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Ser conservador, hoje, tem mais a ver com sanidade psicológica e social do que com lado político.
Ser conservador, hoje, tem mais a ver com sanidade psicológica e social do que com lado político.| Foto: Bigstock

O dilema político-moral para o século XXI é apenas um: como podemos ter alcançado tal nível de apreço declarado à liberdade e, ao mesmo tempo, clamarmos tanto por restrições cada vez mais imorais às liberdades de crença, expressão, culto e até de locomoção. Como podemos ser cada dia mais tendentes a políticas de restrições a ideias tidas como “perigosas” pelo mainstream progressista, enquanto mostramos ser ― na mesmíssima proporção ― extremamente liberais referentes a ideias factualmente extremistas como a transgeneridade de adolescentes, a liberação irrestrita das drogas e até mesmo a da inclusão de adolescentes ― cada vez mais novos ― na vida sexual tipicamente adulta.

Há uma grande confusão de termos e de pressupostos nesse debate e aqui tentarei assoprar certas realidades por meio de uma reflexão mais ou menos sucinta. A liberdade requer responsabilidade e maturidade e, por isso, deve ser entendida, e não previamente lançada como mantra vazio.

Mas pensemos um pouco sem as nossas sanhas ideológicas: como pode haver liberdade se o conceito de temperança individual foi substituído pelo o de libertinagem social? Se a virtude social, ancorada naquelas moralidades mais básicas para o bom convívio, se tornou sinônimo de atraso? A tradição Ocidental nos ensinou que a liberdade procede da ordem, e não o contrário. Se uma pessoa é irrestritamente livre para se drogar, sua liberdade é falsa, já que o vício que se seguirá indispensavelmente o escravizará e limitará seu horizonte de escolhas conscientes. Nunca antes a liberdade foi usada tantas vezes contra ela própria.

(A esta altura do texto, você já percebeu que esses “liberais” nada têm a ver com o liberalismo de corrente conservadora, advinda da Inglaterra e dos EUA, não é mesmo? Recomendo veementemente o livro “Os Caminhos Para Modernidade. Iluminismos Britânico, Francês e Americano”, da historiadora Gertrude Himmelfarb, para entender tais diferenças em seu âmago. Os liberais esquerdistas que descrevemos acima ― e continuaremos a descrever mais adiante ― são de uma cepa revolucionária de origem sobretudo francesa. Os liberals para o mundo anglófono são, para nós, os progressistas ― ou liberais progressistas. Por isso, usemos dessa separação para identificar as designações que veremos adiante).

A mínima ordem social é condição para a liberdade social

Assim como a mãe não se torna tirana porque limita o acesso de seus filhos adolescentes à Internet, a maturidade social ― por meio das virtudes individuais ― naturalmente deve limitar a libertinagem social dos homens diante da sociedade. Se necessário for, até com a coerção da lei. Somente com um mínimo espaço de coesão e moralidade a liberdade pode ser realmente exercida. Não há livre escolha no caos, não existe liberdade de expressão num parlatório de hospício.

Há, antes, uma verdade inconveniente aos utópicos liberalistas: a liberdade é um conceito ético, isto é, delineador de regras e fundador de moralidades, e só há moral e regras onde há limites. Sim, o que quero afirmar aqui é o seguinte: só há liberdade onde há o mínimo de limite. As artes liberais, por exemplo, eram liberais pois pressuponham o autocontrole e o exercício factual das virtudes por aqueles que as manejavam, sendo, dessa forma, a liberdade o substrato final das atitudes virtuosas e do conhecimento cimentado, e não o terreno onde se assentam as tais artes investigadas.

Talvez o liberalismo contemporâneo tenha ficado louco e, em vez de apostar naquela liberdade prudente e sofisticada dos gigantes que o trouxeram à vida, deixou-se, antes, ser atraído pelos cantos da histeria doce, das promessas impossíveis. Sim, uma de suas vias encontrou-se encantada por aquele pseudoliberalismo que, esvaziado das sementes da Filosofia Clássica, do substrato da experiência humana acumulada e, com certeza, também da frondosa polpa virtuosa da herança religiosa de nossos ancestrais, acabou se apegando por carência a uma terminologia oca: “liberal”.

