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Nobel de Economia defende que problemas como criminalidade, desigualdade acentuada e condições de saúde adversas têm origem na falta de atenção à primeira infância.
Nobel de Economia defende que problemas como criminalidade, desigualdade acentuada e condições de saúde adversas têm origem na falta de atenção à primeira infância.| Foto: Pixabay

Cerca de um quarto da população brasileira vive abaixo da linha da pobreza – ou seja, tem renda domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 mensais. São 54,8 milhões de brasileiros vivendo nessas condições. Os dados dão da Síntese de Indicadores Sociais de 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa miséria fica ainda mais gritante se colocada lado a lado com o topo da lista de mais ricos do Brasil: segundo um levantamento de 2017 da ONG Oxfam, as seis pessoas mais ricas do país concentram a mesma riqueza que as 100 milhões mais pobres – ou seja, quase metade (48,3%) da nossa população.

O combate à desigualdade costuma estar associado a políticas de redistribuição de renda, uma pauta tipicamente de esquerda. Eficientes sob alguns aspectos, políticas como essa são, no entanto, insuficientes: uma solução mais consistente e duradoura para o problema da miséria passa pela questão do aumento da geração de riqueza, uma seara cuja responsabilidade principal não é do Estado, mas do setor privado. O preenchimento de vagas de empregos e a opção pelo empreendedorismo, porém, dependem de um fator fundamental e comumente subestimado: o desenvolvimento de habilidades que tornem tanto o caminho de um bom emprego quanto o do sucesso no empreendedorismo uma possibilidade real.

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Foi o que percebeu o economista James Heckman, professor da Universidade de Chicago e Nobel de Economia em 2000. “Uma das principais fontes da desigualdade nos Estados Unidos hoje é o acidente do nascimento. A sociedade norte-americana é dividida entre habilidosos e não-habilidosos, e a raiz dessa divisão está nas experiências da primeira infância”, diz ele no livro Giving Kids a Fair Chance [Dando às crianças uma oportunidade justa], publicado em 2013.

A tese de Heckman é que não apenas a desigualdade acentuada, mas outros problemas como a criminalidade, a gravidez na adolescência e condições de saúde adversas, têm a sua raiz em falhas no desenvolvimento cognitivo e não-cognitivo que vêm desde a infância. Trocando em miúdos: a redistribuição não resolve o problema se a desigualdade persiste nas próprias condições em que nascemos; o apelo à meritocracia também não, se a largada é diferente para uns e para outros.

Um foco inteligente

O economista complementa esse foco na primeira infância com um argumento difícil de contrariar: direcionar recursos para promover o desenvolvimento da criança nessa fase da vida não é apenas mais eficaz, como é mais barato – e aqui a comparação não é com o ensino superior, mas com intervenções tardias como programas de reabilitação, alfabetização de adultos, educação profissional, etc.

Segundo os estudos de Heckman, cada dólar investido na primeira infância de uma criança é capaz de trazer um retorno anual de 14 centavos durante toda a sua vida. “É um dos melhores investimentos que se podem fazer — melhor, mais eficiente e mais seguro do que apostar no mercado de ações norte-americano”, defendeu ele em uma entrevista a Monica Weinberg, da Veja, em 2017.

Quanto mais a sociedade demora para amparar o desenvolvimento de uma criança que vive em condições de vulnerabilidade, maior se torna a desigualdade entre aqueles que têm mais habilidades e aqueles que têm menos. Ao mesmo tempo, mais caro se torna remediar os possíveis impactos das lacunas em sua formação. Inversamente, intervenções mais precoces favorecem a eficácia de intervenções futuras. Como Heckman gosta de repetir, “habilidades geram habilidades”.

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Por “habilidades”, aqui, entenda-se um amplo espectro de competências cognitivas e não-cognitivas. As não-cognitivas — motivação, atenção, persistência, sociabilidade, etc. – podem ser resumidas em uma palavra: caráter. Embora as habilidades cognitivas, medidas pelo quociente intelectual (QI), sejam importantes, o caráter é para Heckman ainda mais importante para gerar resultados melhores na vida – e mais maleável. “O caráter é uma habilidade, não um traço de personalidade. Pode ser melhorado, e há formas testadas e efetivas de fazer isso”, afirma o economista no artigo Fostering and Measuring Skills: Interventions that Improve Character and Cognition (“Aprimorando e medindo habilidades: intervenções que melhora o caráter e a cognição”), coescrito com Tim Kautz em 2013.

