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Roger Scruton conta como, depois do fracasso do primeiro casamento, construiu sua família tendo por base a tradição e a luta contra o Estado.
Roger Scruton conta como, depois do fracasso do primeiro casamento, construiu sua família tendo por base a tradição e a luta contra o Estado.| Foto: Pixabay

Deixei a imaturidade de lado nos anos 1960, naquela época que foi descrita com ironia por Philip Larkin:

As relações sexuais começaram

Em mil novecentos e sessenta e três

(um tanto tarde demais para mim)—

Entre o fim da proibição de Chatterley

E o primeiro LP dos Beatles.

Os jovens da minha geração não tinham tempo para a ironia de Larkin e simplesmente consideravam a moralidade sexual tradicional como um punhado de tabus sem sentido. A cultura antiga perdurou entre os adultos, sobretudo aqueles que lutaram na guerra e aprenderam em primeira mão que as sociedades dependem do sacrifício. Mas a fidelidade dos mais velhos à antiga moral só faziam com que nossas experiências parecessem românticas e sofisticadas marcas de uma liberdade de pensamento muito específica.

Na verdade, eu não gostava do espetáculo de permissividade e suspeitava que a antiga moralidade tinha razão. Ainda assim, não pretendia desprezar as liberdades disponíveis e me sentia no direito de reclamar minha parcela dessas emoções. Como muitos da minha geração, portanto, hesitei em me casar e só me casei quando descobri que minha experiência de coabitação deixara de ser um experimento e se tornara um compromisso.

Primeiro casamento

Minha futura esposa fora criada como católica no interior da França. Passamos juntos pelas manifestações de maio de 1968 que nos impressionaram pela destrutividade e estupidez dos jovens quando guiados por nada além do desejo de liberdade. O casamento poria fim a tais infantilidades e conferiria disciplina à vida.

Com essa mentalidade, fiz o curso de casamento obrigatório com o Padre Napier do Oratório Brompton de Londres, me preparando para o ato sacramental – e sacrificial. O Oratório mantém vestígios da missa em latim e, como resultado, ampliou sua congregação de fieis com um exército de reservistas fieis na fé, do qual eu fazia parte. Ao lado da igreja em estilo italianate, onde os padres cantam com roupas lindas e um coro em quatro partes, fica uma construção humilde, a residência dos oratorianos, cuja ordem exige não que eles orem e jejuem em reclusão, e sim que saiam e espalhem o Evangelho, obedecendo a visão de São Felipe Neri, o fundador e principal sacerdote da Contrarreforma. Neri incluiu o termo “propaganda” no idioma e seu sentido prático na vida. Mas o lar de seus seguidores londrinos, criado no último século pelo grande Cardeal Newman, tem uma atmosfera tediosa e cotidiana; é um lugar de passos calmos e cumprimentos ditos em tom baixo. Há gravuras de santos feitas em placas de cobre espalhadas pelos cantos e o cheiro de comida industrial percorre os corredores onde não há nenhum movimento que não o rastejar de um padre velho, uma cortina levada pelo vento ou uma empregada idosa e rígida demais para tirar as teias de aranha.

Na sala reservada para as aulas, o padre Napier recitava os princípios da fé católica. Eu concordava com todos: nenhum deles foi criado com alguma dificuldade intelectual, exceto a premissa maior da existência de Deus. Mas essa também podia ser aceita, pensava, graças à estrutura sobre a qual ela se assentava, cujos ângulos e alicerces eu conhecia de São Tomás de Aquino. Uma religião ser ortodoxia está destinada a ser destruída ao menor sinal de dúvida. Quando as doutrinas são sólidas, contudo, todas entrelaçadas, expressas e sustentadas por rituais, então é impossível ser expulso do edifício da fé e exposto ao questionamento. A estrutura se mantém inabalável, ainda que sem base alguma. Vista assim, a religião é uma obra de arte e seus valores são valores estéticos: beleza, totalidade, simetria e harmonia.