Prostituindo toda uma herança de virtudes racionais e de políticas de liberdade, o “liberalismo” progressista se tornou, então, a via “inteligentinha” para ampliar os seus anseios mais baixos e impedir que a liberdade seja o que de fato ela é, ou seja, um princípio régio de almas, de onde saem as mais profundas reflexões sobre o caráter humano e a sociedade civil. O liberal raiz, afirma Paul Hazard em “A crise da consciência europeia: 1680-1715”, “afasta o que lhe parece falso, mas guarda o que lhe parece verdadeiro, muito longe de ser um cético, sustenta-se pela força eficaz da razão, que funde a verdade e a justiça”. Sim, o liberal clássico funda sua liberdade no verdadeiro, na herança civilizacional, une a verdade racional à justiça jurisprudencial.

O liberalismo virtuoso, que era a âncora do bom senso nos séculos XVI ao XVII, tornou-se, na contemporaneidade, uma desculpinha para as ideologias totalitárias e centralizadoras. O liberalismo clássico, irrigado pelo conceito de liberdade escolástica, que ensinava o autocontrole e a ética como esteio para o crescimento individual, tornou-se meio para infantilizar atos individuais num romantismo revolucionário brega, corrente em quase todas as universidades contemporâneas brasileiras. Aquele liberalismo que alimentou a cautela diplomática, fundou instituições democráticas, destronou despóticos e tiranetes, nas mãos do progressismo libertário utópico tornou-se mero lubrificante “moral” para a guilhotina francesa da Praça da Concórdia.

Quando o manicômio invade a cidade

O progressismo apostou na libertinagem como meio de autoidentificação e estratégia política, acabou assim caindo ― por querer ou não ― no caos como método. Suas pautas se tornaram desconexas e abertamente contraditórias. Ao mesmo tempo em que defendem um estatismo econômico nostálgico dos comunistas das antigas, apostam numa rede de financiamento multibilionária para suas pautas advindas de metacapitalistas ao redor do mundo.

Enquanto mantêm a retórica humanista como placa de suas igrejas, sustentam o aborto como direito inalienável. Na mesma entoada que gritam contra as oligarquias e monopólios, monopolizam as virtudes sociais e adotam o mainstream como religião. Defendem a todo pulmão a liberdade civil de adolescentes mutilarem suas genitálias em um culto bizarro de trangeneridade, mas clamam pelo o emudecimento social de indivíduos que contrariam suas ideias. Ao mesmo tempo em que pintam ditaduras nos governos à direita, apoiam reais ditaduras à esquerda. Clamam por democracia enquanto montam um sistema de cancelamento de indivíduos e empresas que não se adequam às suas pautas ideológicas. Uma bizarrice digna de hospício.

Antigamente, criávamos um espaço para confinar tais loucos, com o intuito de poder estudá-los, tratá-los e, infelizmente, até subjugá-los ― em alguns lamentáveis e reprováveis casos que a história nos informa. No entanto, afastar os alienados do convívio civil era e é a condição de sanidade e segurança social. Afinal, quando a realidade não baliza as ações dos indivíduos, o mais grotesco e abjeto delito pode parecer corriqueiro e benéfico ao perturbado. Não necessariamente há uma lógica nas ações de um louco e, dessa forma, não existe garantia de que ele seguirá qualquer ordem social ou moral. O progressismo é o próprio hospício político contemporâneo, conta com milhões de alienados engajados e muitos outros pagos e conscientes de suas funções e missões; progressismo esse, aliás, utilizado por poderes econômicos bilionários para praticar sua engenharia social no plano geopolítico.

Hoje, delirantemente, chamamos tais loucos para ensinar em nossas universidades, escrever as matérias que lemos nos jornais e, por vezes, fazemos deles os nossos líderes e gurus. Mas o mais assustador é o seguinte: nós agora deixamos que eles definam o que é verdade ou mentira, que eles concluam o que é realidade e o que é ilusão, que eles pautem leis e julguem ações segundo seus crivos ideológicos. Eles têm o poder de dizer ao meu filho que ele é “filhx”, pautam à minha esposa a extensão da prole devemos ter. Tudo isso atrás de um cavernoso e sempre muito bem colorido “bem social”. O sanatório invadiu a cidade, invadiu as nossas casas e, num golpe de insânia, definiu que os homens comuns são os loucos, e que eles, os loucos, são os verdadeiros sensatos, e por isso mesmo agora devem nos dominar e definir o que é bom e mau para todos nós.

