A relação entre o Legislativo e o Executivo dominou os holofotes nos primeiros 150 dias de mandato de Jair Bolsonaro. Problemas na articulação e de diálogo entre a Presidência da República e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, marcam essa relação tensa.
As dificuldades de articulação política do governo Bolsonaro podem ser evidenciadas a partir da quantidade de MPs aprovadas pelo governo. Desde 2003, a administração Bolsonaro foi a que menos aprovou MP nos 5 primeiros meses de governo: apenas três, sendo duas editadas pelo governo Temer. Dilma, que também teve problemas de articulação com o Congresso, aprovou respectivamente oito e seis MPs em seus primeiros 5 meses de cada mandato. Já Lula aprovou 11 e 25, respectivamente.
Irritado com o governo, Maia tem defendido acabar com as Medidas Provisórias. As Medidas Provisórias (também conhecidas como MPs) tratam da possibilidade de o presidente da República editar normas que produzem efeitos jurídicos imediatos, com vigência de até 120 dias. Nesse período, elas precisam ser aprovadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado. A aprovação converte a MP em lei ordinária. Em caso de não apreciação pelos parlamentares em até 45 dias a partir de sua publicação, as MPs entram em regime de urgência, “trancando” a pauta da casa legislativa.
Atualmente dez MPs podem perder o prazo de validade nas próximas três semanas caso não sejam votadas no Congresso a tempo. Entre elas, a MP do saneamento básico.
A despeito de as MPs não darem ao presidente poder de legislar sobre todas as matérias (não há, por exemplo, MP que trate de direito penal), elas são uma ferramenta de poder importante do Executivo. Entre o mandato de José Sarney e Michel Temer, foram editadas 1486 medidas provisórias. Os presidentes José Sarney, Itamar Franco, Luiz Inácio Lula da Silva e Michel Temer editaram, em média, mais de uma MP por semana.
Como ressalta o cientista político pela Universidade de Brasília, Murilo Medeiros, embora as MPs na teoria só possam ser editadas em caso de relevância e urgência, na prática o governo acaba descumprindo essa regra. “A quantidade excessiva de MPs impede que o Poder Legislativo desenvolva uma pauta própria, causando desequilíbrios danosos entre os poderes”, diz.
“Esqueceram” de tirar as MPs da Constituição de 1988
A Constituição da República de 1988 deu origem a um sistema de governo por muitos visto como “híbrido”. A Medida Provisória, um instituto comum no parlamentarismo, está presente em um regime presidencialista. Isso ocorreu porque, ao longo da Assembleia Constituinte que redigiu a Carta Magna atual, o texto inicialmente aprovado pela Comissão de Sistematização caminhava para a adoção do parlamentarismo como sistema de governo.
A Medida Provisória foi incluída no texto que viria a ser a Constituição por inspiração dos sistemas que vigoravam na França, Itália, Alemanha e Espanha — todos países parlamentaristas. Mas nesses países a MP é um instrumento raramente utilizado, porque o governo pode até cair se uma Medida Provisória não for aprovada pelo Parlamento. Dessa forma, Medidas Provisórias só são usadas pelo Executivo desses países em caso de urgência.
A adoção do sistema parlamentarista, porém, contrariava os interesses da Presidência da República, à época ocupada por Sarney, e de um grupo de constituintes até então afastados dos debates, chamado "Centro Democrático" — o popular Centrão. Em março de 1988, impulsionada pela base aliada de Sarney e pelo Centrão, a manutenção do regime presidencialista foi aprovada. Posteriormente, em 1993, foi realizado um plebiscito no qual mais de dois terços dos eleitores brasileiros optaram pelo presidencialismo.
A despeito de o parlamentarismo não ter vigorado como sistema de governo, a Medida Provisória não foi retirada do texto. Segundo o Constituinte Pedro Simon, José Sarney, cujo mandato foi bastante tumultuado por várias greves, crise econômica e até calote da dívida, gostou da possibilidade de governar com a possibilidade de usar as medidas provisórias. Dessa forma, sua base aliada na Constituinte atuou para não retirar o instrumento do texto da Carta Magna.
Faz sentido acabar com as MPs?
