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O embaixador da China, Yang Wanming, durante o Fórum de Think Tanks China-Brasil.
O embaixador da China, Yang Wanming, durante o Fórum de Think Tanks China-Brasil.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

As tropas do Exército Brasileiro se preparavam para o levante que derrubaria o presidente João Goulart quando, em Pequim, veio ao mundo Yang Wanming. O futuro embaixador da China no Brasil nasceu em 30 de março de 1964. Naquela época, a China ainda era governada por Mao-Tsé Tung, líder da sangrenta revolução que levou os comunistas ao poder 15 anos antes. O país não mantinha relações diplomáticas com a Europa Ocidental ou os Estados Unidos. Tampouco era parte da Organização das Nações Unidas (ONU).

Quando Wanming tinha seis meses de vida, Mao Tsé-Tung fez um célebre discurso celebrando o “Grande Salto Adiante”, uma espécie de cavalo-de-pau abrupto na economia chinesa. A ideia era empurrar o país rumo ao progresso industrial, deixando para trás a antiga China rural. No pronunciamento, o ditador afirmou que seu país havia vencido o feudalismo, o imperialismo e o capitalismo, e citou outro líder comunista: “No início deste século, o Dr. Sun Yat-sen, o grande revolucionário chinês e nosso precursor, disse que a China daria um grande passo adiante. Sua previsão certamente se tornará realidade nas próximas décadas. Esta é uma tendência inevitável que nenhuma força reacionária pode parar ”, afirmou.

Na verdade, o “Grande Salto”, que incluiu o remanejamento de milhões de pessoas do campo para as cidades, teve início seis anos antes. O custo foi de 20 milhões de mortes (algumas fontes reportam ainda mais). Mas, de certa forma, a profecia se realizou: o regime chinês, hoje sob o comando de Xi Jinping, tem o segundo maior PIB do mundo e, após o colapso da União Soviética, passou a ser o maior rival dos Estados Unidos no cenário global. Yang Wanming é um de seus porta-vozes.

Quando o pequeno Wanming passou a frequentar a escola, o currículo já havia sido completamente remodelado pela Revolução Cultural (1966-1969), que erradicou, violentamente, os últimos resquícios de pensamento “ocidental”. Anos depois, o futuro embaixador ingressou em uma universidade estatal, em uma época na qual o acesso ao ensino superior ainda era um privilégio para pessoas com conexões políticas.

A jornada antes do Brasil

Wanming teve seu primeiro cargo na diplomacia chinesa em 1990, um ano depois da queda do Muro de Berlim. E, de certa forma, o muro ainda não caiu para os chineses. Em uma longa resolução aprovada em 16 de novembro deste ano, o Partido Comunista Chinês (o único partido permitido no país) não abriu mão da ortodoxia marxista: “Nossa fé no marxismo, no grande ideal do comunismo e no ideal comum do socialismo com características chinesas são nossa fonte de força e a âncora da nossa alma política como comunistas chineses”, afirma o texto.

O primeiro posto relevante ocupado por Wanming foi o de adido no Departamento de América Latina do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China. Depois de uma passagem pelo México, ele tomou uma rota pouco usual: entre 2003 e 2004, foi vice-prefeito de Kaili, cidade de aproximadamente 600 mil habitantes na província de Guizhou. Diferentemente do que ocorre no Brasil, a cidade tem mais de um vice-prefeito: atualmente, são seis. Os registros sobre sua incursão na política são inexistentes fora da internet chinesa, controlada pelo Partido Comunista. Nem mesmo o site oficial da cidade traz qualquer menção ao nome dele.

Em 2008, Wanming obteve seu doutorado em Direito pela Academia Chinesa de Ciências Sociais, em Pequim. A instituição foi fundada pelo líder comunista Deng Xiaoping. O foco do estudo foram as relações entre a China e a América Latina entre 1990 e 2006. O Brasil, ao lado do México, figura como um dos países analisados com mais atenção na tese de doutorado. Wanming foi orientado pelo professor Xu Shicheng, que, além de ter se formado pela Universidade de Pequim, também passou pela Universidade Nacional de Havana, em Cuba. Onze anos antes, Wanming completara um mestrado em Economia pela Universidade de Jilin, também na China. O tópico era "As bases legais do sistema empresarial moderno".

