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Estátua de John Stuart Mill em Londres
Estátua de John Stuart Mill em Londres: Mill é a imagem da Inglaterra do século XIX, uma mistura de rebeldia intelectual com conformismo social.| Foto: Bigstock

John Stuart Mill é a imagem da Inglaterra do século XIX: uma mistura de rebeldia intelectual com conformismo social. Mill foi um intelectual sempre em crise, relutando entre a inconformidade à tradição e as regras que nutrem e sempre nutriram o bem-estar e segurança sociais. Talvez seja ele o maior expoente do utilitarismo, tese filosófica indutiva que prega a apreensão da realidade e a categorização das ações humanas através da percepção da necessidade e da busca pela satisfação pessoal – e, dizem, social.

Tão defendida quanto difamada, essa escola é, ainda hoje, a mais irritante tese da filosofia moral moderna; irritante pois, ao mesmo tempo que é difícil acreditar completamente em suas ideias mais radicais — e aguentar seus fiéis seguidores —, é quase impossível abandoná-la por completo, pois as causas materiais e impulsos de autossatisfação que cimentam tal teoria são, de fato, determinantes nas escolhas de todos, por mais altruísta e santo que você seja.

Dessa forma, John Stuart Mill se sentou naquele hall de personalidades necessárias de serem compreendidas para bem entender a sociedade moderna e suas variações. Cabe salientar, desde já, que não explicaremos especificamente o que é e as desenvolturas da escola utilitarista, para isso existem muitos bons resumos e livros. A intenção é aclarar a vida e obra do pensador inglês.

Leitura em grego e latim aos oito anos

Filho do historiador e economista James Mill, John nasceu em 20 de maio de 1806, em uma Londres em que seu pai gozava de uma popularidade grande nos grandes círculos intelectuais. Desde o seu nascimento, ao que tudo indica, o pai depositou em John Mill uma esperança de grandeza intelectual gigantesca, ao ponto de, mais tarde, o filósofo dizer, em sua 'Autobiografia', que, aos 15 anos, o pai o afastou das amizades que compartilhavam idades parecidas à sua.

A sua infância é estudada até os dias atuais por psicólogos, entusiastas e historiadores, por causa do modo rigoroso que seu pai conduziu seu ensino. É unânime entre os especialistas que sua infância afetou — positiva e negativamente — a sua vida como um todo. Aos oito anos, já havia lido em grego e latim obra inteiras, revezando entre os clássicos satíricos, fábulas e epopeias; aos 12, já era capaz de ler, ao menos, em quatro idiomas; aos 13, começou a ler Platão e Aristóteles de forma compulsiva, a lógica escolástica se tornou rapidamente o centro das atenções para ele. O dilema moral, a retidão intelectual e a questão sobre “o que movia os indivíduos” pareciam ser suas inquietações juvenis que se tornariam posteriormente indagações filosóficas maduras.

Aos 14 anos, ele conheceu a grande influência intelectual da sua juventude, o filósofo inglês Jeremy Bentham, o mais antigo e tradicional pensador da escola utilitarista. Não é possível afirmar que desde cedo ele foi arrebatado pelas teses utilitaristas, mas os passos posteriores de sua vida intelectual conduziram-no a isso. Dos vastos interesses intelectuais que cultivava por hobby, da botânica avançada à matemática aplicada, Stuart Mill parece ter especial gosto pela psicologia e pelo direito romano. Em relação à psicologia, destaca-se se interesse pela busca do porquê os homens pensavam, gostavam e escolhiam o que escolhiam, e para isso leu muito Claude-Adrien Helvétius, filósofo e protopsicólogo francês, cujo enfoque no sentimento e na escolha por necessidade marcou profundamente as ideias de Mill.

Ao mesmo tempo, Mill, aos poucos, se tornava um inconformista social, acreditando que o regramento arbitrário do Estado era uma espécie de paternalismo abusivo e antinatural ante o indivíduo; ainda que sua infância não tenha sido “infeliz”, também não foi plenamente satisfatória, e muitos entendem que sua visão liberal e antiestatal da vida madura se deveu a um reflexo da sua infância rigorosamente controlada. Aos 21 anos, sofreu de uma depressão severa, o que, segundo ele próprio, acabou destruindo sua autoestima e capacidade de se relacionar intimamente.

Debates acirrados

Aos 23 anos, começou a trabalhar na até hoje polêmica Companhia Inglesa das Índias Orientais, especificamente com correspondências e contratos. Aos 25, ele se apaixonou por Harriet Taylor, pensadora defensora dos direitos femininos. Harriet era casada com John Taylor na ocasião em que Mill a conheceu em sua casa a convite do próprio marido de Harriet. Durante muito tempo, eles trocaram cartas e ensaios amorosos e discutiram a ética do divórcio e o direito feminino de se relacionar por afeição. John Taylor faleceu 20 anos depois do primeiro encontro entre Mil e Harriet, então eles se casaram em meados de 1851. Mas, antes de nos aprofundarmos nas opiniões políticas e influências de sua esposa, precisamos regredir à década de 1830 para entender a evolução do pensamento e obras de Mill.