Minha atitude para com a Igreja de cujos rituais eu estava prestes a fazer parte não era a atitude de um fiel. Assim, quando o casamento passou por dificuldades – e não demorou muito, já que nossos anos morando juntos haviam tirado o encanto da nossa paixão sem substituí-la por nada — as correntes da religião provaram ser feitas de papel.

O divórcio e a culpa

O divórcio surgiu na época com todas as cores atraentes de uma solução fácil: uma aposta na liberdade, uma forma de eu me tornar o que era de verdade. Os jovens da minha geração aprenderam a aproveitar as oportunidades e se livrarem da culpa. Tarde demais você percebe que a culpa não é uma doença a ser superada, e sim um castigo a enfrentar. Os anos que se seguiram ao fim do meu primeiro casamento foram cheios de luto, e com razão. Ninguém deveria poder se livrar fácil assim do compromisso de uma vida e ninguém deveria levar na brincadeira os votos mais solenes. Você pode esperar ser perdoado, mas não tem direito de esperar por isso.

Ainda assim, aprendi com a experiência. Minha culpa era uma prova clara da visão da igreja do matrimônio como um laço indissolúvel. Essa doutrina, que na época do meu casamento era para mim apenas uma consequência natural de um sistema teológico abstrato, hoje eu encaro como uma verdade viva sobre a condição humana e uma expressão profunda das vidas arruinadas que eu via por todos os lados, inclusive a minha e a da minha ex-mulher.

Durante vinte anos, meus esforços românticos fracassaram, afogados num mar interno de lamentações. Esse processo, ainda que doloroso, também foi purificador. Ele fez com que eu me livrasse de ilusões, principalmente a de que o amor sexual é uma expressão comum da nossa liberdade. Eu costumava me lembrar daqueles corredores silenciosos do Oratório e da antevisão deles como o caminho penitente para além do casamento. Uma doutrina que não permitia outro caminho que não o da abstinência elevava o casamento a um patamar mais alto, idealizado como uma espécie de redenção. O que o padre Napier nos oferecera no casamento foi exatamente aquilo de que os oratorianos gozavam em seu lar de rituais empoeirados: a transfiguração da vida cotidiana.

Caça à raposa

Quando conheci Sophie, há seis anos [nota do tradutor: este texto foi originalmente publicado em 2001], sabia que era ridículo que um homem de 50 anos pedisse uma menina de 22 em casamento. Mas era como se eu tivesse carregada um retrato dela comigo durante os meus 20 anos de penitência e, de repente, me deparasse com sua materialização. Fomos apresentados durante uma caça à raposa e fomos contidos pelas meticulosas cortesias que envolvem a prática na Inglaterra, prática essa que representa uma das últimas reservas dessas cortesias – o verdadeiro motivo para os novos governantes a odiarem. Se o sentimento romântico surge nesse contexto, ele surge envolvo numa hesitação cortês. Foi assim com a gente, e isso faz parte do que torna o nosso relacionamento tão sério. Apesar de ficar impaciente pelo surgimento de Sophie todos os sábados, eu ficava todo atrapalhado na presença dela, procurando em vão pelas palavras certas. Daí um dia meu cavalo caiu e ela parou para me resgatar, sacrificando, assim, o prazer do dia e provando de se importava comigo. Começamos, então, um cortejo à moda antiga que durou meses.

A formalidade não paralisa o sentimento; ela o reforça. E as emoções que se assemelham a rituais levam ao ritual supremo do casamento. Ao amplificar a distância entre vocês, o cortejo intensifica a atração quando vocês finalmente se aproximam. Na verdade, em nossa tradição — não necessariamente a única ou a melhor, mas a única que temos — o casamento deve ser visto como o auge de um processo que começa tímido e aos poucos cria uma intimidade ao mesmo tempo rejeitada e desejada.

