A tragédia dos campos de concentração nazistas não se restringe à morte de milhões de judeus, homossexuais e dissidentes políticos de todos os tipos. E ela tampouco terminou quando os últimos prisioneiros foram liberados. Pelo contrário, foi aí que os campos de concentração abandonaram o plano da realidade e ganharam as mentes de incontáveis pessoas ao redor do mundo.
Porque é nisso que os campos de concentração e, mais tarde, os gulags e toda a sorte de morte institucionalizada e em escala industrial perpetrada por regimes tirânicos se transformaram: em medo. Um medo permanente de ver a vida esmagada por forças incompreensíveis e injustas, bem como o medo de viver uma vida incontrolável e sem sentido. É esse medo pandêmico que dá origem a dois dos maiores males psiquiátricos do século XX: a ansiedade e a depressão.
Mas há salvação. Pelo menos era nisso que acreditava o psiquiatra e psicólogo austríaco Viktor Frankl, ele próprio um sobrevivente dos campos de concentração que usou suas terríveis experiências nas mãos dos nazistas para escrever um dos livros mais influentes do século XX e uma leitura necessária em tempos de confinamento e incertezas como os de hoje: "Em Busca de Sentido".
Contra o suicídio
Viktor Frankl nasceu em 1905, num lar vienense de classe média. Ainda na adolescência, ele começou a se interessar pelo promissor campo da psicologia e até trocou cartas com o pai da psicanálise, Sigmund Freud. Na faculdade de medicina, ele se dedicou à neurologia e à psiquiatria. Antes mesmo de se formar, Frankl organizou grupos de ajuda para tratar de um problema que persiste até os dias de hoje: o suicídio entre adolescentes.
Seu trabalho para evitar o suicídio entre os jovens vienenses foi um sucesso tal que, em 1931, a cidade não registrou nenhuma ocorrência do tipo. A notícia de seu trabalho chegou aos ouvidos de Wilhelm Reich, uma das estrelas da psicologia, que o convidou a trabalhar em Berlim.
Mas aí os nazistas chegaram ao poder, anexaram a Áustria e começaram a perseguir os judeus. Até 1940, Frankl conseguiu trabalhar e, num hospital de Viena, conseguiu impedir que vários de seus pacientes considerados deficientes mentais fossem assassinados pelo programa de eutanásia nazista.
Os seguidores de Hitler acharam que a solução para todos os problemas do mundo era eliminar judeus como Viktor Frankl. A esposa, os pais e os irmãos foram todos exterminados. Ao ser libertado, Frankl se percebeu sozinho no mundo e com uma experiência traumática que tinha tudo para lhe tirar a vontade de viver.
Mas não tirou. Daí nasceu “Em Busca de Sentido”. O livro teria sido escrito em apenas 9 dias, numa espécie de fluxo de consciência, e pretendia responder a uma única pergunta: “como o cotidiano num campo de concentração afetava o prisioneiro?”. Da resposta nasceram um best-seller, com mais de 10 milhões de cópias vendidas, e a chamada Terceira Escola da Psicanálise, a logoterapia.
Simples e revelador
“Em Busca de Sentido” foi lançado na Alemanha logo depois da guerra, em 1946, e ganhou o mundo a partir de sua edição norte-americana, em 1959. Muito mais do que as crônicas de um prisioneiro dos campos de concentração e mais do que um simples livro de autoajuda, "Em Busca de Sentido" é quase um compêndio filosófico que há mais de 70 anos vem ajudando as pessoas a enfrentarem as muitas manifestações do medo gerado pela simples existência de instalações industriais destinadas a matar pessoas.
A conclusão a que Frankl nos induz durante a leitura é de uma simplicidade absurda e ao mesmo tempo relevadora. Bebendo fartamente na antiquíssima fonte do estoicismo, Frankl propõe que o sentido da vida seja reafirmado a todo instante, mesmo diante do sofrimento inconcebível dos campos de concentração e mesmo diante da morte aleatória da tirania nazista.
O sentido da vida, para Frankl, está em oferecer consolo às pessoas próximas. Ele próprio, durante sua experiência nas mãos dos nazistas, manteve-se são ao direcionar seus esforços para o simples ato cotidiano de respirar a fim de que, um dia, pudesse reencontrar a esposa – o que infelizmente não aconteceu. A verdadeira felicidade, para Frankl, está na esperança ativa, e não exatamente na realização do sonho.
“Em Busca de Sentido” é um livro que fala ao coração dos liberais também por sua defesa entusiasmada da liberdade de escolha diante do sofrimento. É neste momento que o livro ganha complexidade, porque as melhores escolhas livres muitas vezes estão sujeitas ao fomento de uma vida espiritual rica. A liberdade sem esse estofo espiritual, para Frank, se traduz em desespero.
Sim para a vida
Agora três palestras de Viktor Frankl foram reunidas em livro pela primeira vez em inglês. Em “Yes to Life: Despite Everything” [Sim para a vida: apesar de tudo], Frankl fala especialmente para as pessoas que buscam no suicídio a saída para as aparentemente insolúveis dificuldades cotidianas.
E ele o faz reforçando algo que parece ter sido esquecido desde que os campos de concentração foram revelados ao mundo. Algo de que em tempos de isolamento social e crise econômica nos lembramos com apreensão: o sofrimento também faz parte da vida. Mais do que isso, ele é onipresente e quase cotidiano. Abdicar completamente do sofrimento, portanto, seja buscando uma felicidade de propaganda de margarina, seja se entregando aos prazeres mundanos, não é uma opção.
Repetindo, a obra de Frankl se comunica bastante com a filosofia de Marco Aurélio e Sêneca no que ela tem de mais pragmática: a aceitação da realidade (em vez da criação patológica de uma realidade alternativa, de um ideal inalcançável) e a liberdade de pensamento e ação como única forma de enfrentar os dissabores inerentes à vida.
Porque você muitas vezes não tem como evitar que o Estado, com seus ditames aleatórios e autoritários, faça um estrago na sua vida. Mas, tendo encontrado na vida o sentido, é possível evitar que ele reduza a pó sua alma, sua obra, sua biografia e todas as coisas imateriais que compõem sua existência.
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