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Nem toda mentira é “fake news”.
Nem toda mentira é “fake news”.| Foto: memyselfaneye/Pixabay

No começo, até existia um motivo para usar a expressão fake news. Ou melhor, dois. Um é que a internet trouxe blogues mequetrefes que se autodenominavam jornais. Então a pessoa de idade mais avançada, que sempre atrelou confiabilidade às letras de tipografia, ou que não sabe que é muito fácil fazer um site, vê o blogue e acha que é um jornal sério.

Um site obscuro pôs na boca de Deltan Dallagnol a frase “Não temos provas, mas temos convicção”, um cineasta divulgou nas redes sociais, e a mentira se espalhou feito brotoeja. Isto é uma novidade da internet: a facilidade de se fazer um jornal falso para espalhar mentiras.

O outro motivo é que, com a internet, acontece muito de as pessoas verem manchetes sem lerem as matérias. Com o jornal impresso, quem lia apenas a manchete não recortava o pedacinho de papel onde estava apenas a manchete e saía mostrando pros outros.

Ou olhávamos para a manchete, e não repassávamos, ou comprávamos o jornal e líamos com vagar, para depois conversar na pracinha, no carteado, no bar. Hoje, é possível fazer uma manchete sensacionalista, as pessoas compartilharem nas redes sociais, e ninguém ler o corpo da matéria. Manchetes são feitas para fisgar, e umas são apelativas demais.

Uma capa famosa do jornal humorístico O Pasquim trazia em letras garrafais: TODO PAULISTA É BICHA. Uma vez fisgado, o leitor atraído veria as letrinhas miúdas entre as garrafais: “Todo paulista que não gosta de mulher é bicha.” É como se hoje, diante dessa capa, ninguém chegasse a ler as letrinhas, e ficasse compartilhando nas redes que todo paulista é bicha.

Então estes dois fenômenos são novos e talvez merecessem um nome novo para designá-los: o jornal falso que engana as pessoas, e a meia-verdade na manchete de uma matéria que nunca será lida.

O e-mail era o zap-zap 

Mas as autoridades deram pra chamar boato de zap-zap de fake news. O exemplo paradigmático costuma ser uma mamadeira de sex-shop que seria entregue às crianças pelos ideólogos de gênero do PT. Não há nada de atípico nisso que justifique o novo nome – nem mesmo o fato de se dar através da internet.

Pelo e-mail da internet discada, e do começo da banda larga, chegava uma profusão de bobagens que recebemos hoje pelo WhatsApp. Os famigerados arquivos .pps traziam mensagens motivacionais de coraçãozinho, ou piadas bestas.

O tio antipetista obsessivo mandava slides que provavam a inépcia de Lula quando era moda comentar cada declaraçãozinha dele, com preferência pelas estabanadas.

Em texto, às vezes com figurinhas ou letras piscando, chegavam lendas urbanas, testemunhos de chupa-cabra, obscuros pedidos de depósito bancário, correntes que previam as maiores maldições aos que não a encaminhassem para n pessoas.

E ainda tinha as caras de meninos perebentos, que deveriam ser repassadas para que, misteriosamente, fundos fossem arrecadados a cada e-mail reenviado.

Desse rol, acho que só as correntes de maldição saíram de moda. O chupa-cabra e demais criaturas estranhas migraram da roça sem eletricidade para o smartphone sem dificuldade.

Novidade, mesmo, são as filmagens e fotos de execução, que os donos das favelas mandam para seus moradores, ou antes súditos. Mas, como se sabe, as nossas autoridades entendem que pode matar, pode ocultar cadáver, pode coagir moradores, pode acabar com o direito de ir e vir. O que não pode é ser politicamente incorreto, porque aí sim se ferem os direitos humanos.

Nossa Senhora da Ciência cura fake news 

A essa altura do campeonato, o brasileiro terá aprendido que a Ciência é uma senhora que tem muitas opiniões fortes e contundentes, mas que nunca dá as caras. Em vez disso, tem uma porção de porta-vozes por aí. Ao que parece, ela fala muito, mas não diz qual deles é o seu verdadeiro representante.

