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Por que os católicos perderam espaço político para os evangélicos no Brasil
| Foto: Bigstock

A importância crescente dos evangélicos na política brasileira deixou de ser novidade há algum tempo, mas é sempre realçada em anos eleitorais, dada a preocupação indisfarçável de tantos candidatos em não se indispor com esse público, ao menos não de forma irreversível. Por outro lado, se o avanço do protestantismo pentecostal na política vem sendo amplamente estudado e notado, as razões que levam os católicos, enquanto coletividade, a receberem atenção bem menor de políticos relevantes não são tão debatidas. Estimativas recentes apontam que 2022 provavelmente será o ano em que a porcentagem de brasileiros que se declara católico chegará a 50%, o índice mais baixo da história. Apesar disso, numericamente, o catolicismo permanece sendo a religião com mais fiéis no país, sugerindo, portanto, que a relativa desproporção de atenção dada aos católicos na política tem causas que vão além das estatísticas demográficas.

Entre os analistas há consenso de que qualquer reflexão sobre o tema deve partir das diferenças significativas na forma como católicos e evangélicos lidam com questões eleitorais. Culturalmente, em comunidades evangélicas, a escolha de um membro – frequentemente o próprio pastor – que deve representar os fiéis e lutar por suas demandas no campo político é não apenas aceita com naturalidade, mas também incentivada e tomada como missão. Uma vez que o escolhido é apresentado aos fiéis, a tendência é a de haver grande adesão ao nome. “Isso não se dá por ingenuidade, mas sim porque para os evangélicos a ponte com seu representante é muito mais direta, flexível e intuitiva. Os fiéis vão à igreja e veem o pastor pedir voto. Se gostam dele, votam. Fazer isso na Igreja Católica é quase impossível devido à estrutura hierárquica distinta - com autoridade moral centralizada no papa, depois nos bispos e padres -, o que torna o ambiente evangélico mais atraente para políticos tradicionais”, explica o filósofo e colunista da Gazeta do Povo Francisco Razzo.

Ele destaca ainda que como não se pode falar em ‘igreja evangélica’ no sentido de uma única instituição, não há uma hierarquia rígida como a da Igreja Católica que impeça arranjos simples conforme o descrito. Padres e bispos católicos, por exemplo, embora exerçam grande influência junto aos seus fiéis não podem se candidatar legitimamente a cargos políticos, segundo as regras da própria Igreja, que são seguidas pelo clero do mundo todo e emitidas a partir do Vaticano. Em seu artigo 287, o Código de Direito Canônico estabelece explicitamente que os clérigos “não tenham parte ativa nos partidos políticos”, sob o argumento de que o sacerdócio católico deve priorizar a comunhão entre os fiéis com Cristo. O caráter necessariamente sectário da política partidária, portanto, seria incompatível com tal fim. Ainda que nem todos sejam obedientes ao cânone, o estabelecido é majoritariamente aceito e os rebeldes tendem a acabar abandonando a prática sacerdotal, dado o nível de problemas que criam para si dentro da hierarquia eclesial ou até da própria comunidade.

A distinção na doutrina católica entre vocação sacerdotal e laical compõe o pano de fundo dessa regra. Ao mesmo tempo em que veta a participação dos sacerdotes, em inúmeros documentos a Igreja Católica anima os fiéis leigos a se engajarem no mundo político e trabalharem pelo bem comum. Na encíclica Christifidelis Laici, de 1988, por exemplo, o papa João Paulo II chega a dizer que “os fiéis leigos não podem abdicar de maneira nenhuma da participação na política”. Contudo, partindo do mesmo princípio de promover a unidade na fé – ainda que haja divergência na política – padres e bispos são igualmente orientados a não declararem apoio a nenhum candidato ou partido, o que impõe um considerável desafio aos leigos católicos que se candidatam, mas não podem, legitimamente, fazer uso das missas para pedir votos, nem mesmo contar com participações vigorosas de padres populares em suas campanhas. Sem acesso aos púlpitos durante as missas, nem aos líderes religiosos como padrinhos explícitos, candidatos que miram no voto católico largam em evidente desvantagem quando comparados aos colegas evangélicos.

