A reação à política identitária já custou a eleição do governo do estado da Virgínia para os Democratas nos Estados Unidos. Pais deram grande importância a afastar a “teoria crítica da raça” das salas de aula, que somente o candidato Republicano estava disposto a criticar. Mas a resistência popular a essas ideias radicais surgidas na academia não parece ter abalado os defensores da ideologia dentro das universidades e até nas publicações científicas. Com destaque em sua seção de notícias, a revista científica Nature anunciou com entusiasmo um “plano gigante para rastrear a diversidade nos periódicos de pesquisa” que envolve implementar uma sugestão ou exigência de que os cientistas digam qual é a sua raça e gênero se quiserem publicar artigos.
Mais de 50 editoras com 15 mil revistas já aderiram ao plano, discutido por um ano e meio, cuja implementação é prevista para o próximo ano. “As editoras dizem que essa informação a ser colhida e armazenada com segurança ajudará a analisar quem está representado em periódicos”, dizem os autores do texto da Nature, Holly Else e Jeffrey Perkel.
Para quem pensa que o plano é inofensivo e apenas reflete a nobre missão de ter pessoas de grupos historicamente discriminados livres para publicar artigos científicos, o vocabulário levanta suspeitas. “O esforço vem em meio a um incentivo por um maior reconhecimento do racismo e do racismo estrutural na ciência e nas publicações”, afirmam. “Racismo estrutural” e “representatividade” não são termos científicos, mas jargão ideológico identitário cujo significado depende em muito de pressupostos políticos. Por exemplo, o pressuposto de que a igualdade de resultados entre grupos de pessoas é uma meta nobre, ou que sua ausência indica necessariamente que a injustiça é a causa dos padrões observados, em vez de outros fatores como escolhas pessoais e preferências.
A expectativa de que homens e mulheres tenham tendências idênticas a se interessar por diferentes áreas do conhecimento é ilusória e contraria pesquisas sobre diferenças de personalidade e preferências entre os sexos que afetam até mesmo as escolhas de carreira.
Novo lysenkoísmo
Para observadores conservadores e liberais, o texto reflete um padrão observável de infiltração ideológica em revistas científicas de prestígio como Nature e Science, que começaram a publicar conteúdo opinativo progressista na seção de notícia e comentário como se fosse uma questão transparente de conhecimento com a qual todos têm de concordar.
Durante o regime de Stalin, Trofim Lysenko (1898-1976), um proponente de ideias heterodoxas em genética e evolução, ajudou a causar grande parte das mortes por fome da União Soviética ao rejeitar Mendel e Darwin. Seus críticos cientistas foram perseguidos e aprisionados pelo governo comunista, como foi o caso do agrônomo Nikolai Vavilov (1887-1943), que morreu na prisão. Seria um exagero comparar a situação atual ao lysenkoísmo, mas ele serve como referência para a ficha suja da atuação das ideias de esquerda no debate científico.
Pode estar emergindo um novo lysenkoísmo, e a obsessão de editores de revistas científicas com “diversidade, inclusão e equidade” pode ser um sinal disso. Há outros sinais:
- Rejeição de artigos por critérios ideológicos. Um artigo de três cientistas da Universidade de Nova York em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, foi removido pelos próprios autores (um homem e duas mulheres) de uma revista do grupo Nature em 21 de dezembro de 2020. O artigo propunha que cientistas mulheres se saem melhor quando são orientadas por homens. A conclusão é politicamente incorreta demais para permanecer de pé. Na opinião do psicólogo social Lee Jussim, a remoção foi puramente ideológica: “Isso é censura, pura e simples, não importa o quanto a Nature tente disfarçá-la”. Artigos que desagradam outros dogmas identitários também começaram a cair. Mitos ideológicos, como a de que o debate sobre “raça” em humanos foi encerrado, são publicados como fato.
- Atenção a modas conceituais ideológicas independente de terem lastro científico. Que há dois sexos não é novidade para nenhum biólogo, pois a espécie humana segue o padrão reprodutivo maior conhecido como anisogamia, que evoluiu com apenas dois gametas: ovócito e espermatozoide. Ainda assim, a revista Nature arejou a ideia de que sexo na espécie humana é um “espectro” por causa da variação fenotípica no desenvolvimento de características sexuais secundárias e raridades cromossômicas que também não são novidade na biologia. A influência do “espectro” é da “teoria” “queer”, que vem do pós-modernismo e não é científica, não de novos dados ou novas análises em biologia. É ideologia travestida de inovação conceitual.
- Cooptação institucional. Os adeptos do identitarismo (wokeness em inglês, também conhecido pelo vulgo lacração em português) são uma minoria na população. No voto, como mostrado na Virgínia, suas ideias costumam perder. Mas quando recorrem a ativismo judicial e instituições, podem prosperar. Exemplo: a prestigiosa Royal Society poderia ter escolhido qualquer um de vários livros populares da ciência do sexo para laurear, mas decidiu premiar em 2017 o livro Testosterone Rex de Cordelia Fine, que diminui a influência dos hormônios sexuais no comportamento humano. Fine já havia sido criticada pelo especialista Simon Baron-Cohen por xingar de “neurossexistas” cientistas que ousarem dizer que homens e mulheres são naturalmente diferentes no comportamento. Baron-Cohen investiga o papel da masculinização do cérebro no autismo. Quanto ao ativismo judicial, já é feito no Brasil, com o uso de conceitos não previstos em lei como “racismo estrutural” e a inclusão contraditória de “não binarie” [sic] como opção no campo “sexo” de certidões de nascimento no estado do Rio de Janeiro, sem falar na equiparação de homofobia a “racismo” por canetada do Supremo Tribunal Federal.
Os exemplos são abundantes e, especialmente onde o identitarismo tem mais influência, afetam praticamente a totalidade de instituições e práticas em que autoridades podem tomar decisões à revelia da opinião de eleitores.
Inversão de valores
Uma das principais inversões de valores dos identitários é que não devemos almejar pelo igual tratamento dos indivíduos independentemente de questões irrelevantes como sexo, sexualidade e raça, deixando que eles sigam os próprios interesses sem ligar para os resultados. Os identitários detestam resultados desiguais, que consideram sempre resultantes na maior parte ou na totalidade de injustiças discriminatórias.
Somente do ponto de vista identitário faz sentido que revistas científicas passem a cobrar a identidade racial dos autores dos artigos, em vez de tratá-la como irrelevante para a qualidade dos artigos submetidos. Pela mesma razão de intolerância à desigualdade de resultados que emerge da igualdade de tratamento, há entre músicos clássicos pedidos para dar um fim na seleção anônima de músicos de orquestra, que costumam tocar por trás de cortinas para bancas de seleção.
O princípio do igual tratamento perante normas e leis é basilar para as modernas democracias liberais. O sonho de ter resultados iguais entre grupos dos identitários lembra mais o marxismo, que é sem dúvida uma das grandes influências sobre as suas ideias.
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