Entre as críticas que se faz ao instituto da MP está a de que o poder da medida provisória, na prática, faz com que o Presidente usurpe parte do poder do Legislativo. Como afirmou um dos constituintes mais atuantes do processo, Bernardo Cabral, “[as medidas provisórias] deram ao Presidente da República mais poder do que qualquer ditador já teve neste país”.
A opinião é endossada por Medeiros. “Elas são um instrumento normativo esdrúxulo em sistemas presidencialistas e que confere poderes excessivos ao Executivo. O Presidente da República assume o papel de legislador solitário, usurpando a prerrogativa do Congresso de legislar. Isso tende a gerar atritos entre Executivo e Parlamento, sobretudo em governos com coalizão minoritária”, diz.
Sobre a posição do presidente da Câmara, Medeiros afirma que Maia quis mandar um recado. “Diante da desarticulação política do Planalto, o Parlamento quer liderar a agenda de reformas tão necessárias para o país avançar. Restringir a edição de Medidas Provisórias é mais um passo na estratégia de fortalecer o protagonismo do Congresso na definição da pauta legislativa”, afirma.
Já o cientista político Raduan Meira acredita que Maia está fazendo “o que faz desde o início do governo”, isto é, “ocupando o vácuo”. “Há uma famosa frase que diz que não há vácuo de poder na política; sempre alguém mandará. Diante de um Davi Alcolumbre neófito, assim como Bolsonaro, de certa forma Maia é o político mais importante do Brasil hoje, no sentido de que há uma tendência de o poder gravitar em torno de Maia”, diz.
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Mas ele acredita que o Congresso não quer o fim da medida provisória. “Eles têm a expectativa de, no futuro, serem governo. Então vão querer ter a possibilidade de editar MPs para avançar as pautas deles”, afirma.
Meira, contudo, defende que as MPs têm seu espaço. “As MPS não são tão jabuticabas assim. Em todos os sistemas presidencialistas há o reconhecimento de que o Executivo também exerce papel legislador. Como toda ferramenta, as MPs podem ser usadas tanto para o bem quanto para o mal. Não acho que elas sejam tão determinantes assim para o problema de equilíbrio entre o Executivo e o Legislativo, e nem para governabilidade”, diz.
Para ele, o maior problema da relação entre Legislativo e Executivo se dá pelo fato de o Brasil ter muitos partidos fracos. “Se nossa realidade fosse mais semelhante à chilena ou alemã, que têm uns 6 partidos fortes, com clareza ideológica, e havendo identidade partidária entre a sociedade com esses partidos, a questão das MPs seria pouco relevante”, explica. “Nós estamos indo para uma década de fracos presidentes. Dilma foi um desastre em vários aspectos, entre eles ao lidar com o Congresso. Temer era mais capaz, mas após os áudios de Joesley ficou nas mãos do parlamento. Já Bolsonaro também tem se mostrado fraco para lidar com o Legislativo”, afirma. “Se houvesse menos partidos e mais clareza ideológica o fisiologismo diminuiria e seria mais fácil formar alianças e coalizões”, conclui.
Seguindo o Índice de Número Efetivo de Partidos, a legislatura passada no Congresso foi a mais fragmentada de acordo com uma base de dados da Universidade de Dublin, que reúne informações de mais de mil legislaturas em todo o mundo. Essa situação não avançou na atual legislatura.
Atualmente o Brasil possui 35 legendas partidárias registradas. Em 1983 eram apenas três. Tramita no Tribunal Superior Eleitoral o pedido de 73 partidos para obtenção de registro civil.
PEC propõe mudar regras para MPs
Há um acordo nas casas do Congresso para que seja votada nos próximos dias Proposta de Emenda Constitucional do ex-senador José Sarney que busca equilibrar melhor o tempo de que deputados e senadores dispõem para analisar as MPs.
Por essa PEC, a Câmara teria no máximo 90 dias para votar as MPs, restando 30 para o Senado fazer eventuais mudanças. Recentemente, na votação da MP das Companhias Aéreas, que permitiu a operação de empresas com capital 100% estrangeiro, enquanto a Câmara teve 119 dias para analisar a proposta, o Senado teve apenas um único dia para aprová-la.
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