Eu tive sorte: nem todos ganham uma segunda chance, ainda mais uma chance como essa, na qual a empatia permitiu que percebêssemos a barreira da idade e nos esforçássemos para superá-la. Quando nos demos conta do que tinha acontecido, percebemos que era tarde demais para encontrar uma alternativa que não o casamento, ideia que cresceu entre nós como uma planta que de repente floresce.

Claro que o que os outros pensam é importante e nós precisávamos da aceitação deles. O acontecimento reduzido e meio que às escondidas no cartório, conduzido apressadamente como algo ilícito, não nos satisfaria. Ao contrário, isso pareceria uma confissão de que nossas esferas e anos nos dividiam e que estávamos cometendo um erro horrível. Precisávamos tornar os outros cúmplices de nossa empreitada e estar unidos não só em privado, mas também publicamente. Cerimônias são oportunidades de redenção. Elas transformam acontecimentos privados em juramentos públicos e ao mesmo tempo transformam a união de indivíduos num símbolo do desejo comum de perseverar.

Contrato x juramento

A sociedade moderna tende a encarar o casamento como um contrato. Conhecemos essa tendência por causa dos sórdidos divórcios de magnatas e astros do mundo pop, e ela fica clara no “acordo pré-nupcial” segundo o qual uma mulher atraente vende seu corpo a um preço inflacionado e um homem garante que seus bens fiquem protegidos de predadores futuros. Sob tal acordo, o casamento se torna uma preparação para o divórcio, um contrato entre duas pessoas para a exploração mútua de curto prazo.

Surpreendentemente, foi o grande Immanuel Kant quem preparou o mundo para essa visão do casamento, descrevendo-o, numa linguagem exemplarmente melancólica, como um “contrato para o uso recíproco dos órgãos sexuais”. Se bem que Kant não se casou e sua heresia foi mais tarde corrigida por Hegel, que se casou. De acordo com Hegel, o casamento é um “elo substancial”. Ele começa como um contrato – mas é um contrato para a transcendência que abole com a separação entre as partes.

O argumento de Hegel pode ser expresso de uma forma mais simples. O casamento é algo cercado por proibições morais, jurídicas e religiosas justamente porque não é um contrato, e sim um juramento. Contratos têm cláusulas e chegam ao fim quando as cláusulas se esgotam ou quando as partes concordam em renunciar a elas. Eles nos prendem ao mundo temporal e têm a transigência do apetite humano. Juramentos não têm cláusulas e tampouco podem ser legitimamente rompidos. Eles são “para sempre” e, ao fazer um juramento, você se coloca numa posição para além do tempo e das mudanças, num estado de união espiritual que pode ser traduzido em ações no aqui e agora, mas que também está acima e além do mundo das coisas perecíveis. O fato de sermos capazes de prestar juramentos é uma parte do grande milagre da liberdade humana; e, quando deixamos de prestá-los, tornamos nossas vidas mais pobres tirando dela o comprometimento duradouro.

Daí porque um divórcio não encerra um casamento real, que continuará unindo que se distanciaram do compromisso ou que tentaram ignorar seus votos. Durante 20 anos, eu permaneci ciente daquela outra pessoa que já não via mais, mas cujos pensamentos, sentimentos e reprimendas ecoavam em mim. Sophie entendia e aceitava isso porque ela também era filha de pais divorciados que tomaram o cuidado para nunca brigarem na presença dela e que sempre falavam um do outro com respeito. Sophie era um lembrete vivo dos votos deles e da necessidade de dar o peso devido a esses votos, e o casamento permaneceu estranhamente intocável porque era sagrado aos olhos de uma criança.

