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Reações a “O Irlandês”, filme de Martin Scorsese lançado na Netflix, revelam o filistinismo do público e o autoritarismo arrogante dos intelectuais.
Reações a “O Irlandês”, filme de Martin Scorsese lançado na Netflix, revelam o filistinismo do público e o autoritarismo arrogante dos intelectuais.| Foto: Divulgação

Então o aclamadíssimo diretor Martin Scorsese lançou um filme de 3h30 de duração na Netflix, “O Irlandês”. Por um lado, os filisteus, por certo acostumados aos filmes da Marvel, às comédias do Adam Sandler e a “obras de arte” como Coringa, estão reclamando da duração, do ritmo e da trama. Por outro, os intelectuais estão usando o filme para subir mais um degrau na torre de marfim e até para estabelecerem regras para aqueles que ousarem apertar o play.

Mais do que um simples ruído depois de uma bem-sucedida campanha de marketing que até levou Scorsese a se lançar contra os filmes de super-herói, o episódio revela uma mudança no comportamento do consumidor de cinema (de cultura em geral), que parece ter se rendido desavergonhadamente ao filistinismo, e ao mesmo tempo revela um isolamento cada vez maior de intelectuais incapazes de dialogar com a massa que os rejeita.

O filistinismo, palavra muito usada pelo jornalista Paulo Francis, é a filosofia de vida do nosso tempo. Ela não tem lado político e é marcada por um profundo anti-intelectualismo e, consequentemente, pela rejeição a tudo o que cheire a “elevado”. O filisteu odeia a arte e os mais cínicos entre eles (hoje talvez maioria) exaltam tudo o que é feio, propositadamente estúpido e espiritualmente vazio. Estão aí para não me deixar mentir os fãs de Chaves, de Stephen King, de funk e de Romero Britto.

Nem sempre foi assim e como chegamos ao estado atual é uma das grandes questões filosóficas na minha vida. Houve um tempo – e estou falando de vinte anos atrás – em que as pessoas tinham orgulho da arte que consumiam e buscavam nesse consumo algo que ia além da vaidade pura e simples. Era uma busca por redenção e por sentido, com uma pitada de ambição por alcançar certos valores que víamos como nobres, entre eles a imaginação e a inteligência.

Essa imagem começou a se erodir ainda nos anos 1990. O homem que fosse visto saindo do cinema depois de uma exibição de um filme de Godard era recebido com desprezo e virava motivo de deboche e chacota. Pior ainda se ele desandasse a falar sobre o filme, aqui e ali citando expressões em francês. Ser culto, no sentido muitíssimo particular aqui de “se deixar envolver pela cultura, essa coisa intangível, absurdamente viciante e astronomicamente maior do que você” deixou de ser uma ambição para virar uma vergonha.

Ao mesmo tempo, o que se viu, principalmente nas universidades, mas também fora delas, foi a elevação inegavelmente marxista de uma lumpencultura à condição de arte ou, no mínimo, entretenimento socialmente aceito. Este movimento teve início com a legitimação da pobreza como justificativa para a falta de acesso dos “criadores” à chamada alta cultura. Mas, depois da popularização da Internet, essa justificativa se revelou uma falácia.

Aí veio o governo Lula e as máscaras caíram. Pudera. A ascensão de um metalúrgico quase analfabeto ao poder dava base à ideia subjacente ao anti-intelectualismo, segundo a qual não é preciso nenhum tipo de aspiração intelectual, artística ou espiritual para se liderar as massas rumo ao Paraíso da Igualdade. A partir de 2002, o filistinismo, antes tratado como um pecado que se comete na solidão do quarto, um guilty pleasure (ai, expressão em inglês, que absurdo!), passou a ser motivo de orgulho e até afronta.

Não demorou para a elite cultural brasileira dar vazão a todo o filistinismo represado. Orquestras sinfônicas acompanham sertanejos, conferindo aos sofrimentos do matuto um caráter quase tão heroico quanto os canhões na Overture 1812 de Tchaikovski. O que um dia foi brega e cafona virou transgressor e ousado. Os comunicadores populares viraram quase filósofos – o que, mais tarde, transformaria os filósofos em comunicadores populares. Paulo Coelho foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo!

Perdidos, sem ter a menor ideia mesmo do que fazer, de como lidar com a rejeição às ideias, de como reagir ao assistir a um filisteu citando Clarice Lispector de dentro da casa do Big Brother, os intelectuais que não se renderam ao filistinismo acadêmico se encastelaram ou passaram a tratar o público como um ser inferior, não raro apelando para uma retórica marcada pela arrogância autoritária.

É o que se vê no caso do filme de Scorsese. Depois de causar um mal-estar de mentirinha com seus pares por causa da discussão estéril (e filisteia) sobre a validade artística ou não dos filminhos de super-herói, o cineasta mostrou que não entendeu as mudanças pelas quais o mundo do audiovisual passou na última década, pedindo, num tom professoral, que as pessoas não assistam à sua obra-prima na tela minúscula do celular.

Houve ainda quem defendesse que o filme fosse assistido “à moda antiga”, de uma só vez, sem que o espectador cometesse o pecado mortal de interromper a narrativa para ir ao banheiro ou preparar aquela pipoca cheia de manteiga. E, por fim, houve quem dissesse que as hordas ignaras de espectadores não conseguiriam captar toda a sua genialidade se não tivessem essa ou aquela referência obscura, mas de alguma forma essencial.

E assim parecem caminhar o público e os intelectuais, sejam eles criadores ou críticos, cada um por um caminho diferente, sem conseguir estabelecer um diálogo produtivo. O filistinismo continua sendo uma tendência e, aliada ao hedonismo, não parece que vai perder força tão cedo. Diante deste fenômeno, os criadores simplesmente não sabem o que fazer: se insistem em buscar algum tipo de transcendência por meio da arte ou se se rendem ao vil metal e ao populismo estético.

Já os críticos, bom, quem sabe um dia você tenha a sorte de alcançar o patamar deles. Mas antes disso você terá de entender a ironia da última frase.

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