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Em 15 de maio, milhares de manifestantes foram às ruas para protestar contra cortes da educação.
Em 15 de maio, milhares de manifestantes foram às ruas para protestar contra cortes da educação.| Foto: Leandro Couri/EM

Milhares de pessoas ocuparam as ruas em centenas de cidades brasileiras nesta quarta-feira (15) para protestar contra atos do governo de Jair Bolsonaro. Motivados pelo contingenciamento no orçamento do Ministério da Educação (MEC), estudantes e profissionais do setor organizaram manifestações, sobretudo em defesa da educação e das universidades, conquistando a adesão de diversos simpatizantes. O episódio me fez lembrar de quando, na adolescência, me aventurei a participar de protestos estudantis.

O primeiro deles ocorreu ao final de 2010. Era o final do governo Lula, que deixava o Palácio do Planalto com aprovação recorde de 87%. A economia cresceu 7,5% naquele ano e vivíamos o “pleno emprego”. Havia a expectativa de o país se tornar hexa jogando uma Copa do Mundo em casa e uma potência Olímpica com os jogos sediados no Rio de Janeiro em 2016. Como mobilizar pessoas nesse ambiente? Não era um período de muitas manifestações relevantes.

Mas o fato de parlamentares aumentarem o próprio salário em 62%, ao apagar das luzes da legislatura, motivou algum ativismo em minha cidade. O estopim para eu querer de alguma forma me envolver se deu quando, no falecido MSN (quem lembra?), vi um contato divulgando uma manifestação contra o reajuste em frente à Assembleia Legislativa do Espírito Santo (ALES), a 20 minutos de onde eu morava. Meu contato morava no interior, mas pretendia ir ao local. Por que eu, que residia tão perto, não faria nada a respeito? Peguei meu uniforme da escola federal onde estudava, me enchi de consciência social — e fui.

A manifestação começou com pouco mais de uma dúzia de estudantes ligados ao Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal do Espírito Santo. Porém, como a ALES fica em frente a um grande shopping center, foi fácil juntar uma pequena aglomeração. Enquanto as pessoas iam para o ponto de ônibus sonhando com um coletivo com ar-condicionado e assento vazio e em chegarem em casa logo, nós aproveitávamos para conversar com elas sobre o aumento da mordomia dos parlamentares. Me senti uma ave de mau agouro espalhando informação e despertando a revolta nas pessoas. Meu skill de jovem politizado (um dos piores tipos de millennials possível) estava no auge.

Encontrei até um ex-professor e outros colegas por lá, além de ter feito outras amizades que passaram a frequentar a timeline de meu Facebook a partir de então. Não deixava de ser um evento social. De um punhado de estudantes, juntamos algumas dezenas de pessoas de todos os tipos, indo muito além de um protesto estudantil. Alguns pegaram um megafone e deram seus depoimentos. Destemido, me voluntariei para falar: desconhecendo cifras e a autonomia orçamentária dos três poderes, defendi que “aquele dinheiro todo poderia ir para o São Lucas [hospital estadual da capital que, a exemplo do SUS em geral, estava sucateado à época]. Discursei falando que as obras da sede do campus onde estudava estavam “atrasadas havia anos”. Lacrei, mitei. Muitos aplausos de todos os presentes. Foi bem legal, mas talvez se tivesse falado que “a soma dos quadrados dos catetos de um triângulo é igual ao quadrado da hipotenusa” teria obtido reação semelhante, considerando o ambiente criado.

Não sei se dava para esperar muito mais de alguém com 15 ou 16 anos, mas desconhecer leis orçamentárias não tornou minha revolta menos legítima. Políticos não deveriam ter essas mordomias custeadas pelo restante da população — e ponto final.

Em minha primeira participação no movimento estudantil, apareci dando entrevistas em uns três jornais locais. Grande dia! Se banda larga fosse popularizada e eu tivesse uma câmera, poderia ter me tornado uma espécie de “Mamãe Falei” e sido eleito deputado nas eleições seguintes? Pensando bem, tenho de agradecer aos céus por canais de Youtube não serem moda na época.

Mas nem tudo foi festa e algumas coisas me chamaram atenção naquele dia.

