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O filósofo Stephen Hicks, diretor do Center for Ethics and Entrepreneurship da Rockford University
O filósofo Stephen Hicks, diretor do Center for Ethics and Entrepreneurship da Rockford University| Foto: Mindy Joy Nutter Young

Diretor do Center for Ethics and Entrepreneurship da Rockford University, no Canadá, o filósofo Stephen Hicks integra a geração de pesquisadores contemporâneos dedicados ao combate da pandemia que se abateu sobre boa parte das instituições de pesquisa, da elite intelectual e das grandes empresas: o ceticismo pós-moderno. O termo parece um palavrão, mas suas facetas são amplamente conhecidas. Da cultura do cancelamento ao censurador "lugar de fala", da "desconstrução" da ciência dos sexos, da linguagem, da realidade e de tudo o que estiver no caminho à derrocada das instituições, tudo isso são frutos desta nova fé revestida de pseudociências, novos dogmas que o professor Hicks vem se empenhando em esmiuçar.

Lançado no Brasil em 2020, seu livro "Como o pós-modernismo criou uma narrativa de desconstrução do ocidente" (Editora Avis Rara), prefaciado pelo psicólogo conterrâneo Jordan Peterson, o filósofo se debruça sobre a transformação da esquerda, que migrou do chão das fábricas às pautas identitárias, os fundamentos e percalços deste trajeto, bem como as saídas possíveis para a polarização atual. Hicks é um dos palestrantes confirmados na próxima edição do Fórum da Liberdade que acontece em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, nos dias 11 e 12 de abril. Leia, abaixo, sua entrevista à Gazeta do Povo.

Nos ambientes conservadores e liberais no Brasil, há grande preocupação com o que se convencionou chamar de marxismo cultural. De sua parte, os marxistas insistem que o marxismo original não tem a ver com cultura. Afinal, o marxismo cultural seria o pós-modernismo do qual o senhor tanto fala?

O pós-modernismo é contra as principais conquistas e instituições do mundo moderno – respeito pela liberdade individual, ciência, progresso tecnológico, livre mercado e tudo mais. Nisso, os pós-modernistas saem de uma tradição genericamente marxista.

No entanto, devido aos desastres do marxismo na teoria e na prática, os pós-modernistas rejeitam muitos aspectos do marxismo (por exemplo, seu materialismo) enquanto retêm e adaptam outros (por exemplo, sua teoria da exploração e sua atração pela violência e subversão).

O famoso pós-modernista Jacques Derrida, por exemplo, disse que suas ideias pertenciam inteiramente ao “espírito do marxismo”, enquanto o igualmente famoso pós-modernista Michel Foucault foi membro do Partido Comunista Francês na década de 1950, antes de romper com eles e na década de 1960 declarando-se maoísta.

Portanto, há uma forte conexão “familiar” entre os marxistas e os pós-modernistas – mesmo que os pós-modernistas rejeitem o materialismo marxista clássico e o determinismo econômico por uma narrativa mais caótica e multidimensional de conflito cultural e cinismo. Ambos odeiam o espírito otimista do Iluminismo, seu liberalismo a favor dos direitos individuais e seu progressismo a favor ciência e tecnologia.

(Na minha série de podcasts do Open College, dedico todo o episódio 23 às semelhanças e diferenças entre o marxismo e o pós-modernismo.)

Em que medida o pós-modernismo se assemelha ao marxismo e em que pontos eles divergem? É curioso ver, por exemplo, como os frutos do pós-modernismo — a cultura do cancelamento, o "wokismo" — estão cada vez mais associados a elites poderosas. Por que isso acontece?

O efeito da filosofia pós-moderna é esvaziar toda a confiança no poder da razão, na benevolência social e nas instituições civis. Ensina que todos somos criaturas detentoras de forças irracionais lutando socialmente pelo poder por todos os meios possíveis.