Cerimônia de dedicação

Graças à grande reserva de permissividade que é a Igreja Anglicana, divorciados hoje podem se casar na igreja – não numa cerimônia de casamento, e sim numa “cerimônia de dedicação” criada para dar uma chancela sagrada a um pedaço de papel. Sempre pressupor, mas ainda assim ansiando pelo perdão, você pode pedir perdão ao Todo-Poderoso por meio dessa cerimônia e, assim, pedir também o apoio da sua comunidade. Nós nos casamos num cartório e marcamos a cerimônia anglicana para o dia seguinte, na igreja que Sophie frequentava. Tínhamos ensaiado nossos votos e, ao os declamarmos, descobrimos que eles exprimiam exatamente o que sentíamos. A promessa de amor, respeito e cuidado até que a morte nos separasse era um reconhecimento exato do nosso estado de união.

Nossos sentimentos adquiriram um ar de solenidade agora que todos aqueles de cuja aprovação dependíamos nos observavam em silêncio. As palavras pareciam ecoar numa parede de solidariedade na igreja atrás de nós e – em vez de anunciarem nossa união – eles eram um grito de liberdade, da liberdade real que surge da aceitação de uma lei moral. Em meu primeiro casamento, eu tinha perdido minha liberdade por querer me apegar a ela. No meu segundo, eu a recuperei assim que abdiquei dela.

Quando nos conhecemos, eu tinha acabado de comprar uma fazenda onde agora vivemos. É uma verdade universal que um homem, de posse de uma casa e 30 acres de terra, precisa de uma esposa. Mas Sophie estava tão surpresa quanto eu pelo que acontecera e entrou na minha vida quase que na ponta dos pés, sem incomodar e parecendo admirar meus costumes de solteiro, ao mesmo tempo os abolindo cuidadosa e discretamente. Sob influência dela, me tornei uma pessoa mais expansiva e relaxada, sem jamais temer perder minhas rotinas e a proteção de minha armadura caseira. Isso resultou numa divisão de papeis bastante incomum: eu cozinho e limpo a casa, ela cuida dos animais. Trabalhamos em nossas mesas durante o dia e cavalgamos quando possível. E sempre que um de nós atravessa a casa para encontrar o outro, há sempre uma emoção, como uma criança que pede colo ao pai.

Às vezes brigamos, mas nunca há vencedor e perdedor, porque somos uma coisa só e não duas, e qualquer ataque ao outro se torna um ataque contra si mesmo. Todos os assuntos sobre os quais pessoas como nós brigam — dinheiro, liberdade, visitas, passatempos, gostos e hábitos — se tornam ocasiões para uma cooperação mais profunda. O que descobrimos graças ao casamento não é a paixão que leva a ele, e sim o amor que se segue a ele, à medida que os votos entrelaçavam as vidas. O romantismo ocidental alimentou a ilusão de que a paixão é o amor de verdade – e para que a paixão precisa do casamento? Mas uma tradição mais antiga e sábia reconhece que o melhor do amor vem depois, e não antes do casamento.

Sam

O nascimento de Sam não mudou as coisas. Mas ele nos apresentou a um problema que é especialmente grave no Reino Unido. O Estado agora nos obriga a mandarmos nossos filhos para a escola ao mesmo tempo em que tenta garantir que não haja nada remotamente parecido com educação lá. O que se passa por educação em muitas escolas britânicas é na verdade um processo de desmoralização no qual as crianças são tiradas dos pais e entregue aos seus semelhantes. Hoje em dia cada vez mais jovens britânicos saem da escola incapazes de ler e de fazer contas mentalmente. Antigas matérias inúteis como latim, grego e a matemática avançada desapareceram, e a gramática inglesa, com suas regras opressoras e complexidades inúteis, foi deixada de lado como algo “elitista”. Quanto ao comportamento, ele está numa decadência tal que lojas londrinas que ficam perto de escolas costumem fechar as portas para as crianças, enquanto os mais velhos buscam refúgio em outro vagão quando as crianças entram no trem.