As palavras de ordem não eram direcionadas a todos os políticos. Quando mencionaram alguns nomes do, lembro bem, Partido dos Trabalhadores, algumas pessoas vaiaram e teve início um discurso relativista de “veja bem, esse deputado sempre trabalhou para o povo”. Não importava o voto do deputado e nem o fato de ele também embolsar o privilégio. Percebi seletividade por parte dos líderes do movimento. O protesto era contra os privilégios dos políticos, “mas depende”.

Havia bandeiras e camisas de alguns partidos canhotos também. Após a manifestação, recebi convites para me filiar ou ir a reuniões de agremiações partidárias de esquerda. Recusei, pois não queria nada daquilo. Só tinha como objetivo gritar contra o salário dos políticos e sentir que tentei fazer algo a respeito, “obrigado, de nada”.

Entusiasmado com o sucesso da primeira empreitada, assim que o movimento estudantil capixaba se reuniu novamente — meses mais tarde, desta vez contra o aumento da passagem dos ônibus — estive presente. Foram diversas movimentações diárias ao longo de uma semana, das quais estive em duas.

Em uma delas, me lembro de nos amontoarmos em frente ao Palácio Anchieta (sede do governo estadual) e de ter conhecido por lá uma crush. São os tais “benefícios da justiça social”, como dizem.

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Esse movimento foi maior, reunindo algumas centenas de pessoas, e mais bem organizado, mas também com maior influência político-partidária. Todos os líderes faziam parte de algum partido e os mais velhos já haviam disputado eleições. Um deles inclusive se candidatou a prefeito de Vitória no ano seguinte. Descobri que protestar poderia ser eleitoralmente lucrativo.

Para minha surpresa, jornalistas que estavam no local para noticiar o evento foram agredidos por palavras de ordem ou por ameaças.

Uma indagação frequente que os repórteres faziam era “quanto iria custar” e “quem iria pagar” pelo represamento dos preços da passagem defendido pelos manifestantes. A falta de dados e demais informações era compensada por um afã deontológico dos presentes: “faça-se o que eu considero que é justo, ainda que assim o mundo venha a perecer”. Sendo mais direto, eles apenas lacravam antes de ser moda. “Transporte público não é mercadoria; é um direito”, bradavam.

Felizmente, não estive presente nos atos mais violentos e que resultaram em confrontos com a polícia. Em um deles, atearam fogo em um ônibus. Um protesto por um transporte público melhor, mas que vandaliza o que temos? A partir daí não fui mais.

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Os líderes do movimento atribuíram a responsabilidade pela violência a um “policial infiltrado” com o objetivo de criminalizar “um movimento social”. A história da carochinha não durou muito e as narrativas variavam entre “colocamos a culpa na polícia para proteger um dos nossos” e “vandalismo é o que querem fazer ao aumentar a valor da passagem”. Anos mais tarde, o responsável foi condenado pela Justiça.

Percebi que a partidarização, nem sempre tão explícita, relegava as reivindicações do protesto ao segundo plano. Já a virulência contra a imprensa e outras formas de chamar atenção utilizadas pelo movimento (como fechar completamente as ruas e confrontar a polícia), além da falta de resposta para a simples pergunta de quanto aquilo custaria aos pagadores de impostos, fizeram com que eu me aposentasse precocemente das manifestações estudantis, sem direito a regime especial de previdência ou a camisas à venda com minha caricatura desenhada. Nos idos de 2012, procurei fazer qualquer outra coisa que parecesse mais atraente aos adolescentes daquele período, como xingar no Twitter e, inclusive, estudar mais.

Traumatizado, foram precisos alguns anos e uma Presidente da República que destruísse a economia do país, fizesse regredir os indicadores sociais e fraudasse as contas públicas para eu sair à rua novamente.

15 de maio

Esse é meu depoimento sobre o movimento estudantil com o qual tive contato. Posteriormente, enfrentei entidades que tentaram fechar escolas à força, inclusive o prédio da universidade onde tive a oportunidade de estudar. O motivo era a tramitação da PEC do Teto, que limitou a despesa geral da União em busca de reequilibrar as contas públicas em médio prazo. A fake news da época era que a medida “tirava dinheiro da educação por 20 anos”.

Não é meu objetivo aqui dizer que há protestos certos e errados. Todos podem se mobilizar e manifestar sobre o que quiserem, desde que respeitem a legislação vigente e não agridam terceiros. E a livre expressão de quem discorda das motivações ou da forma desses protestos também deve ser preservada.