Os jovens seduzidos pelo pós-modernismo então dizem a si mesmos: eu poderia muito bem me comprometer com quaisquer valores subjetivos com os quais meus sentimentos estejam fortemente conectados e lutar implacavelmente por eles. Atacar os outros com argumentos ad hominem (o recurso de desqualificação da pessoa e não do discurso), com mentiras, anular os inimigos, ou qualquer tática incivil é vista como legítima nas guerras culturais.

As elites então simplesmente se unem e, a partir de suas posições de poder, aprendem a usar essas estratégias em seu próprio benefício. Esse processo descamba em um ciclo vicioso descendente, à medida que mais indivíduos e grupos desistem de lutar pelo progresso para todos e adotam a mentalidade de guerra da qual só pode sair um vencedor.

O senhor acredita que a velha esquerda pode ser uma aliada na luta contra o cinismo pós-moderno?

Sim e não. A velha esquerda acredita em uma realidade causal cognoscível, em um conjunto de valores morais universais, e que o progresso pode e deve ser feito na luta por esses valores. Assim, o ceticismo, o relativismo e o cinismo pós-modernos desafiam a velha esquerda.

Mas a velha esquerda também enfrenta um enorme conflito interno e uma escolha difícil: suas versões de nivelamento igualitário e excesso de poder concedido ao governo foram verdadeiramente desastrosas. Assim, os indivíduos atraídos pela esquerda devem manter seu compromisso com a evidência e a lógica e (como os verdadeiros liberais fazem) rejeitar ou modificar significativamente esses valores igualitários e de domínio do Estado – ou decidir que estão subjetivamente comprometidos com esses valores, a despeito da realidade (como os pós-modernos rejeitam a evidência e a lógica).

O senhor já disse em suas palestras que não é um pessimista: acredita que a briga ainda vai ficar "muito feia", mas que as coisas vão melhorar. Alguns dizem que, levada ao extremo, as chamadas políticas identitárias podem dividir o Ocidente. As coisas podem "ficar feias" a este ponto? Como vão começar a melhorar?

A briga vai ficar feia no curto prazo porque muitas instituições foram corrompidas e aqueles que as dirigem estão dispostos a fazer coisas desagradáveis a seus rivais e inimigos. O colapso da civilidade é uma questão séria e um indicador de uma ameaça à civilização de forma mais ampla.

No entanto, os seres humanos são seres humanos. A maioria de nós busca um significado genuíno para nossas vidas e está realmente disposta a trabalhar com responsabilidade própria para criar uma boa vida. Também temos uma benevolência natural que, se cultivada adequadamente, nos leva a querer trabalhar com o próximo para construir coisas belas e positivas e criar relacionamentos genuínos. Os jovens, com sua energia ilimitada, querem tudo isso. É preciso muito dano para transformar uma criança saudável em um adulto tão cínico e derrotista.

Além disso, há um grande número de adultos muito inteligentes e verdadeiros hoje que percebem que têm uma luta nas mãos. A malevolência do pós-modernismo e suas ramificações do wokismo e das políticas identitárias foram amplamente capazes de se desenvolver na escuridão, por assim dizer, enquanto o resto do mundo não estava prestando atenção. Agora, há muita gente ciente do perigo e disposta a fazer algo a respeito, em todas as esferas da vida.

Não há garantias, mas estou cautelosamente otimista de que a racionalidade e a benevolência prevalecerão. Ou, pelo menos, de que alcançaremos uma atmosfera cultural mais saudável.

Em suas palestras e livros, você aponta o ceticismo radical como fonte do pós-modernismo, marcado pela crença na subjetividade, e defende um “retorno” ao Iluminismo, o respeito à razão e a busca da verdade objetiva. A fé na razão, por outro lado, não pode levar ao cientificismo, que é outro problema contemporâneo?