Em vez de preparar as crianças para a vida adulta, nosso sistema educacional se certifica de que elas continuarão sendo crianças com toda a incompetência infantil autocentrada mas nada de sua inocência e vergonha redentoras. A tentativa estatal de sexualizar as crianças — estimulando os membros da geração mais jovem a conhecer todas as posições mais comuns aos 14 anos e tornando o homossexualismo parte fundamental do currículo — não ajuda em nada. O sexo, aprendem os alunos, é apenas uma extensão da infância — outro reino onde brincar e onde tudo o que leva ao prazer é permitido, ao mesmo tempo em que apenas as coisas sérias e duradouras são perigosas.

A ideologia dos anos 1960 que causou tantos transtornos à minha vida pessoal e cujos efeitos maléficos levei 20 anos para superar servem agora de base para a educação, ensinados desde tenra idade e desprezando completamente a felicidade pessoal e as esperanças de longo prazo dos estudantes. Aquilo de que escapei com dificuldade, e por muito pouco, hoje está sendo imposto como um destino coletivo. Claro que a primeira coisa que fiz com Sam foi garantir que ele não caísse nas amarras das pessoas que queriam fazer isso com ele.

O novo currículo, que tem o objetivo e a consequência de separar as crianças dos pais, transformando-os em adultos impossíveis de serem amados e propriedade exclusiva do Estado, nasce da mente de pessoas na maioria sem filhos. Seria melhor, ao que parece, mandar Sam para uma mina de carvão onde ele se deparasse com o mundo real dos adultos do que passar por todo o processo de desmoralização que nossos governantes exigem. Até mesmo as escolas privadas hoje têm de seguir o Currículo Nacional, que foi cuidadosamente planejado para tirar todo o conhecimento que eu e Sophie valorizamos, substituindo-o por “habilidades” necessárias numa favela.

A única solução que nos ocorre até agora é educarmos Sam sozinhos até onde o tempo, a energia e o conhecimento permitirem e depois o enviarmos para o Lycée Francais, em Londres, supondo que os franceses demonstram um desprezo ligeiramente menor por sua cultura do que a gente. Quanto a como deve ser o currículo de Sam, o senso comum nos põe no velho e trilhado caminho. E começaremos com Grimm, Andersen e Lewis Carroll, já que esse tipo de literatura infantil não apenas estimula a imaginação como também educa o sentido moral.

Ironia

Refletindo sobre o assunto, contudo, fui convidado por um jornal de circulação nacional a descrever o pretendia para Sam — sinal de que muitas pessoas compartilham de nossas preocupações. Disse aos leitores que, se John Stuart Mill era capaz de ler grego aos seis anos, por que não Sam? E talvez as primeiras palavras dele sejam como as do Macaulay de quatro anos, rejeitando as atenções de uma criança de colo e depois de se machucar, dizendo: “Obrigado, senhora, a agonia está contida”. Sam ficaria longe da música pop e da televisão, mas estudaria viola como uma forma salutar de auto-humilhação. Ele seria apresentado aos cavalos e à caça à raposa, de modo a aprender a cuidar dos animais de uma forma nada sentimental. Ele aprenderia as virtudes – coragem, justiça, prudência e temperança – em sua versão cristã, na forma de fé, esperança e caridade. E embora Sam provavelmente não fosse gostar de sua infância, escrevi, ele sairia dela como alguém mais agradável do que os outros, feliz ou infeliz consigo mesmo.

O artigo gerou várias reações violentas de especialistas na criação dos filhos, gurus da educação, feministas e pessoas que creem no progresso — todos produtos de um sistema de educação que identifica a ironia como um crime elitista e que, assim, acabou com a capacidade de compreendê-la. Durante semanas, vivi com medo dos assistentes sociais. Se não conseguíssemos responder às perguntas deles, temíamos, Sam acabaria colocado num abrigo, não teríamos mais acesso a ele e ele se alimentaria de uma dieta normal de música pop, televisão e comida pronta.