Medindo o impacto

Heckman chegou a essas conclusões depois de analisar os resultados de dois programas de atenção à primeira infância. O Perry Preschool Program foi aplicado a 58 crianças negras de baixa renda que tinham 3 anos de idade no início do projeto. O programa consistia de duas horas e meia de atividades para as crianças por dia, cinco dias por semana, e uma visita semanal de uma hora e meia do educador à casa da família, tudo isso durante dois anos. O índice médio de crianças para cada educador era de 6 para 1. Isso aconteceu entre 1962 e 1967 e tanto esse grupo de crianças quanto um grupo de controle composto por 65 crianças com as mesmas características foram acompanhados até os 40 anos de idade.

Inicialmente, as conclusões do projeto pareceram negativas: embora o QI dos participantes aumentasse muito em relação ao grupo de controle durante os anos de aplicação do programa, os índices voltavam a se nivelar por volta dos 9 anos de idade. A sacada de Heckman foi olhar não para o QI, mas para outros fatores. Foi aí que ele viu a diferença.

Aos 40 anos de idade, apenas 7% dos membros do grupo de controle ganhavam US$ 2 mil dólares ou mais por mês. No grupo que participou do programa, eram 29%. A diferença também era significativa em relação a ter casa própria (36% contra 13%), a concluir o ensino médio (77% contra 60%), a ter uma performance acadêmica satisfatória aos 14 anos de idade (49% contra 15%) e a ter filhos fora do casamento (57% contra 83%). Heckman viu que esses resultados estavam associados ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais.

Você pode estar se perguntando que tipo de currículo milagroso foi capaz de alcançar esses resultados. E aí é que vem a parte mais interessante da história: não se tratava de currículo. Embora a educação infantil tenha um papel a desempenhar nessa fase da vida, o papel familiar é o fator fundamental. Vale a pena ouvir o próprio Heckman, em uma entrevista concedida a Luiza Franco, da BBC Brasil, em maio:

Quando comecei a estudar isso, também pensava no projeto como um currículo, mas não é – nem o Perry era e nem outros programas de educação infantil de qualidade são. Não são exatamente salas de aula. São como uma família estendida. São grupos pequenos de crianças, recebendo muita atenção, orientação, muitos estímulos.

No caso do Perry, eles pegavam crianças de famílias muito pobres e levavam para a creche. Era como ser pais – ficavam muito tempo com a criança e davam uma mentoria a ela. Levavam as crianças ao zoológico, ao parque, brincavam com elas. Isso dava à criança a oportunidade de interagir com seus pares. Por isso, funcionou.

O programa também tinha visitas semanais aos pais. Os pais ficaram muito empolgados. A criança voltava para casa entusiasmada. E os pais acabavam estimulando a criança ainda mais.

Longo prazo

Em sua pesquisa mais recente, publicada em maio, Heckman fez outra descoberta, ao lado de seu colega Ganesh Karapakula: o impacto do Perry se estendeu aos filhos dos participantes. Os índices de empregabilidade, escolaridade e saúde dos filhos dos participantes se mostraram significativamente maiores do que os de seus pares do grupo de controle.

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67% dos filhos do grupo que participou do Perry terminou o ensino médio sem nenhuma suspensão – que é comum entre estudantes negros de classes mais baixas –, contra 40% dos filhos do grupo de controle. 59% tinham um trabalho de tempo integral, contra 42%.

Já há um bom movimento de atenção a primeira infância no Brasil hoje. O país foi o pioneiro na América Latina a ter uma legislação dedicada ao desenvolvimento integral das crianças nessa faixa etária, o Marco Legal da Primeira Infância, de 2016. O Brasil tem ainda o maior programa em escala voltado à primeira infância, o Criança Feliz. Diversas entidades atuam nesse campo, como a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, a Pastoral da Criança e o Instituto Zero a Seis. Ainda assim, a atenção a essa fase está longe de ser uma bandeira levantada por um público mais amplo. As pesquisas de Heckman confirmam que não há nada a se perder com isso. Pelo contrário, sem a atenção à primeira infância “estamos desperdiçando a potencial contribuição de um grande número de concidadãos”, como afirma o economista. O desenvolvimento da pessoa em todo o seu potencial depende da riqueza do ambiente familiar, que por essas e outras razões merece o amparo de toda a sociedade.

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