Identidade cultural 

Outro aspecto a favorecer os evangélicos na busca por atenção dos políticos está no quanto a adesão a determinada vertente partidária pesa enquanto componente da identidade religiosa. Sem tantas tradições, ritos e devoções, as pautas políticas, especialmente as conservadoras, ganhariam relevo maior enquanto elo promotor de unidade nas comunidades evangélicas. Nelas, cria-se ao menos a expectativa de que um frequentador de determinada igreja vote no candidato daquela igreja, havendo relativa convergência de opiniões nos temas defendidos pelo candidato.

Já entre os católicos, existe a Doutrina Social da Igreja, que costuma ser usada para o estabelecimento de parâmetros do que é ou não aceitável para os fiéis no que diz respeito a políticas públicas. Contudo, ela é abrangente o bastante para acolher uma grande variedade de correntes de pensamento. Somado a isso, temos o fato de que a política partidária é um elemento desnecessário e até mal visto na vida paroquial, o que contribui para a diversidade de opiniões sobre temas não religiosos entre os frequentadores de uma mesma paróquia.

Em outras palavras, hoje, é possível à maioria dos católicos, por exemplo, ir à missa todos os domingos, rezar o terço todos os dias, participar de novenas e apreciar o canto gregoriano, sentindo-se assim plenamente imersa em catolicidade, sem nem sequer se deparar com a necessidade de falar sobre eleições. A variedade de elementos que fortalecem o sentimento de pertença à comunidade é grande, mesmo sem entrar no assunto política. Se do ponto de vista do catolicismo esse fenômeno configura o respeito à diversidade dentro da unidade, para os candidatos é um empecilho a mais.

Ainda nos aspectos culturais, Razzo lembra que o outro lado dessa moeda a dificultar a convergência católica em torno de um mesmo partido, candidato ou corrente política, está na figura do “católico não-praticante”, um título autodeclarado por pessoas batizadas na Igreja Católica, que nutrem algum afeto pelas tradições religiosas, mas que não aderem completamente aos seus dogmas, não se comprometem a viver conforme o ensino moral da Igreja, nem a frequentar missas assiduamente. Como a expressão da fé católica é possível, em grande medida, por meio de hábitos culturais, é mais fácil para um católico ser flexível com o secularismo e continuar se considerando católico, ainda que com isso caia em contradições. O mesmo parece não ocorrer com os evangélicos. “Você tem o católico não-praticante, mas não tem o evangélico não-praticante. São pessoas que têm interesse nos costumes católicos, mas não numa prática de fé. Então, para um político, é muito mais interessante atrair um evangélico de convicções firmes do que um católico ‘por tradição’, já que nesse segundo caso, a fé pouco interfere em decisões políticas, enquanto no primeiro, é determinante”, resume Razzo.

Teologia da Libertação 

A história do Brasil está repleta de evidências do quanto a Igreja Católica e o Estado mantiveram relações muito próximas, mesmo após a proclamação da República, quando o país deixou de adotar o catolicismo como religião oficial. Contudo, se houve um momento histórico em que boa parte do clero – provavelmente a maioria – se opôs de forma mais explícita ao governo, isso ocorreu após o recrudescimento do regime militar, entre as décadas de 70 e 80, no auge da Guerra Fria.

Com a intensa restrição de liberdades individuais e episódios de violência provocados por agentes do Estado, uma multidão de padres, bispos e fiéis foi seduzida pela chamada teologia da libertação, uma interpretação da Bíblia e da doutrina católica que mistura elementos da fé tradicional com preceitos marxistas, reduzindo a figura de Jesus Cristo a de um revolucionário socialista e usando o evangelho para fomentar luta de classes. Essa elaboração foi especialmente útil aos grupos de esquerda que instrumentalizaram a capilaridade das comunidades católicas no Brasil para ganhar as massas e impulsionar seus projetos políticos. Foi nesse contexto que nasceu e ganhou força o Partido dos Trabalhadores (PT).

Vários estudiosos católicos que tentam explicar a queda vertiginosa de fiéis nas últimas décadas apontam o período de domínio da teologia da libertação como fator crucial para a longa debandada que dura até hoje, já que eram enormes as chances de um fiel ir à missa para ouvir sobre Deus, mas acabar recebendo discurso ideológico de esquerda. Se não aderisse, de alguma forma acabava excluído da comunidade ou motivado a sair. “Foi um tempo no qual ser católico e se envolver com política quase sempre significava pertencer à teologia da libertação. Os marxistas foram muito astutos e bem-sucedidos nisso, por muito tempo”, diz Edivan Mota, presidente da Sociedade Thomas More, uma organização de leigos sediada em São Paulo, dedicada a fomentar a participação de católicos na política e na vida pública.