Os especialistas que viram nosso plano educacional como algo contra o que se indignar eram a voz da nossa cultura contemporânea – a mesma cultura que moldou o sistema educacional e que pôs o Estado contra a família. Só depois de fazer parte de uma família é que eu finalmente percebi a gravidade e seriedade disso. A família se tornou uma instituição subversiva — quase uma conspiração — em guerra contra o Estado e a cultura por ele patrocinada.

Daí porque o currículo oficial excluiu a família. Mães aparecem aqui e ali nos livros didáticos, mas são estranhamente solteiras. Os pais nunca são mencionados — na verdade eles se tornaram serem que não se menciona, como eram as calças para nossos ancestrais vitorianos. A educação sexual imposta pelo Estado é criada para eliminar a ligação entre o sexo e a família, mostrando a família como apenas uma “opção”. A educação sexual garantirá que a próxima geração não forme famílias, já que destruirá nos alunos tudo o que leva um sexo a idealizar o outro, canalizando o sentimento erótico para o casamento.

Mas Sophie e eu não temos dúvida de que é a família, não o Estado, o que nos satisfaz. Assim decidimos seguir nossos instintos e criar nossos filhos como acreditarmos ser o certo. Somos membros de uma classe cada vez maior de criminosos que declararam guerra à cultura patrocinada pelo Estado e estamos preparados para enfrentá-la.

Homem moldável pelo Estado

Essa cultura oficial se baseia na premissa de que o material humano é infinitamente maleável e pode ser moldado pelo Estado como ele bem entender. Essa é uma das primeiras das doutrinas oficinais das quais você, como pai, aprende a duvidar. Comparamos Sam com os outros meninos e não pudemos deixar de notar como eles são parecidos em um aspecto fundamental: todos querem ser homens. Além disso, todos associam a masculinidade com ação, o uso de ferramentas, com fazer algo a partir do nada e com a energia e as máquinas que a geram. Sam não demonstra muito interesse pelo idioma, negligencia completamente a viola e também o violão e o piano e restringe seus experimentos musicais a mexer no meu teclado eletrônico sempre que me vê trabalhando.

Seu principal interesse é a construção. Ele passa os dias com os homens que estão trabalhando na nossa reforma – entregando toalhas, carregando baldes, fazendo sua própria mistura de cimento e às vezes a usando para criar moldes com galinhas vivas. Apesar de ser improvável que ele venha a copiar Mill ou Macaulay, seu caráter cooperativo, sua determinação em ser útil e sua curiosidade quanto ao mundo do trabalho masculino encantam.

A doutrina oficial atribui tais tendências à cultura: troque os brinquedos, os exemplos e os contextos, dizem os especialistas, e os meninos vão usar fantasias, brincar com bonecas, cuidar dos bichinhos e decorar os lugares. Mas parece que não há muitas provas disso. A ciência, o bom senso e a história apontam para a conclusão de que o sexo é uma constante que influencia as realizações e os desejos. Em vez de trabalharmos contra isso, deveríamos trabalhar com isso, usar seu enorme e inconsciente poder para impulsionar a força civilizadora.

Lucy

O nascimento de nossa bebê Lucy mais uma vez despertou nossa curiosidade quanto a isso e, ainda que nós pretendamos, claro, criá-la de acordo com os mesmos princípios com que criamos Sam, temos certeza de que ela não será vista, daqui a um ano, com um caminhãozinho na mão. O primeiro sorriso de Lucy bastou para nos convencer disso. enquanto Sam ria fácil e com um quê de malícia, e depois esticava o bracinho para pegar o cavalinho de brinquedo que pendia do berço, Lucy abria no máximo um sorrisinho sereno e observador. Amigos e vizinhos compartilham da opinião que meninas se interessam mais por pessoas, palavras e da intimidade do lar, e que ferramentas e máquinas não conseguem despertar seu interesse.

