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Imagem de um vídeo divulgado pela agência de propaganda do Estado Islâmico mostra homens que supostamente realizaram uma série de explosões suicidas no domingo de Páscoa no Sri Lanka | Foto: AMAQ/AFP
Radicalismo: islamistas tentam fazer crer que todo muçulmano é um homem bomba potencial| Foto: AMAQ/AFP

É difícil entender como uma cultura tão rica e sofisticada como a do mundo islâmico tenha degringolado tanto a ponto de ser, hoje, identificada com irracionalistas assassinos. Saem Aladim e os tapetes mágicos das Mil e uma noites, saem os mercadores tagarelas que levaram a invenção hindu do zero para o mundo, saem os matemáticos geniais, saem os tradutores e preservadores da filosofia grega, e entra Bin Laden com seus homens-bomba e esfaqueadores aleatórios. A proibição de imagens, antes atrelada aos deslumbrantes arabescos das mesquitas, agora conduz nosso pensamento à decapitação de um professor em Paris. Que terá se passado?

Demagogos apontam a imensa quantidade de muçulmanos no mundo para mostrar que os terroristas são uma minoria ínfima dentro da centenas de milhões de muçulmanos. Isto é um truísmo. Afinal, é impossível existir uma sociedade composta por uma maioria de homens-bomba. Seja no conjunto do mundo inteiro, seja no de uma grande sociedade, a parcela de terroristas sempre será uma minoria ínfima. Por outro lado, o número de terroristas de qualquer motivação é um número pequeno dentro do conjunto da humanidade. Por este motivo, o senso comum olha esse diminuto grupo humano – o dos terroristas – e, quando constata que há dentro dele um grande quinhão de muçulmanos, conclui que há algo de podre no reino de Maomé. E conclui corretamente.

O passo em falso só é dado quando se tomam centenas de milhões de muçulmanos por um todo homogêneo. O leitor já reparou que há muito mais muçulmanos na Índia (170 milhões) do que no Sudão e na França, mas há muito mais problemas com terrorismo islâmico nestes dois países do que na Índia? Sudão e França são países muito diferentes!

A verdade não pode ser tão simples quanto “muçulmanos são propensos ao terrorismo”. E veremos que a verdade é, antes, muito sinistra: o processo de radicalização dos muçulmanos da Europa foi plantado pelo III Reich.

Há islâmicos teocráticos e laicos 

Como a história política do islã é muito complicada, compará-la à do cristianismo ajuda a entender. O cristianismo teve a sua primeira cisão importante ao se dividir entre Igreja Católica Apostólica Romana e Igreja Ortodoxa. Essa cisão política foi também geográfica: cristãos romanos viviam no Ocidente, e cristãos ortodoxos no Oriente. Não despertou, portanto, a necessidade de se criar uma sociedade em que pessoas de fé diferente convivam como iguais perante uma única lei. Este modelo laico que conhecemos hoje só veio depois da Reforma Protestante, que cindiu os súditos dos estados do Ocidente em católicos e protestantes.

Os muçulmanos como que tiveram as duas cisões ao mesmo tempo, e que foram mantidas ao longo de toda a sua história. A sucessão de Maomé foi disputada pelo genro e pelo sogro, cada qual defendendo um modelo de interpretar a lei islâmica, a qual é chamada de xaria. Os sequazes do genro são a minoria xiita, e os do sogro, a maioria sunita. Assim, aderir a uma facção maometana implicava aderir também a um corpo de direito canônico que é uma interpretação da xaria.

O cristianismo ocidental teve, na maior parte da História, uma autoridade central com valor que se pretende universal, o Papa. Depois da Reforma, passam a existir estruturas cristãs como a da Igreja Batista: descentralizadas, em que os pastores são independentes uns dos outros e não têm um bispo a quem obedecer.