Entre 2007 e 2012, Wanming foi o diretor do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China para a América Latina. Então, recebeu seu primeiro convite para comandar uma embaixada. E sua estreia no cargo seria no Chile. Lá, ele ficou dois anos, e se empenhou pela expansão dos Institutos Confúcio, utilizados para expandir a influência cultural chinesa mundo afora. O número de alunos chilenos quadruplicou entre 2009 e 2012. Wanming também negociou um complemento ao tratado de livre comércio estabelecido entre os dois países ainda em 2006. A China buscava estreitar os laços com o Chile que, dentre outros atrativos, possui uma reserva mineral importante e, dos países sul-americanos, tem uma vantagem logística: sua ampla costa no Oceano Pacífico, que facilita o transporte marítimo com a China. Não por acaso, os chilenos foram o primeiro país da região a ter um tratado de livre comércio com os chineses.

Wanming assumiu o comando da embaixada na Argentina em 2014. Durante seu período no cargo, atuou para aumentar as oportunidades de negócio para empresas chinesas (quase sempre, sob a influência direta ou indireta do governo) no país. O consenso é de que, nos dois países, Wanming fortaleceu as trocas econômicas bilaterais e não entrou em controvérsias nas redes sociais. Mas houve momentos de tensão. Ele costurou um acordo de cooperação na área de ciência e tecnologia que, dentre outras coisas, abriu caminho para que os chineses construíssem uma grande base de lançamento de satélites na Patagônia. Problema: a presença de argentinos era vedada no espaço da construção. A situação, que só foi percebida pelo governo argentino quando não havia como voltar atrás, causou incômodo. Graças ao contrato minuciosamente redigido pelo lado chinês, os argentinos não podiam rever o acordo sem que também colocassem em risco outras parcerias com os chineses e, assim, a própria estabilidade da economia local.

Mesmo assim, no fim ele chegou a ganhar do governo argentino a Ordem do Libertador Geral San Martin, recebida das mãos do então chanceler Jorge Faurie. É a condecoração mais alta concedida pelo governo da Argentina a estrangeiros. O liberal Mauricio Macri, um adversário da esquerda argentina, era o presidente da ocasião.

O Twitter como arma diplomática

Wanming tem um português bom o suficiente para uma comunicação eficaz, mas tem traços óbvios de espanhol e um sotaque chinês forte. Quando conversa, inclui vários “nes” nos fins de frase - que, por acaso, tem um significado semelhante ao do “né” da língua portuguesa. Nas vezes em que deu entrevistas à imprensa, ele deu respostas-padrão, sem fugir do tom diplomático. Quem convive com ele afirma que o embaixador segue a cartilha dos altos oficiais do regime chinês: lealdade total à linha definida pelo Partido Comunista.

É no Twitter que o embaixador se expressa mais claramente. Mas isso não quer dizer que suas opiniões sejam frutos de suas espontaneidade. Como regra, um diplomata nunca fala por si mesmo. Um diplomata chinês, menos ainda. A postura agressiva de Wanming na internet é parte da estratégia chinesa. Ele não está sozinho.

Nos últimos anos, a diplomacia chinesa tem adotado uma postura mais incisiva. É a era “Wolf Warrior” (Lobo Guerreiro). O epíteto é  baseado em um filme que retrata uma China forte e agressiva diante de inimigos ocidentais. “A diplomacia mudou desde a era Deng Xiaoping (que governou entre 1978 e 1992), quando se proclamava uma ascensão pacífica da China. Xi Jinping (atual líder) tem mais a postura de um imperador — ele busca a afirmação da soberania absoluta da China nas suas relações externas e é mais cioso dos interesses nacionais da China no seu entorno imediato”, afirma o embaixador Paulo Roberto de Almeida, que também é professor de Relações Internacionais.