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Talvez, se eu fosse um jovem estudante novamente, estaria endossando os protestos de 15 de maio por conta dos contingenciamentos da educação. Entendo perfeitamente quem esteve presente, a despeito de a manifestação ter sido vendida como um ato em defesa da educação, mas aproveitada por partidos de esquerda e centrais sindicais para tecer críticas à reforma da Previdência e pedir liberdade a um ex-presidente outrora popular, mas atualmente preso e condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. Não à toa, dezenas de parlamentares da oposição foram aos atos.

Mesmo sabendo de tudo isso, milhares de pessoas, estudantes e profissionais da educação ou não, muitos que nem sequer simpatizam com a esquerda, decidiram ir às ruas — e eles têm bons motivos para tanto.

O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, poderia ter comunicado de forma clara e simples que os contingenciamentos ocorreriam porque as expectativas de crescimento da economia tinham sido superestimadas na Lei Orçamentária Anual, aprovada pelo Congresso Nacional no ano passado. Poderia ter evidenciado que, com o aumento da despesa previdenciária, o governo estava economizando em todas as áreas. Os militares do Governo Bolsonaro, por exemplo, mais presentes no corpo ministerial do que durante a ditadura militar, sofreram contingenciamentos superiores aos do MEC.

Mas não: o ministro optou por fundamentar os contingenciamentos como uma punição pela “balbúrdia” das universidades para agradar o nicho eleitoral mais ideológico e radical de Jair Bolsonaro. Ele inclusive superestimou o percentual do contingenciamento ao afirmar se tratar de 30%, dando um falso peso à medida. A comunicação desastrada foi interpretada como caça às bruxas e, naturalmente, gerou revolta em parcela considerável da população.

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A despeito de ter havido contingenciamentos na pasta em governos passados, como em 2010, no governo Lula, e em 2015, no governo Dilma, eles foram anunciados e justificados com base na realidade orçamentária desde o início, e não com uma “agenda antieducação”.

Afirmou-se ainda que retirariam dinheiro do Ensino Superior para priorizar o ensino básico, mas a educação infantil também sofreu reduções no orçamento. Além disso, não foi anunciada nenhuma medida visando possibilitar outras formas de financiamento para as universidades que não pelo Tesouro Nacional, como a regulamentação de doações e a instituição de mensalidades para aqueles estudantes que têm maior renda.

O ministro voltou atrás e anunciou que a medida se estendia para todas as universidades. Ele também explicou que os contingenciamentos foram motivados pela situação fiscal da União, que o obrigava o Ministério a adotar tais medidas em virtude de legislações que submetem o Executivo à busca pelo reequilíbrio do orçamento. Mas o desastre já estava feito.

E piora! Declarações posteriores de figuras do governo negligenciaram a motivação orçamentária e endossaram a ideia de guerra ideológica contra as universidades.

Sobre o movimento, o próprio presidente da República afirmou: “A maioria ali é militante. É militante. Não tem nada na cabeça. Se perguntar 7 x 8 não sabe. Se perguntar a fórmula da água, não sabe. Não sabe nada. São uns idiotas úteis, uns imbecis que estão sendo utilizados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais do Brasil”.

Já o líder do PSL na Câmara dos Deputados, Delegado Waldir, endossou nesta quarta (15) a narrativa de que o contingenciamento foi motivado por uma guerra ideológica. “O que acontece é que as pessoas não estão acostumadas com as palavras firmes e duras do presidente. As pessoas são manipuladas, é uma minoria. Quantas pessoas foram para a rua? Quem foi? Foram aqueles fumadores de maconha, aqueles baderneiros”, disse.

Se no auge dos meus hormônios adolescentes alguém me chamasse de “massa de manobra”, “manipulado” e “baderneiro”, provavelmente minha motivação para protestar contra a autoridade aumentaria. Afinal, qualquer leitor de Harry Potter que tenha o sonho de estudar em uma universidade pública e que já não nutra muita simpatia pela figura de Jair Bolsonaro teria todos os incentivos para lotar as ruas do país nos protestos do dia 15 de maio: o governo apenas ampliou esses motivos para milhares de brasileiros fazerem o que fizeram.

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