Resgate 

Conforme explica, o cenário só mudou na metade da década de 90, quando houve o boom da Renovação Carismática Católica, que tinha como principal expoente na época o padre Marcelo Rossi. Com uma pregação focada em realidades espirituais, semelhante ao estilo dos evangélicos pentecostais, a RCC acolheu uma multidão de católicos que estavam exaustos de tanto discurso sobre reforma agrária, luta operária e contra o imperialismo americano. A ojeriza criada pelos teólogos da libertação foi tamanha que frequentemente se caía no outro extremo, o de rechaçar qualquer debate sobre problemas sociais, comportamento motivado pelo risco de ser confundido com a turma dos “padres vermelhos”, termo pejorativo dado por críticos aos membros do clero que pareciam mais fiéis a Che Guevara do que a Jesus Cristo.

“Nós saímos de um discurso excessivamente terreno para um exclusivamente espiritual, e assim a questão política ficou de lado. Houve quase 20 anos nesse vácuo”, resume Mota. A situação atual seria a de tentativa de resgate da Doutrina Social da Igreja, mas purificada das influências ideológicas que marcaram tanto o século XX e com destaque para as pautas civis comumente chamadas de pró-vida e pró-família. Esse despertar seria algo recente, iniciado há cerca de 10 anos. É liderada sobretudo por integrantes de movimentos e outras organizações eclesiais formadas majoritariamente por leigos. Mota cita como exemplos o Opus Dei, o Comunhão e Libertação e o Caminho Neocatecumenal, mas algumas comunidades carismáticas também amadureceram com o passar do tempo e hoje contribuem efetivamente para a formação e engajamento político de seus membros, como a Canção Nova e a Shalom.

O deputado federal Enrico Misasi (MDB-SP), 27 anos, faz parte dessa geração que não renega sua catolicidade na vida pública, mas tenta se descolar dos rótulos ideológicos para se ater à doutrina social. Para ele, a Igreja é prudente ao não motivar a criação de partidos que se digam católicos, nem apoiar candidaturas específicas. “Os fiéis católicos não verão a Igreja pedindo que votem em determinado candidato, que privilegiem um determinado partido; não há uma exigência aos políticos e candidatos que se filiem a uma legenda. Em vez disso, sua função própria, enquanto Igreja, como diz a própria Doutrina Social, é a de ‘instruir e iluminar a consciência dos fiéis, sobretudo dos que se dedicam a uma participação na vida política, para que o seu operar esteja sempre ao serviço da promoção integral da pessoa e do bem comum’”, afirma o parlamentar que em 2021 foi um dos premiados pela Sociedade Thomas More com o prêmio Testimonium Catholico, entregue a fiéis que se destacam no mundo político.

Uma evidência do quão embrionária ainda é a reação seria a diferença de influência entre as frentes parlamentares evangélica e católica no Congresso Nacional. Essa última, bem menos conhecida e raramente protagonizando o noticiário político. Não é sem motivo. Apesar dos 206 deputados e nove senadores, a frente não chega nem perto da organização, da frequência de atividades e da coesão existente no grupo dos colegas evangélicos.

Entre os membros, há nomes ilustres, como o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e outros que surpreendem, dada a militância diretamente oposta ao ensino da Igreja Católica em muitos temas, como aborto, casamento homossexual e ideologia de gênero. É o caso do deputado comunista Orlando Silva (PCdoB-SP) ou dos petistas Zeca Dirceu (PT-PR) e Jorge Solla (PT-BA). Eles dividem a lista com bolsonaristas convictos, como Bia Kicis (PL-DF), católicos apreciadores da liturgia tradicional, como Chris Tonietto (PL-RJ) e até evangélicos famosos, como o Pastor Marco Feliciano (PL-SP). Sim, ele também é um dos signatários da Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana, o que não deixa de ser, de certo modo, um retrato de como está a atuação dos católicos, enquanto coletividade, na política brasileira. As direções apontadas são tantas que a alegada diversidade facilmente poderia ser chamada de confusão.

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