Para o jovem Mill, o embate entre a necessidade de regras sociais e a liberdade individual sempre existirá, seu interesse posterior por lógica e ética apenas refletirá suas preocupações mais profundas sobre essas temáticas. Em sua 'Autobiografia', ele mostra que foi na Debating Society, uma sociedade de intelectuais londrina, onde ele testou suas ideias de juventude — ele ainda não era utilitarista. Foi ali, em confronto franco e aberto com pensadores de envergadura respeitável, que paulatinamente ele foi abandonando os conceitos mais duros defendidos por seu pai, e adotando uma visão singular de “fins últimos”, o caminho para a metafísica.

Em certo momento, Mill começou a se interessar pela a definição mesma de ética e como sua praticidade se faria real através de escolhas pragmáticas do dia a dia; a crítica célebre do pensador às teses católicas e protestantes, inclusive, era manter-se sempre alheio à realidade factual das escolhas individuais enquanto se conjectura modelos ideais e metas de perfeição. A pergunta central da ética humana, aponta John Stuart Mill: o que faz uma escolha ser certa ou errada?

Após sair do clube de debates acima citado, em 1829, estava preparado para contrapor ideias, mas também para lapidar as suas. Dizia a amigos que os debates francos e, por vezes, quase animalescos, fizeram com que contestasse suas próprias visões e reformulasse outras. A partir de 1830, sua vida guinou no mundo do debate público, escrevendo para vários periódicos e revistas como The Jurist, The Monthly Repository e Tait’s. Em 1840, escreveu seus ensaios mais famosos para o The Edinburgh Review; destaco especialmente sua apreciação dos cadernos de Tocqueville: “M. De Tocqueville on Democracy in America” (1840).

Influência positivista

Mas também escreveu obras de envergadura mais perene, seus interesses por lógica, ética e ciências sociais só aumentaram. Além da psicologia, direito romano e lógica, outra influência importante nas ideias de Stuart Mill foi August Comte, o positivista que cimentou em Mill a ideia de que as ciências sociais poderiam galgar posições científicas de caráter empírico.

Unindo as convicções éticas de utilidade real e o pragmatismo analítico de Comte, o utilitarismo de Mill deu um upgrade naquele que ele havia herdado de Jeremy Bentham. Com Comte, ele se corresponde pessoalmente de 1841 a 1847, período no qual eles discutem pontos específicos do positivismo e das teses liberais do francês. Mas seria um erro deste biografador não destacar a influência de Isaac Newton em suas ideias — Mill foi leitor voraz do próprio Newton e de seus comentaristas. Seguindo a linha positivista, as teses matemáticas e físicas de Newton gestaram em Mill um materialismo brando, tendendo a enxergar a ética e a lógica como sendo máquinas racionais atuando sob leis determinadas e indivisíveis.

Em 1837, ele tem contato com 'Philosophy of the Inductive Sciences' [Filosofia das Ciências Indutivas, sem edição no Brasil], de William Whewell. Por meio dessa obra, Mill consegue construir uma filosofia própria, um sistema lógico indutivo que ele promete não ser uma contraposição à lógica formal, mas sim seu complemento. Para ele, as ações éticas do homem, e esse é o cerne do utilitarismo: toda ação moral passa pelas possibilidades de ação real. A escolha pelo mais satisfatório é a escolha moral possível, tendo em vista o bem individual e da maioria. Posteriormente, ele explicará que a escolha indutiva, isto é, a partir do dado fato para se adequar ao ideal, tende em vista à utilidade social, ainda que o parâmetro primeiro seja o indivíduo.

Mas Mill não se encerra no debate moral, ele também foi um economista dos mais brilhantes. Em 1844, ele lança Essays on Some Unsettled Questions of Political Economy [Ensaios sobre algumas questões não resolvidas da economia política, sem edição no Brasil], um livro técnico de comentários de natureza econômica, mostrando-se claramente seguidor das ideias do economista britânico David Ricardo (1772-1823).

Em 1848, ele lança seu maior trabalho sobre economia, 'Princípios da Economia Política', onde elabora um trabalho realmente autoral, autêntico, que o coloca na estante dos grandes economistas de seu tempo. A obra é tida como liberal, pois navega nos princípios filosóficos de John Locke, Adam Smith, mas elabora uma visão independente quando trata do conceito de propriedade, por exemplo, que muito endossa com uma retórica socialista e agrária.

Libertário

Em 1858, ele escreve a obra mais popular e acessível de suas ideias: Utilitarismo. O livro aborda os aspectos gerais da teoria, e mostra como Mill atualizou e, para alguns, até reformulou a tese de Bentham. O livro se tornou cânone para muitos países, necessário em cursos de filosofia política no mundo anglófono. Falando em filosofia política, Harriet Taylor aprofundou as convicções sobre os direitos femininos em Stuart Mill, ao ponto de ele escrever ensaios com caráter de indignação ante algumas posturas tradicionais inglesas em relação às mulheres.