A mudança de postura é mensurável. De acordo com o pesquisador Peter Martin, autor de um livro recém-lançado sobre a evolução da diplomacia chinesa, entre 2012 e 2017, o país quase dobrou seus gastos com relações exteriores. Além disso, em 2019, a China ultrapassou os Estados Unidos e se tornou a nação com mais representações ao redor do globo: 276 embaixadas e consulados.

Paulo Roberto de Almeida enfatiza, entretanto, que o Brasil não é visto como uma ameaça direta pelos chineses e que, no que diz respeito à relação com o Brasil, a estratégia do gigante asiático continua a mesma. “São relações econômico-comerciais, um pouco financeiras e de investimento, além da cooperação no terreno da construção e lançamento de satélites no campo científico e meteorológico, que já tem 30 anos”, afirma ele.

Neste aspecto, Wanming é um diplomata convencional, interessado em expandir negócios e em aumentar a área de influência de seus país. Por outro lado, ele não tem hesitado em subir o tom quando enxerga algum tipo de ameaça à reputação de seu país.

Os líderes comunistas têm notado que, apesar do seu poder econômico e militar, a China ainda carece de relevância cultural no debate do Ocidente. Uma das formas de amenizar o problema e de expandir o “soft power” chinês é a criação de unidades do Instituto Confúcio mundo afora, inclusive no Brasil. Sob o pretexto de ensinar a língua e a cultura chinesas em instituições de ensino, essas instituições servem como catalisadoras da influência chinesa no país.

Outra ferramenta, essa mais recente, é o uso do Twitter (que, ironicamente, é banido na China) por diplomatas do país. Principal porta-voz das Relações Exteriores da China desde agosto de 2019, Lijian Zhao subiu na carreira depois de chamar a atenção pelo seu uso frequente (e por vezes agressivo) do Twitter quando era embaixador no Paquistão.

E, depois de promovido, ele continuou na ofensiva. Em novembro de 2019, Zhao causou furor ao afirmar erroneamente que, em algumas áreas de Washington, os brancos não podem entrar. "Você é uma desgraça racista. E incrivelmente ignorante também. Em tempos normais, você seria declarado persona non grata", respondeu a embaixadora americana Susan Rice - também na rede social.

Um ano depois, Zhao provocou um incidente ainda mais grave quando tuitou uma imagem alterada digitalmente para atacar o governo da Austrália. A fotografia mostrava um soldado australiano, com um sorriso maligno no rosto, degolando uma criança afegã. Ao fundo, a bandeira da Austrália. As reações (não só do governo australiano) também foram intensas. Mas, do ponto de vista da comunicação com o público, a tática chinesa funcionou: a mensagem já havia sido difundida.

Entre março e outubro de 2020, o número de seguidores das contas mantidas pela diplomacia chinesa quase dobrou. Qualquer dúvida sobre o objetivo dessa expansão pode ser eliminada com uma constatação simples: esses diplomatas não escrevem em chinês. Eles não estão prestando contas aos cidadãos de seu país. Em vez disso, os embaixadores escrevem em inglês ou na língua local do país em que servem.

No ano passado, contas ligadas ao governo chinês atacaram os Estados Unidos utilizando os protestos contra o racismo como pretexto. Ao repercutir a aparente injustiça da sociedade americana, os chineses buscam enfraquecer a legitimidade dos Estados Unidos para contestar problemas muito mais sérios dos chineses, como a perseguição à minoria étnica uigur.

Em um estudo sobre a estratégia digital da diplomacia chinesa, o Brookings Institution, think tank centenário com sede em Washington, notou no ano passado que, repentinamente, mais de 170 autoridades diplomáticas da China passaram a utilizar o Twitter, numa tentativa de aumentar a influência chinesa. “Os diplomatas da China têm demonstrado uma compreensão de que o engajamento no Twitter é motivado pela provocação, não pela diplomacia”, afirmam os autores do levantamento.