Defendo a confiança na razão, baseada na boa epistemologia e na evidência das realizações históricas do pensamento racional. Esses avanços são especialmente notáveis nas ciências e tecnologias, mas também aparecem (embora muitas vezes subestimados) na melhoria de nossa moral individual e social. Na era moderna de respeito pela racionalidade individual e autorresponsabilidade, vimos um aumento dramático correspondente no respeito aos direitos humanos e uma melhoria generalizada na longevidade e nas condições de vida.

“Fé na razão” é um paradoxo – se por fé você quer dizer aceitação sem evidência ou sem avaliação crítica e uma vontade de reavaliar suas suposições. É claro que aqueles que simplesmente substituem a fé no que os cientistas dizem pela fé no que as autoridades religiosas ou políticas dizem não representam uma melhoria. Isso pode ser o que você chama de “cientificismo”.

No entanto, a ciência é precisamente o oposto: trata-se de usar seus próprios sentidos e razão sistematicamente para entender a realidade e para questionar tudo, incluindo as ideias apresentadas por outros cientistas.

Os atuais abusos da ciência estão relacionados principalmente a tentativas paternalistas e autoritárias de impor hipóteses científicas particulares. Mas isso é uma questão de má política e uma traição à ciência. Como Galileu nos ensinou há muito tempo, os cientistas raciocinam conosco; eles não nos ameaçam nem nos coagem.

A crise generalizada de confiança é uma das marcas do mundo pós-pandemia. A frase "acreditar na ciência" nunca soou tão distante da realidade, embora a ciência continue sendo importante. As pessoas comuns não sabem em quais cientistas acreditar, não confiam em instituições ou autoridades – sejam seus presidentes ou a ONU. Quais podem ser as consequências dessa crise? Existe uma maneira de sair disso?

O grande problema é a falta de educação. Vivemos em um mundo complexo e moderno, e a educação deve ser voltada para o desenvolvimento de jovens que possam lidar com essa complexidade cognitiva, emocional e fisicamente. No entanto, sabemos que grande parte do ensino regular foi um fracasso (e em muitos casos um desastre), produzindo jovens adultos incapazes de viver de forma autorresponsável na sociedade moderna.

O atual agravamento do problema de não saber em quais cientistas, políticos, empresários e outros líderes confiar é consequência disso. Todos nós sabemos que muitos políticos mentem, alguns empresários e cientistas escondem ou falsificam a verdade, e assim por diante. No entanto, uma mente bem-educada é capaz de perceber quando uma afirmação não tem suporte, parece inconsistente com outras afirmações ou está sendo empurrada de maneira impositiva e não objetiva. Sabe também como procurar outras fontes e como adquirir mais informações antes de fazer um julgamento.

“Confie, mas verifique” é um conselho bastante tradicional e continua ótimo. Mas isso significa que precisamos fazer um trabalho muito melhor de ensinar aos jovens a realizar os processos de verificação que a complexa sociedade moderna exige.

Como manter uma boa conversa com um amigo ou parente que parte de premissas completamente diferentes das suas? Este ainda é um exercício possível em um mundo polarizado?

Este é sempre um exercício válido para todo mundo, pois é fundamental para os aspectos sociais da vida. No entanto, é preciso haver uma boa vontade inicial e um compromisso com a abertura do pensamento, além de um esforço sério de pensar sobre nossos próprios pontos de vista para que possamos compreendê-los e apresentá-los com clareza. É preciso disposição para ouvir genuinamente a posição do amigo ou parente, para aceitar críticas e até mesmo para ajustar nossos pontos de vista em resposta a boas correções. Também para oferecer críticas amigáveis quando útil.

Claro, quando um amigo não está completamente disposto a fazer qualquer uma dessas coisas, essa pessoa provavelmente será um “ex-amigo”.

A vida é feita de coisas simples e coisas complexas. Precisamos aprender a conversar direito mesmo sobre as coisas mais complexas, carregadas de valores e emoções – família, negócios, política. A ideia de que há coisas que não podem ser ditas é um fracasso e um encolhimento da vida. Viver plenamente significa muita conversa e aprendizado contínuo sobre como fazê-lo melhor.

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