No mundo islâmico, não existe nada análogo a um Papa. Existe a figura do Califa, um imperador que administra a lei recebida de Alá via Maomé. Um Pedro com poderes de imperador. Existiu uma porção de califados: Lisboa até integrou um deles, o Califado Omíada. Nesse califado muito tolerante, vivia com honras Maimônides, o mais importante filósofo judeu do mundo medieval. Como existiu uma porção de califados, a interpretação da xaria variou, e existem várias versões da xaria mesmo entre sunitas e xiitas. O último califado foi o Império Otomano, e hoje as monarquias sunitas se consideram emirados, que é o mesmo que principado. No século XX, surgiram as repúblicas teocráticas, sendo as mais importantes o Irã e o Paquistão.

Uma questão política central, então, é a xaria, um direito canônico. Em termos leigos, podemos dizer que a xaria tem direito de família e código penal. Ser muçulmano em geral implica aderir a alguma interpretação da xaria em algum nível. Mas a coisa se complica, porque o mundo muçulmano sofreu influência do Ocidente: monarcas passaram a copiar o parlamentarismo, e repúblicas recém independentes apreciaram o legado dos colonizadores. Por isso, a institucionalidade muçulmana hoje é muito variada. A Tunísia é totalmente laica, não reconhece xaria, e tem 98% da população muçulmana. A Índia é uma democracia, reconhece o direito de família da xaria e aplica-a aos muçulmanos, deixando de fora o código penal. E há as poderosas teocracias sunita e xiita, Arábia Saudita e Irã, que aplicam toda a xaria aos muçulmanos, e têm aqueles códigos penais da pedra lascada.

Tendo em vista os muçulmanos da Tunísia e da Índia, percebe-se que não há uma incompatibilidade essencial do islã com a democracia, nem com o laicismo. E não são instituições decorativas: a Tunísia talvez seja o único país que saiu da Primavera Árabe melhor do que entrou, e na Índia muçulmanos nada radicais brilham em Bollywood.

O islã na Europa antes de Hitler 

A Tunísia tem todo esse laicismo por ter bebido das instituições francesas. O contato dos muçulmanos com o europeu moderno aconteceu também pela via da migração para a Alemanha, que tem uma relação histórica e tensa com a Turquia. Segundo conta o filósofo e germanista Víctor Farías (de cuja importante obra já tratei neste jornal), já em 1785 o Reich prussiano mandou construir, às expensas do Estado, uma mesquita em Berlim. Em 1798, ao morrer um embaixador muçulmano, o Rei da Prússia manda construir um cemitério islâmico. E em 1807, uma comunidade muçulmana estabelecida na Prússia já integrava o exército de Frederico, o Grande, para lutar contra Napoleão.

Por mais estatista que seja o mundo ibérico, não temos notícias de construção estatal de templos de religiões diferentes – quanto mais de mesquita. No nosso mundo, o normal é tentar converter todos à cristandade: quando Portugal decidiu acabar com os judeus, sua solução foi converter todos na marra, não matá-los. Hoje, os sefarditas vivem dissolvidos em nosso sangue e nossa cultura. Todo esse “respeito à diversidade” dos prussianos, segundo explica Victor Farías, era instrumental: “O desprezo atávico por tudo que não seja alemão, isto é, a autossupervalorização que precisa de afirmação permanente, implica que a única possibilidade de convivência de muitos alemães com os estrangeiros é usá-los para seus próprios fins. Hitler disse isso com uma exatidão perversa quando afirmou que, para o homem ariano, mais importante do que a natureza, os animais e outros fatores materiais, era ter à disposição povos inferiores para utilizá-los e conseguir com sua ajuda seus propósitos expansionistas. No entanto, é óbvio que os povos ‘inferiores’ devem ter certas qualidades especiais e compartilhar interesses com o ‘homem ariano’. Esse jogo duplo de ‘conveniência’ é o que explica o caráter das relações alemãs com os muçulmanos fundamentalistas. O interesse comum que os une é certamente o antijudaísmo antigo e o antissemitismo moderno.”

