como um sistema igualitário. Isso só é possível, por enquanto, por causa da questão do “favorecido”. Ou seja, poliamorosos são uma minoria que zomba (embora ainda se beneficie dos frutos) da confiança, fidelidade e estabilidade exibidas pela grande maioria dos casais. Entretanto, essa minoria não se tornará uma maioria enquanto continuar apenas se aproveitando dos benefícios que só a monogamia pode oferecer consistentemente.
Que os cientistas sociais pareçam estar atentos somente às consequências pessoais e relacionais dos padrões de comportamento, deixando de lado as consequências sociais desses arranjos, é mais uma prova de que o que está acontecendo é muito mais do que mera divulgação de informações.
* Mark Regnerus é professor de Sociologia na Universidade do Texas em Austin, pesquisador do Austin Institute e colaborador da Unskewed. Ele também é autor de Cheap Sex (Oxford, 2017), livro do qual alguns trechos desse artigo foram extraídos.
©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
Tradução de Ana Peregrino
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