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Lula em ato em 1° de maio de 2022
Lula em ato em 1° de maio de 2022| Foto: EFE/Sebastião Moreira

Uma moeda única para todos os países da América Latina é a mais nova ideia econômica do PT. “Vamos voltar a restabelecer nossa relação com a América Latina. E se Deus quiser, vamos criar uma moeda na América Latina, porque não tem esse negócio de ficar dependendo do dólar”, disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula, juntando religião com questões financeiras, durante evento com deputados do PSOL no último dia 30 de abril.

Na mesma semana, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad e o economista Gabriel Galípolo, colaborador da campanha de Lula na área econômica, defenderam a ideia em artigo publicado na Folha de S. Paulo.

“A criação de uma moeda sul-americana é a estratégia para acelerar o processo de integração regional, constituindo um poderoso instrumento de coordenação política e econômica para os povos sul-americanos. É um passo fundamental rumo ao fortalecimento da soberania e da governança regional, que certamente se mostrará decisivo em um novo mundo”, afirma o texto.

Repare que as incongruências já começam na abrangência da moeda: Lula falou em moeda única para a América Latina, Haddad limitou a moeda à América do Sul. Lula ainda disse que, “se Deus quiser”, a moeda será criada. Não se sabe quais são os planos d’Ele para o futuro econômico da América Latina (ou do Sul), mas nem o criador do conceito de moeda única regional achava que ela era uma boa ideia para o Mercosul.

O problema do câmbio-comum 

Em setembro de 1961, a edição da revista acadêmica The American Economic Review chegou às mãos dos economistas mais renomados dos EUA contendo um artigo do canadense Robert Mundell intitulado “A Theory of Optimun Currency Areas” (“Uma teoria para áreas de câmbio otimizado”, em tradução livre). Nele, o estudioso explicava quais seriam as condições para que a criação de uma moeda única para países com características semelhantes fosse não apenas viável, mas benéfica para todos os envolvidos no processo.

Foram necessários 38 anos para que o texto lhe rendesse um Nobel de Economia: em 1999, Mundell seria celebrado como o “pai do euro”, ainda que se visse como apenas um padrinho, ou um dos vários. No ano seguinte, o economista concedeu à Folha de S. Paulo uma entrevista na qual afirmou que o câmbio comum “não seria, necessariamente, o melhor caminho para o Mercosul”. À época, a ideia de uma moeda que unisse Brasil e Argentina já era ventilada.

Agora, com o retorno da ideia à pauta em época de eleições, é necessário explicar por que ela ainda não saiu do papel — e dificilmente sairá, pelo menos por enquanto. Apesar do suposto lastro da teoria de Mundell, os defensores do câmbio comum na América Latina se esquecem que a região não apresenta nenhum dos fatores elencados pelo economista para o sucesso de uma moeda única.

“Mundell estabelece os critérios para criação de uma área com moeda comum: mobilidade do trabalho entre os países; mobilidade de capital com flexibilidade de preços e salários na região; mecanismo de controle de riscos como um sistema fiscal que permita transferências de renda para regiões afetadas por choque negativos; e ciclo econômico sincronizado entre os países. O conjunto de países da América Latina, ou mesmo do Mercosul, não obedece nenhum desses critérios. Desta forma, a ideia me parece absolutamente inadequada”, afirma o economista Roberto Ellery, professor de economia da UnB.

“Ainda que não tenha o maior PIB per capita, pelo tamanho da população e do PIB o Brasil teria de bancar um papel de liderança que me parece fora de nossas condições. Mal conseguimos nos bancar, como bancar um sistema de transferência para países menores que sofram choques negativos? O México dificilmente sairia do acordo de livre comércio com os EUA para embarcar nessa aventura. Com a Argentina em ‘crise permanente’ caberia ao Brasil bancar a maior parte da conta. Nem as políticas monetárias estão sincronizadas. A Argentina vive uma inflação crônica e da Venezuela melhor nem falar. Em resumo, é uma ideia que tem tudo para dar errado”, explicou o especialista à Gazeta do Povo.