A estratégia não é secreta. Em 2019, o próprio Zhao celebrou: “É uma tendência inevitável que os embaixadores chineses estejam no Twitter. Eles vão contar a vocês a China real, e fazer a voz da China ser ouvida”. A pandemia de Covid-19, originada na China, provocou uma reação ainda intensa da diplomacia chinesa para reverter os danos à imagem do país. Uma das estratégias foi atacar com informações inverídicas. O cônsul chinês em Calcutá, na Índia, tuitou uma informação falsa de que o Covid-19 teve origem nos Estados Unidos e chegou à China por meio de lagostas importadas do estado americano do Maine. O próprio Zhao havia feito algo semelhante ao acusar os Estados Unidos de terem originado a pandemia.

A expansão da presença da diplomacia chinesa no Twitter foi rápida e constante. Em agosto de 2019, a embaixada na França ganhou seu perfil. Em setembro de 2019, o embaixador da Áustria e a embaixada na Jordânia. Em outubro, Irã, Cuba e Hungria. Em novembro, Holanda,Reino Unido. Em dezembro, Egito, e Alemanha. Em janeiro de 2020, Iraque. Em fevereiro, Líbano, Rússia e Irlanda. Em março,  Gana. Em abril, República do Congo. Em julho, Grécia.

Curiosamente, Yang Wanming é uma exceção: ele se cadastrou na plataforma muito tempo antes, em 2015. Na época, ele era embaixador na Argentina e usava a página para postar imagens inócuas ou comunicados protocolares. Só no ano passado, já no Brasil, é que ele começou a tratar de política de uma forma mais constante.

A vinda ao Brasil

Em março de 2019, Wanming foi ao Palácio do Planalto para apresentar suas credenciais ao presidente Jair Bolsonaro, como determina o protocolo diplomático. Na ocasião, Bolsonaro (havia apenas dois meses no cargo) parecia estar otimista sobre a relação com a China.  “Vai melhorar com toda a certeza. Nós queremos nos aproximar com o mundo todo, ampliar nossos negócios e abrir nossas fronteiras”, disse o presidente.

Assim que assumiu o cargo, Wanming também articulou uma viagem de deputados do PSL à China, onde eles visitaram autoridades locais e tiveram contato com novas tecnologias. A ideia era construir pontes com o partido que, naquele momento, era o mais poderoso da República — com a segunda maior bancada na Câmara e a Presidência da República. No grupo estavam parlamentares bolsonaristas incondicionais, como Carla Zambelli (SP) e Daniel Silveira (RJ).

Meses depois, Wanming também esteve com o próprio Jair Bolsonaro na visita que o presidente fez à China em outubro de 2019, em uma comitiva que incluía os deputados Marcos Feliciano e Helio Negão. Parecia que as relações do embaixador com o novo governo iriam engrenar.

Em seus primeiros meses na capital federal, aliás, Wanming também se encontrou com Eduardo Bolsonaro, então presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa. Antes disso, havia sido recebido por Filipe G. Martins, na época assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais — e um crítico do regime chinês. A lista de autoridades do Executivo que já se reuniram com o embaixador, a propósito, é longa: inclui os ministros Tarcísio de Freitas (Infraestrutura), Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), Fernando Queiroga (Saúde), Paulo Guedes (Economia), Augusto Heleno (GSI), Ernesto Araújo (então no comando do Itamaraty) e o falecido Gustavo Bebbiano (Secretaria-Geral da Presidência).

Na maior parte dos casos, o tema dos encontros era a possibilidade de parcerias comerciais ou no campo da tecnologia. Hoje, entretanto, a figura do Executivo mais próxima do embaixador talvez seja a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que já se encontrou diversas vezes com o diplomata chinês. Faz sentido: aproximadamente um terço das exportações do agronegócio brasileiro têm a China como destino.