Essa inversão é tão bizarra, esse golpe de alienação é tão absurdo, que os sãos ainda não conseguiram entender bem o que está ocorrendo. Estão como que tentando interpretar uma obra de arte desconexa, um evento tão esdrúxulo que mal podemos interpretá-lo, estão buscando juntar os cacos de sanidade a fim de oferecer um julgamento mais ou menos viável. Na realidade, todos nós ainda estamos desvairadamente dedicando-nos a conectar o discurso progressista à sua práxis. Num esforço de bondade e consideração, muitos ainda se esforçam piedosamente em assimilar como um homem pode ser mulher à revelia de sua genética; caçam nos vãos dos discursos progressistas, nas beiradas das vírgulas das monografias, qualquer coisa que sustente tais ideias para além das lacrações e militâncias de redes sociais. Como dizia John Gray: “A ciência foi lançada contra à ciência e tornou-se um canal para a magia”.

Parece-me que ainda estamos apalpando os entulhos dessa hecatombe moral, recolhendo os pedaços de um edifício que diuturnamente está caindo, tentando compreender por que ele está desmoronando. Consigo até enxergar, no toldo que apresenta tal prédio, o escrito que diz: Realidade.

Pois bem, sejamos diretos: a liberdade para derrubar o prédio no qual se vive não parece ser uma liberdade genuína, ou pelo menos uma liberdade que durará muito além da queda. A liberdade para corromper os valores que foram bons o suficiente para nos trazer até aqui ― bons o suficiente para dar vazão, sustentar e defender as liberdades mais basilares ― não parece ser um ato inteligente. No mínimo é tão inteligente quanto cortar a corda do elevador no qual se está subindo.

Não existe liberdade sem ordem civil

Dizia a historiadora Gertrude Himmelfarb em “Ao sondar o abismo: pensamentos intempestivos sobre cultura e sociedade”: “Como uma sociedade que louva as virtudes da liberdade, da individualidade, da variedade e da tolerância se sustenta quando tais virtudes, levadas ao extremo, ameaçam subverter aquela mesma sociedade liberal e, com isso, as próprias virtudes?”.

Himmelfarb localiza a pira desse problema em John Stuart Mill, na obra “Sobre a liberdade”. Misturando obviedade, sandices e arroubos de genialidade, o pensador conseguiu criar um modelo de liberalismo completamente desvairado. Temos que ser, porém, justos com Stuart Mill, pois, estudando suas obras, conseguimos localizar quase “dois Mills” diferentes. O “novo Mill”, que propõe uma liberdade quase sem nenhuma virtude moral que a sustente, é um Mill que contradiz o “velho Mill”, o qual, por sua vez, em ensaios como “A lógica das Ciências Morais” expõe uma liberdade apoiada em virtudes morais e sociais bem definidas, assume um caráter ponderado que afirma ser a liberdade total uma espécie de objeto solto no espaço, completamente livre, porém extremamente inútil, de rota e funcionalidade indefinidas.

A desvinculação de liberdade e virtude acabou criando um modelo de liberalismo que atenta contra a própria liberdade. Um ser humano livre de esteios morais é um ser humano livre de consciência e civilidade. Um ser humano sem autocontrole é um homem pronto para perder a liberdade. A moralidade sustenta a liberdade, e não o contrário. Assentar sobre o indivíduo falho, fraco e inevitavelmente tendencioso todo e qualquer arrimo de regras morais, sobre a liberdade civil, é como tornar a sociedade incivil e arenosa a qualquer possibilidade de convívio cultural comum.

Foi justamente esse mínimo arrimo cultural, a concepção moral e religiosa em comum, que criou aquilo que até hoje louvamos como “Cultura Ocidental”, ou seja, a tal estrutura supraética que mantém o substancial conceito de “pertencimento” e “vivacidade civilizacional” nos indivíduos perante a sua história. O elo entre os mortos, os vivos e os que ainda hão de nascer. Sim, aquela antiquaria moral e tradicional que possibilitou, entre outras coisas, o conceito de liberdade individual conectada à indispensável filiação moral que nos mantém sendo mais do que meros animais estranhos, desconexos num mundo caótico e bestial.

Em vez de equilíbrio e maturidade, o liberalismo radical apostou numa catequização simplória, adotando a “liberdade” como um mantra caótico e irreconciliável com o a civilidade, onde cada um só participava de uma vida em comum ligado por um contrato de não agressão e/ou de mercado. A proibição legal da participação de alunos do primário de escolas públicas em uma exposição artística pornográfica logo seria considerada despótica, como se a moralidade compartilhada, experimentada e maturada na história ocidental fosse tirânica por recusar uma afronta claramente danosa e criminosa, enquanto que um ato deliberado tosco e abusivo fosse libertário e virtuoso. Não há liberdade quando a única opção é pular no abismo, assim como não há liberdade quando os seus agentes apostam no vício evidente, no óbvio erro.