Por que as pessoas resistem ao óbvio quando se trata dos papeis sexuais? A resposta, acredito, está no centro de nossos temores contemporâneos. No mundo descrito por Jane Austen, homens e mulheres têm esferas de ação distintas, os primeiros pública e as últimas privadas, os primeiros envolvendo influência sem intimidade, as últimas uma intimidade que também era uma forma de influência ampla, ainda que publicamente oculta. Vestidos, maneirismos, educação, recreação e idioma reforçam essa distinção, tendo o casamento como a maior escolha da vida na qual tudo culmina. Como não há como voltar ao tempo de Jane Austen, nos refugiamos na crença de que todo aspecto disso reflete um imperativo cultural arbitrário qualquer que não tem nada a ver com a natureza humana permanente. Ao ampliarmos o relativismo cultural até mesmo nessas esferas nas quais não é a cultura, e sim a natureza o que determina o que fazemos, somos levados a aceitar – com medo – uma situação tão nova que novos ancestrais jamais imaginaram uma forma de nos proteger dela: a situação na qual homens e mulheres são intercambiáveis em todos os seus papeis sociais e esferas de ação.

Parece-me, contudo, que fazemos um desserviço aos nossos filhos quando não somos capazes de reconhecer que suas naturezas sexuais os põem, desde o princípio, em caminhos distintos. Deveríamos aprender não a negar o sexo, e sim a idealizá-lo — expondo nossas crianças a uma imagem de um bom homem e uma boa mulher e as ensinando a imitarem o que pode ser amado e admirado. Mesmo sem a velha divisão de papeis, podemos elaborar formas alternativas de exercer um papel que funcionem como algo semelhante – que resgatem o sexo do apetite animal e o transforme na base de um compromisso duradouro.

Idealização

As crianças, em sua inocência, não fazem a menor ideia de tudo isso. Sam com seu caminhãozinho está se autoidealizando; assim como Lucy se autoidealizará quando ler histórias para suas bonecas e cuidar de suas doenças de mentirinha. A idealização é algo natural para os seres humanos, porque é o processo pelo qual eles tentam se tornar seres amáveis e viver a única segurança que a vida lhes dá. Em nossos votos maritais, Sophie e eu tentamos a mesma coisa. Conhecíamos as tendências animais do humano; sabíamos que a vida de casacos era cheia de tentações e frustrações. Mas sabíamos que nada disso era a única realidade. Nós nos tornamos humanos completos quando buscamos ser mais do que humanos; é vivendo à luz de um ideal que convivemos com nossas imperfeições. É por isso que um juramento nunca pode ser reduzido a um contrato: um juramento é uma promessa de aliança para com seu lado ideal iluminado; um contrato é assinado por sua sombra autointeressada.

Você não faz bem a uma criança quando a prepara para uma vida menor — a vida do animal estatizado. A felicidade advém de ideais e é somente se idealizando mutuamente que as pessoas são capazes de se apaixonar de verdade. Essa é a lição que eu e Sophie aprendemos por experiência própria, e não somos únicos nisso, e sim seres humanos normais. No mundo Ocidental surgiu essa estranha superstição de que podemos recomeçar sempre, refazendo a natureza humana, a sociedade e as possibilidades de felicidade, como se o conhecimento e a experiência de nossos ancestrais hoje fossem completamente irrelevantes. Mas que conhecimento usamos quando expomos nossa alternativa? As utopias provaram ser ilusões e o resultado mais claro da nossa “libertação” dos limites tradicionais é o desprezo disseminado pela condição humana.

Parece-me, portanto, que você deveria preparar seus filhos para que eles sejam felizes da forma que você é feliz. Trate-os exatamente como você os trataria se seus ideais fossem geneticamente compartilhados. Um dia eles encontrarão, como encontramos, o cônjuge que os fará se sentirem dignos. Sabendo disso, podemos nos ater à educação de Sam e Lucy, privando-os sistematicamente, todos os dias, das coisas que nossos governantes recomendam.

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