Wanming também tem um bom relacionamento com alguns governadores, como Ratinho Junior (PR), Helder Barbalho (PA), Ibaneis Rocha (DF) e João Doria (SP). Com Doria, a aproximação foi mais intensa em 2020, quando o Instituto Butantan passou a fabricar a vacina Coronavac em parceria com a companhia chinesa Sinovac.

Quem esteve com Wanming em uma dessas conversas não notou nenhum traço anormal de agressividade. Era mais provável que o interlocutor sentisse tédio do que raiva. Acima de tudo, o embaixador parecia mais interessado em abrir as portas para investimentos chineses no Brasil do que em opinar sobre política ou ideologia. Mas o tempo provaria que o relacionamento não era tão sólido assim. Durante a pandemia, a relação dele com o governo federal se desgastou.

A primeira briga de repercussão que Wanming arranjou no Twitter envolveu o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República. Foi em março do ano passado. Uma publicação Eduardo comparava a pandemia ao acidente de Chernobyl, e afirmava que os chineses estavam agindo como os soviéticos após o acidente nuclear: "Mais uma vez a ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas".

O comentário acendeu uma luz vermelha na representação chinesa em Brasília, que viu a publicação como um ataque à honra dos chineses. O português truncado de Wanming deu um certo tom cômico à resposta: “As suas palavras são um insulto maléfico contra a China e o povo chinês”, disse ele, pedindo uma retratação do parlamentar. Em seu perfil, a embaixada afirmou que o filho do presidente contraiu um "vírus mental".

Dali em diante, a postura mais incisiva do diplomata ficaria clara. Em 18 de julho deste ano, ele fez uma provocação que soou particularmente ofensiva aos cristãos: “Quem é Deus?  O Povo é Deus, é o povo que faz a história e determina a história”, escreveu ele.

Wanming Também alfinetou o governo Bolsonaro ao replicar uma publicação do governo brasileiro que se referia a insumos chineses para a vacina meramente como "insumos do exterior". Ele sublinhou este trecho e acrescentou o seguinte comentário: ““Confúcio disse, feito para amigos, fiel à sua palavra”.

O embaixador também classificou Donald Trump — então um aliado importante do governo Bolsonaro — como "o grande humorista desavergonhado do mundo neste século". O ataque foi feito após o presidente americano se proclamar "o pai da vacina".

O embaixador também comemorou a prisão de Roberto Jefferson, aliado (agora, possível ex-aliado) de Jair Bolsonaro: “Lindo dia para todos!!!”, postou. Em pelo menos uma vez, ele mesmo recuou. Acabou desfazendo um retuíte que definia a família Bolsonaro como “o grande veneno desse país".

Outra postagem recente de Wanming foi vista como uma provocação por parte dos internautas: quando a seleção argentina venceu a Copa América contra o Brasil, em território brasileiro, o diplomata usou seu perfil no Twitter para comemorar o triunfo do time de Messi. A publicação irritou internautas brasileiros. Mas a verdade é que, fã de futebol, Wanming tem um apreço especial pela equipe alviceleste desde que morou na Argentina. A celebração até pode ser considerada legítima — embora, é claro, não deixe de ser provocativa.

Outro episódio prejudicou ainda mais a imagem do embaixador chinês. Em maio do ano passado, já depois que as relações com o governo esfriaram, Wanming enviou uma carta à Câmara pedindo que os deputados não parabenizassem Taiwan pela eleição de sua nova líder, já que o território faria parte da China como “um só país”. "Seria muito agradecido se a Câmara dos Deputados, no contexto do seu compromisso com o Princípio de Uma Só China, pudesse tomar as medidas necessárias e preventivas com vistas a conscientizar os deputados da sensibilidade de Taiwan, evitar gestos ou atitudes que possam ser prejudiciais ao Princípio de Uma Só China, como participar da posse referida, mandar mensagens de felicitação às autoridades de Taiwan, ou manter contatos oficiais com estas", pediu a embaixada, de forma nada delicada. O gesto foi recebido como um pedido descabido e uma descortesia.

