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Um artigo no periódico Molecular Psychiatry tentou, recentemente, examinar as evidências científicas da hipótese da serotonina a partir de vários ângulos possíveis e descobriu que ela é muito precária.
Um artigo no periódico Molecular Psychiatry tentou, recentemente, examinar as evidências científicas da hipótese da serotonina a partir de vários ângulos possíveis e descobriu que ela é muito precária.| Foto: BigStock

As doenças podem existir sem que ninguém saiba a sua causa, e os tratamentos podem funcionar sem que ninguém saiba por quê. O quinino, por exemplo, foi usado contra a malária antes de a existência do parasita ser conhecida, sabendo-se só da transmissão via mosquito.

Assim, a questão de se os antidepressivos funcionam independe da veracidade da teoria da depressão a embasar a sua prescrição. O primeiro antidepressivo descoberto, a imipramina, começou a ser usado para tratar tuberculose, então os médicos notaram que o humor de alguns dos seus pacientes melhorava de maneira notável. No entanto, a imipramina não era eficaz contra a tuberculose.

A teoria mais popular sobre a causa da depressão é que ela resulta de um nível relativamente baixo de serotonina no cérebro. (Deixemos de lado as dificuldades no próprio conceito e diagnóstico da depressão, bem como o fato de a eficácia dos antidepressivos em qualquer teste controlado ser amiúde marginal.) O tratamento mais comum para depressão agora é receitar inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), que supostamente aumentam os níveis de serotonina no cérebro. Entre a teoria da causa da depressão e o seu tratamento, portanto, parece haver alguma conexão lógica.

Um artigo no periódico Molecular Psychiatry tentou, recentemente, examinar as evidências científicas da hipótese da serotonina a partir de vários ângulos possíveis e descobriu que ela é muito precária. Para mim, não foi nenhuma grande surpresa. Sempre me pareceu inverossímil que uma hipótese tão simples fosse correta e ainda explicasse uma doença tão proteiforme em suas manifestações, tão variada em suas causas, tão duvidosa até em sua identidade nosológica.

Quando eu era um jovem médico, já havia muito que se discutia se a depressão era uma única entidade que variava sobre um único eixo conforme a gravidade (indo desde a trivial até a que ameaça a vida), ou se havia dois tipos de depressão, a reativa e a endógena, sendo esta muito mais rara, porém capaz de levar a uma melancolia grave, e não era causada por nada na vida do paciente, nem por circunstâncias que a pudessem explicar. Politicamente — se não cientificamente —, a primeira alternativa ganhou. E agora, como diz um eminente psiquiatra pesquisador, "só existe depressão e mais depressão".

É claro que isso soou como música para mais de um tipo de ouvido. Toda infelicidade virou depressão. De fato, as palavras "infeliz" e "infelicidade" quase desapareceram do léxico do homem ocidental. A normalidade corpórea era o êxtase e o desvio era doença. A solução era medicar.

Nos dias de hoje, um novo tipo de antidepressivo avançou: o ISRS, com uma série de efeitos colaterais aparentemente mais benigna do que os antidepressivos mais velhos, como a amitriptilina, cujas overdoses eram perigosas porque os deprimidos (ou supostos deprimidos) tinham inclinação a tomá-las. E o ISRS veio junto com uma hipótese agradavelmente simples para explicar a sua eficácia (se é que ele tinha alguma). Uma verdadeira mina de ouro! Em pouco tempo um sexto da população adulta de vários países grandes estava tomando. Uma pílula para todos os males se tornou uma realidade, se não estritamente médica, ao menos social. A soma total da infelicidade humana é difícil de medir, mas não é óbvio que ela tenha declinado com o advento dessas drogas.

A teoria se revelou popular com o público, o qual agora podia explicar o próprio descontentamento por meio de um desbalanceamento químico no cérebro, ainda que, para uma parte muito grande desse público, seja difícil distinguir o permanganato de potássio do sulfato de cobre. Deu às pessoas a licença para falar de si próprias sem revelar nada. Eu entreouvi muitas conversas em ônibus, trens e alhures sobre o balanceamento químico no cérebro de um dos interlocutores. Não sou eu, são os meus neurotransmissores. E na medida em que o ISRS, como tantos remédios, exerce um poderoso efeito placebo junto com um eventual efeito verdadeiro, a teoria pareceu, em muitos casos, ter validade.

Toda a questão da miséria humana é de uma complexidade temível. Mas o que mais deveríamos esperar? Temos uma sede por simplificação do mesmo jeito que um viajante do deserto tem sede de água.

©2022 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.
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