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Nossos senadores da CPI insistem em tentar convencer os brasileiros de que suas quimeras, tolices e desatinos correspondem à realidade.
Nossos senadores da CPI insistem em tentar convencer os brasileiros de que suas quimeras, tolices e desatinos correspondem à realidade.| Foto: Bigstock

Há muitas leituras sobre o Quixote. Todas, de uma forma ou de outra, coincidem em ver nele a figura de alguém que, mesmo no limite das suas forças, e mesmo sabendo que não vai dar certo, se enfrenta com a injustiça, com a desonestidade e com tudo o que há de vil e de baixo neste mundo meio torto, como o próprio Quixote diz tantas vezes, para procurar endireitá-lo.

Olhando para este mundo nosso cheio de gente do bem contra gente do mal, tuítes progressistas contra tuítes fascistas, cientistas contra negacionistas, “terraplanistas” contra “vacinadores”, olhando, enfim, para o espetáculo dramático e bufo da (como diria García Márquez) “política em tempos de pandemia”, olho para o Quixote e parece-me que ele tem o poder de nos fazer ver, de tornar possível o que cada vez está mais difícil: cair em si e conseguir perceber que tudo isso a que assistimos é o “efeito de Mambrino”, feito por burladores e nigromantes que nos enfeitiçaram e não nos deixam ver a realidade.

Cervantes, como todos os grandes escritores, foi um verdadeiro profeta. Nada mais “moderno” (ou melhor, pós-moderno) do que esse diálogo com o fiel escudeiro Sancho, em que aparece “o Elmo de Mambrino”, no capítulo XXI da Primeira Parte.

“(...) Se não me engano, aí vem caminhando para nós um homem que traz na cabeça o Elmo de Mambrino...
– Olhe Vossa Mercê bem o que diz, e melhor o que faz –respondeu Sancho- (...) e talvez desse eu tais razões que Vossa Mercê veria que se enganava no que diz.
– Como enganar-me no que digo, traiçoeiro escrupulizador?! – exclamou Dom Quixote – dize-me: não vês aquele cavaleiro que vem para nós sobre um cavalo ruço rodado, e traz na cabeça um elmo de ouro?
– O que eu vejo –respondeu Sancho – não é senão um homem escarranchado num asno pardo, cor do meu, e que traz na cabeça uma coisa que reluz.
– Pois “essa coisa que reluz”é que é o Elmo de Mambrino –respondeu Dom Quixote...”.

Estamos diante do “efeito de Mambrino”: teimamos em afirmar que o imaginado, o pensado e o construído mentalmente é real, e somos capazes de “dar-lhe” vida e existência por meio da elaboração de uma categoria ou conceito, porque “aquela coisa que reluz” tem um nome. E quem nomeia, cria e domina a realidade.

Afinal, como o próprio Cervantes nos explica, o cavaleiro da Triste Figura “tinha isso para si: quantas coisas via, logo pelo ar as acomodava às suas desvairadas cavalarias e descaminhados sonhos”.

Futuro perfeito

Adiantaria alguma coisa alguém, talvez uma médica, dizer que não é bem assim, que não há evidências suficientes, que as coisas precisariam de mais tempo ainda para serem cientificamente comprovadas?

Quando tudo o que vemos o acomodamos aos nossos desvairados sonhos e conceitos e verdades, seremos capazes de compreender aquilo que algum Sancho inocente nos informar? Olha, que não é bem assim...

O Quixote de Cervantes é uma forma profética de anunciar os novos tempos que se aproximam e que já chegaram. Novos tempos marcados pela pretensão racionalista de poder construir uma sociedade perfeita e justa a partir de certos princípios racionais, verdadeiros e universais. Como se isso fosse possível!

O Quixote não é louco porque quer reviver um passado glorioso; é louco porque quer construir um futuro perfeito.

Ditosa idade e afortunados séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de dourados (...) porque então se ignoravam as palavras “teu” e “meu”! Tudo era comum naquela santa idade (...)

O que Cervantes está querendo nos dizer é para tomar cuidado com esses reformadores modernos, construtores de uma “utopia social” na qual a virtude, a justiça, a igualdade e todos os outros valores – afinal, valores de cavaleiros andantes – se imponham a partir de uma definição prévia, categórica e conceitual, tal como fazia o Quixote, a partir do seu modelo cavaleiresco que, na sua cabeça era, sim, perfeito, mas que, na hora em que era colocado em prática, só trazia desgraça sobre desgraça.

Ítalo Calvino, no seu livro Palomar, faz uma singela advertência, que poderá ajudar-nos como critério existencial. Palomar era um homem que não tinha saído do seu apartamento em Roma. E um dia decidiu se aventurar na vida lá fora para tentar entendê-la. Para isso, ele criou um modelo que, por definição, era perfeito.

E, então, tratava-se de “conseguir ter presente por um lado a realidade informe e demente da convivência humana, que só gera monstruosidades e desastres e, por outro lado, um modelo de organismo social perfeito, desenhado com linhas nitidamente traçadas, retas e círculos e elipses, paralelogramas de forças, diagramas com abscissas e ordenadas”.

O problema do modelo é que, para ser modelo, tem que “funcionar com perfeição; ao passo que a realidade, vemos bem que ela não funciona e que se esfrangalha por todos os lados”.

Mas Palomar, como tanta gente que anda por aí nessa CPI da Covid, não desiste e não será por isso que ele vai deixar de lado o seu modelo: se é assim que as coisas se passam, “resta apenas obrigar a realidade a adquirir a forma do modelo, por bem ou por mal". A decisão já está tomada. A sentença já está pronta. O modelo é perfeito e a realidade... a realidade não é. A realidade, por bem ou por mal, terá de ser constrangida ao modelo.

Efeito de Mambrino

Quando o Quixote quer convencer a Sancho (que já vira como Aldonça era muito feia) de que a sua Dulcineia era a mulher mais linda do mundo, disse-lhe:

Segundo isso, baste-me a mim também pensar e crer que a boa da Aldonça Lourenço é formosa e honesta (...) e, para acabar com isto, imagino eu que tudo que te digo é assim, sem um til de mais nem de menos; pinto-a na minha fantasia como a desejo, assim nas graças como no respeito.

E, para encerrar de vez o assunto, diante de um Sancho Pança que teima e insiste em lhe dizer que a sua amada não é tudo isso que ele acha que é, o Quixote conclui definitivamente:

Pois é possível que, andando comigo há tanto tempo, ainda não tenhas reconhecido que todas as coisas dos cavaleiros andantes que parecem quimeras, tolices e desatinos, são pelo contrário realidades?

Tem muito senador sob o “Efeito de Mambrino”. Tudo o que ele diz e tudo o que ele pensa e tudo o que ele acha, mesmo que seja um desaforo e um desatino e uma tolice, é pelo contrário verdade. Por quê? Porque é assim que ele pensa.

Pronto, nossos senadores viraram Quixotes.

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