A imagem de Wanming provavelmente não se beneficiou do fato de ele ter participado recentemente de um evento virtual promovido pelo PCdoB, o Partido Comunista do Brasil, para comemorar os 100 anos do Partido Comunista Chinês. "Aproveito para agradecer as mensagens e felicitações do PCdoB, do PT e outros partidos e organizações políticas do Brasil", disse ele, em mais uma mensagem entediante e burocrática. “Ao longo de 100 anos, o Partido Comunista da China tem conduzido o povo chinês à independência, à emancipação e ao progresso”, assegurou ele em sua participação.

No Instagram, o perfil de Wanming tem apenas duas publicações — ambas produzidas pela equipe da embaixada. Os comentários são, em sua grande maioria, de brasileiros inconformados com a postura do embaixador.

Casa em situação ilegal

Wanming despacha do prédio da embaixada em Brasília, em um prédio fortificado e cercado por muros altos com traços superficialmente orientais. Ele mora a seis quilômetros dali, em uma casa na beira do lago na QI (sigla para “Quadra Interna”) 12 do bairro Lago Sul, com ampla área verde, campo de futebol, piscinas (no plural) e um píer para pequenas embarcações. É a residência oficial do embaixador da China. O acesso se dá por uma rua pacata, sem saída e preenchida por mansões.

Problema: a residência do embaixador ocupa ilegalmente uma faixa de 30 metros à beira do lago que, por lei, deveria ser livre. Na residência oficial do embaixador, a área foi cercada por muros e abriga construções, como um espaço para orações. A área ocupada irregularmente é de cerca de 2.000 metros quadrados.

Há dez anos, uma sentença judicial determinou que as áreas ocupadas irregularmente fossem removidas. Com atraso, e gradativamente, o governo local vem aplicando a norma. Mas a residência do embaixador, considerada um território diplomático chinês, ficou de fora.

No começo de novembro, após contato da Gazeta do Povo, o Ministério Público do Distrito Federal informou que a decisão judicial continua em vigor, mas que o cumprimento da decisão no caso da embaixada depende do Ministério Público Federal. A Procuradoria da República no Distrito Federal, por sua vez, informou que o procurador responsável está com as informações em mãos para tomar uma decisão sobre o caso. O órgão não deu mais detalhes. A reportagem também procurou o governo do Distrito Federal para tratar do assunto, mas não obteve resposta. A embaixada tampouco respondeu os pedidos da reportagem.

Casado com Lu Yanliu e pai de um filho, Wanming passa a maior parte do tempo em casa, ao lado da esposa, quando não está em compromissos oficiais. Antes da pandemia, Lu era presença frequente em eventos sociais do círculo diplomático de Brasília. Ela também participava de projetos beneficentes, como a construção de espaços infantis em hospitais do Distrito Federal — financiados com recursos do governo chinês. Em alguns desses eventos, ela cruzou com a primeira-dama Michelle Bolsonaro. A interação foi cordial, mas superficial.

Quando pode, o embaixador da China no Brasil pratica um de seus hobbies favoritos: a fotografia. O próprio jardim de sua casa, decorado com duas esculturas representando veados, por vezes serve de estúdio ao ar livre. O local é frequentado por capivaras, garças e tartarugas — parte do pequeno ecossistema que sobrevive graças ao Lago Paranoá. É um hobby caro. Dentre as câmeras de Yang Wanming, está uma Canon 5D Mark III, com uma lente de 16-35 mm. Pacotes semelhantes não saem por menos de 25 mil reais. Quando o tempo permite, o recluso diplomata também sai pelas áreas abertas do Lago Sul, bairro nobre de Brasília onde vive, para caminhar e registrar cenas cotidianas - de preferência, da natureza.

Quem cruza com ele pelas ruas de Brasília custa a acreditar que aquele senhor de 57 anos, aparentemente inofensivo, não pensa duas vezes antes de provocar os poderes da República no Twitter. Sempre a serviço da cruel ditadura comunista chinesa.

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