Roger Scruton corrige magistralmente esse paradoxo em “Conservadorismo: convite à grande tradição” quando afirma que "os liberais viam a ordem política como derivando da liberdade individual; os conservadores viam a liberdade individual como derivando da ordem política. O que torna uma ordem política legítima, na visão conservadora, não são as escolhas livres que a criaram, mas sim as escolhas livres que ela cria. A questão sobre o que vem antes, liberdade ou ordem, dividiria liberais e conservadores durante os duzentos anos seguintes. Mas, no devido tempo, novas ameaças surgiriam para uni-los, sendo uma das mais importantes o crescimento do Estado moderno”.

A grande problemática, afirma Himmelfarb, está na perda do sentido de Verdade, no grande relativismo que vem consequentemente após a moralidade alicerçar-se não mais numa lei universal, mas na lei de cada cabeça. Para Mill, a liberdade individual era a condição mesma de se alcançar a verdade, mas o que aconteceu foi que a liberdade individual, tal como aceita pelos progressistas modernos (herdeiros extremistas desse liberalismo que falamos), tornou-se o meio para negar até a mais evidente obviedade, a verdade mais cortante e factual. Quando o fato passa a ser relativo, o liberalismo que se segue não é mais um liberalismo de ideias, mas um de liberalismo de manicômio.

Diz Himmelfarb em seu livro já citado que “ao tornar a verdade tão sujeita à liberdade ― e conexa tanto à liberdade de erro quanto à verdade ―, dá a entender que, na livre competição de ideias, todas as opiniões, verdadeiras e falsas, são iguais, igualmente suscetíveis de avaliação pela sociedade e igualmente dignas de promulgação. O próprio Mill só pretendia dizer que a sociedade não pode atrever-se a decidir entre a verdade e a falsidade, ou mesmo dar apoio à verdade, uma vez que esta tenha sido determinada. Uma geração posterior, todavia, destituída da autoridade da sociedade e convencida da largueza dada ao erro, tanto pode relativizar e 'problematizar' a verdade como pode manter-se cética quanto à própria ideia de verdade”.

Quando os princípios morais que fundaram a Civilização Ocidental ― aquela que possibilitou a liberdade como ideia central ― são ignorados em nome de uma liberdade desconexa e esfarelante, qualquer ideia maluca ganha ares de possibilidade e verdade. Esta desvinculação de legalidade e moralidade possibilitou, entre outras coisas, o assombroso inquérito das Fake News a que hoje assistimos assustados. Um ato extrajurídico que fede à tirania por todos os seus poros, mas que ainda assim é vendido como o mais puro creme da liberdade. Ora, quando a legalidade não necessariamente está vinculada à moral tradicional da civilização, até mesmo as ilegalidades desse processo passam a ser “moral” sob uma perspectiva completamente tosca e irreal. Perspectiva obviamente criada para justificar anseios ideológicos particulares.

Não é tão espantoso assim, desta forma, encontrarmos “liberais” defendendo prisões de jornalistas, a criação de instituições pseudojurídicas a fim de caçar desafetos políticos, defender o cancelamento sistemático de instituições que não se adequem a cartilhas ideológicas determinadas, buscar a centralização econômica e até clamar a exclusão de certas formas de pensar do debate universitário e social. Quantos jornais do país aceitariam um editorial declarando abertamente serem falsas as premissas e desenvolvimentos pseudocientíficos da trangeneridade contemporânea?

Uma liberdade pensada sem as tradições morais que fundaram o nosso imaginário ético, arrimo esse que sustenta a própria possibilidade de liberdade individual, é como um bebê órfão jogado à própria sorte em alto mar, sem nenhuma instrução, possibilidade de defesa e sustentação. Por essas e outras que encontro, hoje, no conservadorismo, o melhor tempero para a liberdade real.

A melhor maneira de fechar este ensaio é deixar um dos últimos corajosos intelectuais do campo da história dizer abertamente aquilo que a contemporaneidade tenta negar. Disse Christopher Dawson em “Os julgamento das nações" que “a causa que defendemos é muito mais fundamental que qualquer forma de governo ou qualquer credo político. Está vinculada a toda a tradição de cultura ocidental e cristã ― por um lado, à tradição de liberdade social e de cidadania e, por outro, à liberdade espiritual e ao valor infinito da pessoa humana individual.

Quanto mais cedo notarmos que o liberalismo progressista é um ataque à própria sociedade e ao modo de vida que possibilitaram a era mais próspera e livre da história humana, mais cedo recusaremos o ilogicismos e absurdos tolos de suas pautas. Ser conservador, hoje, tem mais a ver com sanidade psicológica e social do que com lado político.

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