Cenário latino-americano é desfavorável 

A ideia de criar uma moeda comum entre Brasil e Argentina até já foi cogitada dentro do próprio governo de Jair Bolsonaro (PL), com aval do ministro da Economia, Paulo Guedes, sem nunca ter sido levada adiante. Mesmo especialistas argentinos concordam que o plano carece de pré-condições para dar certo. “A proposta do ex-presidente Lula da Silva de uma moeda única para a América Latina reflete uma ambição política de aprofundar a integração latino-americana e de que o Brasil seja o líder nesse processo. Mas do ponto de vista econômico, exige vários pré-requisitos que a América Latina está longe de cumprir”, concorda Eugenio Marí, economista-chefe da Fundación Libertad y Progreso

“Os benefícios da adoção de uma moeda comum aumentam quando os países estão abertos ao comércio, os mercados de trabalho são flexíveis e os mercados financeiros são desenvolvidos. Por outro lado, eles diminuem se as economias estão distorcidas, os ciclos econômicos estão fora de fluxo e as políticas macroeconômicas não são coordenadas. A região como um todo está hoje mais próxima da segunda situação do que da primeira”.

Para o economista Paulo Fuchs, apresentador do podcast Tapa da Mão Invisível, outro argumento insustentável apresentado por Lula e pelos demais defensores da teoria é o de que a moeda comum serviria para tornar a região "imune" às flutuações do dólar. “É impossível criar uma moeda completamente independente do dólar dentro do sistema financeiro tradicional. A Rússia e a China estão discutindo alternativas, mas ninguém conseguiu porque, mesmo com as deficiências, o dólar é uma moeda mais forte do que as outras. Não faz sentido trocá-lo pelo bolívar venezuelano, por exemplo, porque todo mundo sabe que ele tende a zero no longo prazo. Se o Brasil quer ter uma moeda referência, atrativa, para que outros países utilizem o real como reserva, precisa ter uma moeda mais forte”.

Euro não é um bom exemplo 

Às vésperas de completar 25 anos, o euro não serve como parâmetro para a América Latina. “A integração europeia é um processo que teve início após a Segunda Guerra Mundial, na década de 1950. O euro só viria quase meio século depois. Primeiro, a região apostou numa maior integração política e econômica e na formação de um mercado comum, tudo diante da ameaça compartilhada que era a União Soviética”, explica o argentino Marí. “A integração econômica dos países do Mercosul tem sido imperfeita, e o bloco está entre os mais fechados do mundo. Por exemplo, a negociação do acordo de livre comércio com a União Europeia já dura mais de 20 anos. Este é um sinal do estado de maturidade da integração latino-americana, longe da meta de uma moeda comum, que é muito mais ambiciosa”.

Há que se considerar também que, à época, os países reunidos na Zona do Euro apresentavam condições econômicas muito diferentes dos países que hoje integrariam o câmbio comum latino-americano. Nada disso foi suficiente para impedir a crise na Grécia que desestabilizou a moeda nos idos de 2011, mobilizando grande auxílio internacional. Para Fuchs, sequer é possível dizer que moeda europeia é um “sucesso”: “Atualmente, o bloco tem um endividamento de 88% acima do PIB anual. Como isso é um sucesso? Ainda que haja a economia da Alemanha ‘puxando’ o resto para cima, com uma dívida inferior às outras, não é suficiente para arcar com o problema”, avalia.

Isso sem falar nas crises políticas decorrentes da criação de órgãos supranacionais. Foi o próprio Mundell quem afirmou, na entrevista de 1999, que “a Europa decidiu pela moeda única principalmente porque queria uma maior integração política”. “Era necessário amarrar a grande Alemanha unificada à Europa para evitar problemas, uma vez que sempre houve uma tendência histórica da Alemanha de querer dominar a Europa”, disse o economista. Ocorre que o controle sobre cidadãos por lideranças que não foram diretamente eleitas pelos mesmos é, em si mesmo, um novo problema.

“É a espiral intervencionista prevista por Ludwig von Mises: com a crise das moedas nacionais, muita gente está migrando para as criptomoedas. Ou seja, o Estado intervém no mercado, causa problemas e depois cria mais intervenções para corrigir os erros consequentes. O que está por trás disso tudo, no fim das contas, é a centralização de poder versus a descentralização. Você tira a decisão do indivíduo e passa para um burocrata em Brasília. Daí vamos tirar de Brasília e passar para um burocrata supranacional?”.

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