Neste país, Átila Iamarino ganhou notoriedade prometendo milhões de mortos em prazo recorde, e se tornou porta-voz oficial da Senhora Ciência no Brasil. Pouco importa que ele tenha errado feio: valem os ares de sacerdote anunciando o apocalipse e pregando sacrifícios, tudo para vencer o Capiroto laico dos ateus progressistas, isto é, Bolsonaro. No lugar dos pagadores de promessa tradicionais, temos os fiéis ateus de Nossa Senhora da Ciência, que fazem castos votos de clausura até sabe Deus quando.

Agora, a face redonda de Átila Iamarino aparece nas TVs para nos iluminar mais uma vez. O Tribunal Superior Eleitoral também tomou esse sacerdote como porta-voz. Didático, compara as fake news a um vírus: têm agentes transmissores; as pessoas saem passando para os parentes (ou “grupo familiar”, como ele diz), e no fim temos um “grande número de pessoas contaminadas”. E no fim, quem morre?

Ela mesmo, a democracia: “Essa divulgação de boatos e notícias falsas é letal para a democracia”. O homem dá três nomes para uma só coisa (fake news, boatos e notícias falsas), em seguida usa uma expressão cujo significado muito peão não conhece (“é letal para”). Não seria mais simples dizer, desde o começo, que a boataria mata a democracia? Seria.

Pra que serve, afinal, essa propaganda? Se fosse para atingir o maior número de pessoas, haveria algum esforço para falar numa linguagem que peão e doutor entendem.

Polzonoff acha que esse povo todo que fala para a bolha quer só aplausos. Eu tenho minhas dúvidas. Em todo esquema tem safado e trouxa. O difícil é determinar os limites entre safadeza e abestalhamento, ou até que ponto o safado não é capaz de se autoiludir, e até que ponto o trouxa não tem uma leve desconfiança – rapidamente abafada – de levar vantagem com as coisas que diz.

Tenho certeza de que a propaganda do TSE foi feita para soar bonito. Soando bonito se convence todo o mundo? Depende do que se entende por “todo o mundo”. Falando bonito, convence-se toda a bolha dos bem-pensantes já convertidos.

E os não-convertidos? Há os “bolsonaristas”. Mas eles não têm salvação por via racional, porque são obscurantistas possuídos por algum Belzebu. Quem sabe olhando pra cara de Átila não têm uma experiência mística e se convertem?

O que me espanta nisso tudo é a ausência do peão. O Brasil não se divide entre os devotos de Nossa Senhora da Ciência e os obscurantistas adoradores do Coiso. A maioria não está nem aí pra isso.

É fêi que dói 

No longínquo começo do ano, lá antes da covid, um bebê brincava com o controle remoto quando parou na imagem de um pastor neopentecostal pulando ao som da sanfona, cantando que “fake news é fêi que dói/ O inimigo é mentiroso/ Jesus Cristo é meu herói/ Ele está na rede ele é um vírus e quer navegar/ Está sempre online atrás do seu wi-fi pra o detonar/ E o WhatsApp veio pra roubar sua atenção”

Pois é. Do outro lado da guerra de anjos e demônios, um neopentecostal absorveu o linguajar cientificista dos bem-pensantes e traduziu no popular as mesmas ideias, antes mesmo da pandemia.

Tal como para o bem-pensante, fake news é uma coisa que dá no celular e parece um vírus, mas é coisa do demo. Então só Jesus na causa. E só aí repousa a discordância; afinal, os bem-pensantes sabem que Jesus é coisa de obscurantista, de quem não tem Ciência no coração. De quem vai pra rua sem máscara, e comete genocídio.

Ateus que não sabem ser laicos

Da minha condição de ateia não-militante, digo que prefiro religioso assumido a esse povo que enruste a religiosidade e faz essas gambiarras pra ter fé. Imerso em milênios de pensamento, o religioso aprendeu a separar fé de razão e ciência.

Isso está na própria noção de laicismo: as coisas da fé são de natureza privada, e as da razão estão sujeitas ao escrutínio público. A razão une os homens de todo credo; a ciência não admite autoridade que não a da razão e da experiência. Mas quando esses ateus confusos entram em cena se arrogando a posse da ciência, a discussão fica impraticável.

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