No Brasil, o autor italiano Antonio Gramsci (1891-1937) parece ser mais citado por seus detratores do que por seus adeptos. Mas o que de fato ele pensava e o que ele tem a ver com a política brasileira contemporânea?
Formado em letras na Universidade de Turim, Gramsci começou, ainda jovem, a colaborar ativamente com publicações de esquerda. Ele militou no Partido Socialista Italiano e, depois, no Partido Comunista Italiano, que ajudou a fundar. Gramsci se entusiasmou com a Revolução Russa de 1917, embora tenha feito críticas a Stalin. Entre 1922 e 1923, ele viveu em Moscou como um delegado da Internacional Comunista e chegou até mesmo a se casar com uma musicista russa, também comunista.
Os escritos de Gramsci chamam atenção pelo tamanho. Os Cadernos do Cárcere, sua principal obra, soma, no formato original, um total de 33 volumes. A tradução brasileira tem cerca de 3.000 páginas. Ainda mais surpreendente é o fato de que toda essa obra foi escrita na prisão. Sob o regime fascista, Gramsci seria preso em 1926 e só deixaria a cadeia seis dias antes de sua morte, em 1937.
A mensagem principal dos Cadernos do Cárcere talvez seja a necessidade de uma revisão nos métodos empregados para alcançar o socialismo. Em vez da revolução armada, Gramsci prega uma gradual revolução cultural. Em vez da liderança do operário, a do intelectual. Em vez de um líder máximo, o partido político. Na construção de uma sociedade comunista, a economia deixa de ser protagonista e divide o espaço com a educação.
Para entender Gramsci
Para entender plenamente a ideia mais influente de Gramsci, é preciso primeiro entender Maquiavel. O pensador italiano, de onde surgiu o epíteto “maquiavélico”, defendia que o príncipe (ou o governante) deveria priorizar a aquisição e a manutenção do poder, mesmo que tivesse de lançar mão de ferramentas moralmente condenáveis. Gramsci retomou esta ideia, mas colocou outra entidade no lugar: o partido político.
“O Príncipe moderno, o príncipe-mito, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto. Ele pode somente ser um organismo, um elemento complexo da sociedade em que uma vontade coletiva, que já foi reconhecida e, em certa medida, afirmada pela ação, começa a tomar forma concreta. A história já forneceu esse organismo, e ele é o partido político”, escreveu Gramsci nos Cadernos do Cárcere.
A indiferença moral de Maquiavel ecoa na obra de Antonio Gramsci. “O Príncipe moderno, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa precisamente que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio Príncipe moderno e serve para acentuar o seu poder ou contrastá-lo”.
Ou seja: o partido é a medida de moralidade. O que avança a causa do partido (a causa comunista) é bom; o que vai na direção oposta é mau.
Em outro trecho, Gramsci apregoa que o Príncipe moderno deve ocupar o espaço do pensamento religioso e influenciar todas as áreas da vida humana. “Na consciência dos homens, o Príncipe toma o lugar da divindade ou do imperativo categórico, e se torna a base de um laicismo moderno e para uma laicização completa de todos os aspectos da vida e de todos os relacionamentos costumeiros”.
O papel do intelectual
“Gramsci foi, dentre os pensadores vinculados ao marxismo, quem intuiu de maneira mais clara a importância do papel da ação do intelectual e da introjeção de ideias patrocinadas por uma casta intelectual dentro da sociedade”, diz o professor Dennys Xavier, do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. “É uma estratégia bem pensada e que historicamente se mostrou muito mais eficaz do que aquela ancorada numa visão estritamente econômica”, afirma ele.
Em seus escritos, Gramsci desenvolve a ideia do “pensador coletivo” - um conjunto de “intelectuais” a serviço de uma causa. A ideia era a de que, por meio da educação e da cultura, gradualmente, os socialistas deveriam arregimentar as mentes que fariam a transição para um regime sem classes. Foi para se contrapor a essa ideia que o filósofo Olavo de Carvalho lançou, em 1994, o livro O Imbecil Coletivo, no qual refuta intelectuais proeminentes na esquerda brasileira à época. A obra tornou Olavo conhecido em todo o país.
Olavo também é o maior proponente de uma tese influente na direita brasileira: a de que o método de Gramsci foi aplicado pelo PT por pelo menos duas décadas até sua chegada ao poder. Entretanto, é difícil medir quanto do sucesso do PT foi fruto da adoção consciente de conceitos de Gramsci e quanto foi consequência natural da ascensão das ideias de esquerda no ambiente acadêmico e cultural, iniciada ainda sob o regime militar. “Eu não vejo essa influência do pensamento de Gramsci no PT. Há várias correntes ali dentro, inclusive stalinistas”, diz a professora Angela Neves, do programa de pós-graduação em Política Social da Universidade de Brasília.
O professor Dennys Xavier diz que o predomínio do PT teve múltiplas causas: “Atribuir isso a uma tática gramscista é reduzir o problema a um espectro único. Há outras explicações acessórias que vão dar um quadro geral desse fenômeno”. Mas ele complementa: “Consciente ou inconscientemente, a estratégia desenhada por Gramsci continua sendo aplicada com enorme sucesso. Basta ver como a mídia se dobra a esse discurso determinado por uma meia dúzia de intelectuais incensados que se tornam voz de autoridade independentemente dos fatos”.
Por não defender uma insurreição armada, mas uma tomada de poder gradual e, em certa medida, pacífica, Gramsci por vezes é apresentado como um reformista, como se fosse um moderado social-democrata. Mas essa visão não corresponde à verdade. O pensador italiano defendia meios diferentes para atingir um fim semelhante ao dos comunistas soviéticos.
“Gramsci não era reformista. Era um pensador marxista revolucionário. Mas, para ele, o caminho para chegar a um socialismo era pela via da cultura, no terreno da sociedade civil e nos processos de tomada de decisão”, afirma a professora Angela Neves.
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