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A ideologia de gênero da nossa época um dia será julgada por suas consequências
A ideologia de gênero da nossa época um dia será julgada por suas consequências.| Foto: Sharon McCutcheon/ Unsplash

Pedro morreu por volta do ano 64 d.C. Apenas três séculos mais tarde, o Cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano em meio a uma controvérsia que pôs bispo contra bispo e bispo contra imperador. O papado acabou por se tornar num poder monárquico que acabou limitado por seus rivais seculares. Na era moderna, o carismático e santificado Papa João Paulo II surgiu como um dos três líderes políticos mais importantes do mundo no confronto com o comunismo e fez tremer o Kremlin apesar de não comandar nenhum pelotão e agindo com um orçamento comparável ao de uma universidade de porte médio. A partir deste e outros eventos, o aparato intelectual da Igreja Católica concluiu que ideias importam e que, para a Igreja no mundo, ideias políticas importam.

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Por este motivo, o comitê de educação da Igreja Católica, a Congregação para a Educação Católica, se posicionou formalmente quanto a uma das mais peculiares e destrutivas ideias da nossa época, que o comitê descreve como “a teoria de uma separação radical entre o gênero e o sexo, o primeiro tendo prioridade sobre o segundo”. A Igreja se posicionou quanto ao assunto no texto “Homens e Mulheres como Ele os Criou: Rumo ao Diálogo na Questão de Teoria de Gênero na Educação”. A aposta aqui é alta, de acordo com a visão da Igreja, por isso o texto emprega uma linguagem à qual os conservadores norte-americanos estão acostumados: “Teorias semelhantes pretendem aniquilar o conceito da natureza”, diz o documento. “Isto é, tudo o que entendemos como uma base pré-existente do nosso ser e nossas ações no mundo”.

Claro que o New York Times está revoltado, citando a esmo afirmações claramente falsas de ativistas dizendo que o documento “estimula o ódio, intolerância e violência” contra transgêneros, uma afirmação estranha a se fazer sobre um documento que fala na “necessidade de ensinar as crianças e os jovens a respeitarem todas as pessoas em sua particularidade e diferença, de modo que ninguém sofra bullying, violência, insultos ou discriminação injusta com base em suas características específicas (como necessidades especiais, raça, religião, tendências sexuais, etc.). Em essência, isso envolve uma educação para a cidadania ativa e responsável, marcada pela habilidade de aceitar todas as expressões legítimas da personalidade humana com respeito”. Se é assim que o mundo agora expressa “intolerância e violência”, em que mundo feliz estamos.

Há um livro muito interessante a ser escrito – daqui a um ou dois séculos – sobre a carreira estranha e improvável da palavra gênero, termo gramatical e conceito que hoje de alguma forma conseguiu deslocar, em boa parte da intelectualidade mundial, os fatos óbvios do dimorfismo sexual na espécie Homo sapiens, em parte a serviço de um conjunto de ideias e tendências políticas que chamamos, por volta de um termo melhor, de progressismo. Uma das características mais notáveis do progressismo é que seus proponentes dizer serem partidários da “ciência”, seguindo racional e empiricamente as provas até suas consequências – e depois recorrendo ao misticismo e à semimetafísica quando os fatos se mostram pouco atraentes ou incômodos. Por isso é que, na questão do aborto, os progressistas preferem trafegar por afirmações vagamente metafísicas quanto à “personalidade” em vez de se aterem aos fatos do que acontece num aborto. E é por isso que hoje em dia falamos muito mais em “gênero” do que em “sexo biológico”.

(Como o “gênero” é um conceito infinitamente maleável, ele pode servir para praticamente qualquer fim. Por exemplo, eis aqui uma discussão sobre o “gênero” no verbete da Wikipedia em inglês sobre o sorgo nepalês).

Uma grande experiência utópica

Como sou conservador, para mim é impossível levar a sério a ideia, ouvida com frequência em 2016, de que o estado das coisas “não poderia estar pior”. As coisas sempre poderiam estar piores, e por isso não tenho pressa em avançar duzentos anos no desenvolvimento (ou decadência) político e intelectual para ver como as coisas acabarão. Mas o otimista em mim suspeita que o misticismo ridículo da nossa ideologia de gênero contemporânea será vista como o prenúncio de um tipo especial de misticismo a ser classificado juntamente com a frenologia, “racismo científico”, astrologia, etc. O fato de a Igreja Católica ter agido como um freio deste misticismo talvez cause perplexidade aos Bill Mahers do mundo, que não entendem nada disso.

Sou otimista nesta questão porque acredito no valor da experiência e porque acredito – vale a pena repetir – que ideias importam. Ideias têm consequências no mundo real, algumas das quais imediatas e drásticas a ponto de transformarem os cidadãos das democracias, que geralmente estão imunes ao aprendizado. As escolhas que fazemos quanto a que tipo de vida vivemos, que tipo de família temos, que tipo de comunidades temos, como criamos nossas crianças, as suposições e conceitos e limitações que associamos ao sexo e à gestação (que, como a Igreja Católica nos lembra, estão relacionados), nossos modelos intelectuais de infância e paternidade – a inteligência e o valor de tudo isso deveria, com o tempo, se refletir nos dados.

Como, claro, eles já se refletem. Os defensores cegos da chamada revolução sexual expunham sua utopia como um exercício livre e autônomo de hedonismo esclarecido. Mas a nossa tecnodistopia do século XXI é algo completamente diferente, nada daquilo que os profetas do amor livre prometeram. O preço a ser pago será alto para muitos de nós e será tragicamente alto para alguns de nós, por exemplo para aqueles que são mutilados na infância a serviço de certos preceitos utópicos.

Eles pensarão na gente um dia, em como um povo aparentemente esclarecido e tecnologicamente sofisticado permitiu que seus amigos e vizinhos e pessoas doentes e crianças fossem usados como ratos de laboratório num grandioso experimento. Mas este é um território que a Igreja Católica conhece bem, porque é antiga o bastante para se lembrar de muitas coisas estranhas que surgiram e desapareceram.

Kevin D. Williamson é correspondente itinerante da National Review.

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