No III Reich, os nazistas agiram a favor da “diversidade”, atropelando um movimento islâmico europeísta que surgia, e substituindo-o por outro. Cito Farías outra vez, do livro Heidegger e sua herança (É, 2017):

“Em 1930, foi fundada a Comunidade Muçulmana na Alemanha. Em 1933, no entanto, foi descoberto em Berlim o cadáver de Mohammed Nafi Tschelebi, um estudante sírio que havia se transformado em figura importante da Comunidade da Alemanha Muçulmana e que procurava ‘despertar na Europa a compreensão para o Islã’ e a ‘camaradagem entre os muçulmanos europeus’ – havendo a possibilidade de que judeus e cristãos também ingressassem nela. É mais do que provável que o assassinato de Tschelebi tenha sido cometido pelos nazistas. Eles já haviam declarado a organização como um ‘refúgio para os judeus do Kurfürstedamm’, e seu caráter cosmopolita lhes parecia intolerável. Começou assim uma dura repressão contra as associações de estudantes muçulmanos e os clubes sociais, que culminou em sua reutilização e completo desaparecimento por volta de 1941. Nesse mesmo ano, o regime nazista fundou o Instituto Central Islâmico de Berlim e o transformou num muito eficaz instrumento de sua política. A maioria dos muçulmanos radicados na Alemanha provinha de países ocupados pelos aliados e por isso era presa fácil para os nazistas. O Instituto Central contou assim com todo o apoio do Ministério das Relações Exteriores, especialmente quando a frente de guerra se agravou no Oriente. Em junho de 1941, os ingleses ingressaram no Iraque e procuraram aprisionar Amin al-Husseini, um antissemita fanático e mufti de Jerusalém. Mas ele fugiu para Teerã e chegou até Berlim, depois de passar pela Itália, e começou a se chamar O Grande Mufti da Palestina. Ele foi recebido por Hitler e entregou a  ele, como solicitado, uma mansão que tinha pertencido a famílias judias.”

O nazismo era “multicultural”, portanto: cada ado no seu quadrado, ninguém se mistura, e os “inferiores” domesticados têm o seu lugarzinho ao sol. O Grande Mufti da Palestina, mesmo, conseguiu impedir a troca de prisioneiros nazistas por crianças judias, que foram todas para a câmara de gás. Une-os a luta contra o mundo judaico-cristão ocidental.

Seria irrazoável supor que a propaganda do III Reich tenha sido inócua, e que tenha acabado. No livro, Farías arrola líderes de extrema-direita europeia convertidos ao islã que são francamente anticristãos – e Dalrymple outro dia contou aqui que um prefeito francês do partido verde quer acabar com a árvore de Natal. Farías menciona também que o Partido Verde na Alemanha foi fundado por antigos SS, mas não nos alonguemos por ora.

Que a França abra as portas para esse tipo de muçulmano enquanto rechaça o cristianismo, é só mais uma cicatriz da ocupação nazista. Esta lhe foi letal ao espírito. Seu racionalismo foi substituído por sequazes do nazista Heidegger e por Foucault, um baba ovo do fundamentalismo islâmico e apoiador da Revolução Iraniana. Nesse país, hoje, Heidegger é como que um filósofo oficial, e os “Heideggerianos” eram um grupo de jovens revolucionários ao qual pertenceu Ahmadinejad.

Islã X islamismo 

Em países que lidam com o problema dos muçulmanos intolerantes, vem se convencionando chamar de islã a religião, e de islamismo a ideologia que foi forjada ou floresceu no século XX. Muçulmano o fiel de Alá, islamista o partidário da ideologia. Essa ideologia é um pastiche do nazifascismo que troca a raça por religião (já que os árabes sempre se miscigenaram), e prega um imperialismo expansionista totalitário. Em vez do Führer de raça pura, o Califa ou o Aiatolá fundamentalista.

Tal como o movimento negro tenta fazer crer que todo negro pensa igual a eles calando a dissidência, os islamistas tentam fazer crer que todo muçulmano é um homem bomba potencial. Muçulmanos ocidentais empenhados em combater o extremismo existem, e o eventual interessado poderá tomar nota dos nomes da Fundação Quilliam, de Londres, e do imã Tawhidi, australiano.

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