Sua percepção política e moral é profundamente formada pelas ideias privadas de Harriet, e, após a morte dela, em 1858, Mill se torna um baluarte da defesa dos direitos femininos na Inglaterra — criando, inclusive, a filha remanescente do casamento de Harriet com John Taylor, Helen Taylor. Tal influência é largamente percebida na obra 'Sobre a liberdade', escrita um ano após a morte da esposa. O livro se tornou uma espécie de manifesto, apesar de discordar dessa nomenclatura por ser um livro profundo e embasado, muito mais que uma simples apologética política.

Após o lançamento de 'Sobre a liberdade', John Stuart Mill se dedica à pesquisa e escrever ensaios esporádicos. Apoiou abertamente o Norte na Guerra Civil Americana, dizendo que a abolição da escravidão era um dever humano indispensável.

Em 1865, ele toma posse na Câmara dos Comuns, representando Westminster; com posturas consideradas radicais para época, ele se tornou uma espécie de polemista muito amado e odiado por ambos os partidos tradicionais. Apoiou também, abertamente, a intervenção inglesa em países ao redor do mundo em defesa da liberdade individual e contra as “tiranias constituídas”, ao mesmo tempo que pregava brandura nas taxações excessivas de colônias e agrupamentos conquistadas pelo exército do Rei. Em 1867, foi eleito reitor da Universidade de St. Andrews, fazendo seu discurso inaugural naquele mesmo ano.

Efetivamente granjeou o título de libertário, defendeu efusivamente o sufrágio feminino e o divórcio. Em 1868, após o desmanche da Câmara dos Comuns, Mil perde o cargo, e não volta mais a ser eleito. Em 1869 escreve seu livro mais polêmico, 'Sujeição das Mulheres', não tão polêmico pela temática principal, mas porque lá ele defende uma reforma agrária radical, em certos aspectos se achegando a uma postura quase socialista de redistribuição de terras, o que lhe rende críticas liberais e defesas parciais da esquerda até o dia atual. O filósofo, polemista, militante e economista britânico morreu em 8 de maio de 1878 de erisipela infecciosa. Encontra-se enterrado junto à sua amada, em Avinhão, Sul da França — país que amou e odiou em vários momentos de sua trajetória.

“Espírito Liberal”

John Stuart Mill teve uma vida pública relativamente simples, apesar do ardor na defesa das ideias que cultuava, sempre se manteve alheio aos problemas pessoais daqueles que o cercavam. No âmbito privado, por sua vez, cultivou conscientemente uma existência pacata.

É indiscutível, porém, a marca que ele deixou naquilo que os ingleses chamam de “Espírito Liberal”, a busca de uma construção independente de uma filosofia coesa é louvável, ainda que não gostemos das ideias em si. Seu materialismo ético é um tanto paradoxal, pois acabou firmando na mentalidade inglesa do final do século XIX uma espécie de metafísica da liberdade política, dando aos pensadores um impulso de independência e luta contra o servilismo ideológico e acadêmico.

No entanto, a tese utilitarista que o fez conhecido nunca foi plenamente desenvolvida em todos os temas que concerne uma ideia filosófica duradoura. Não que seja regra que uma tese filosófica aborde por completo os dilemas do conhecimento e da ação humana, mas foi efetivamente o que Stuart Mill defendeu ser o utilitarismo.

O utilitarismo, por vezes, cai num vão político do qual dificilmente se livra, está irremediavelmente ligado ao liberalismo político, ainda que tenha invariavelmente se comprometido com teses tipicamente socialistas em muitas ocasiões. Assim sendo, para muitos acadêmicos e críticos, Mill não desenvolveu suficientemente a sua própria ideia, e tampouco surgiu ainda alguém de seu calibre para fazê-lo. Como dito no início do texto, Mill desenvolveu uma ideia absurdamente impactante e uma via filosófica que não pode ser ignorada, mas, nem de perto, é uma filosofia completa no sentido de “escola filosófica”, como é o tomismo, o hegelianismo ou a praxiologia.

Mill flertou com o positivismo, com o materialismo e com a lógica indutiva, tentando fazer de sua ideia uma ciência exata o quanto isso fosse possível, mas também se enamorou do idealismo romântico do progressismo, transformando muito de seus desenvolvimentos científicos em placas ideológicas de momento.

Nada disso tira a importância do autor, que, seguramente podemos dizer, jamais será um “não importante”, ler John Stuart Mill é necessário nem que seja para refutá-lo, pois, apesar de não ter construído uma filosofia completa, nem de perto fez uma filosofia simplória e sem importância, pelo contrário, por vezes, parecem ser Mill e seu utilitarismo a única resposta satisfatória para a ética contemporânea.

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