A abertura de novo inquérito no STF contra Allan dos Santos por difamação contra outra jornalista reforça uma tendência de expansão do Inquérito 4.781 (ou “Inquérito das Fake News”) para fora dos seus limites originais.
Aberto sob controvérsia em 2019 com o objetivo anunciado de reprimir “notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças” e crimes contra a honra praticados contra ministros do STF (objeto que, de já tão amplo, rendeu a alcunha de “Inquérito do Fim do Mundo”), o inquérito vem sendo utilizado para atender às demandas de outros órgãos ou indivíduos para além do STF.
1) Jornalista
O novo procedimento investigatório aberto na quinta-feira (1º), numerado como Inquérito 4970, atendeu a pedido da jornalista Juliana Dal Piva, colunista do ICL Notícias e uma das fundadoras da Agência Lupa. O fato investigado é a divulgação por Allan dos Santos, em junho, de supostas capturas de tela de mensagens atribuídas à jornalista, as quais ela afirma serem falsas.
Em resposta, a jornalista peticionou ao STF afirmando ser alvo de “campanha difamatória e misógina” na qual “se engajaram nomes conhecidos da extrema direita”. Pediu que os fatos fossem investigados sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes no Inquérito 4.781.
Sem cargo público, Allan dos Santos não tem foro no STF; em regra, eventuais investigações criminais contra ele devem tramitar junto a juízes de primeira instância. No entanto, a jornalista justificou o pedido sob o argumento de que as publicações de Allan dos Santos também vitimariam “servidores da Polícia Federal e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes”.
As supostas mensagens divulgadas por Santos tinham como assunto investigações em tramitação no STF contra Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro. Nas publicações, Santos insinua que a Polícia Federal e o ministro Alexandre de Moraes (envolvidos nas investigações) teriam conhecimento de que Martins seria inocente e buscavam condená-lo apesar disso, por supostas motivações políticas.
A argumentação convenceu o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, que consentiu com a abertura de inquérito no STF “para apurar se há uma atuação coordenada” para “interferir no curso de investigação criminal em trâmite” no STF mediante a técnica de “difundir informações falsas”. Citando esse parecer da PGR, o ministro Alexandre de Moraes determinou a abertura do inquérito requerido pela jornalista.
2) Primeira-dama e presidente da República
Em dezembro de 2023, quando a primeira-dama Janja da Silva teve a conta invadida na rede social X (antigo Twitter), a investigação foi atribuída ao STF, tendo o ministro Alexandre de Moraes autorizado operações de busca e apreensão. Nenhum dos investigados tinha foro privilegiado a justificar que o caso tramitasse no tribunal.
Embora os autos do inquérito sejam sigilosos, fontes da Polícia Federal afirmaram à CNN Brasil que o caso tinha sido distribuído sem sorteio ao ministro Moraes por prevenção ao Inquérito das Milícias Digitais, um dos inquéritos-filhos do Inquérito das Fake News. Teria sido alegado pelos membros da PF que o presidente Lula também foi insultado nas publicações feitas pelo hacker, o que caracterizaria um ataque ao Estado democrático de direito – concepção nova, jamais aplicada antes no Inquérito para falas contra o chefe do Executivo no governo anterior.
3) Câmara dos Deputados
Em maio de 2023, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, formalizou representação criminal contra os diretores das empresas Google e Telegram pela campanha das empresas contra a aprovação do PL 2.630/20 (conhecido como “PL das Fake News”). Foi pedida a abertura de inquérito-filho do Inquérito 4.781, com atribuição sem sorteio ao ministro Alexandre de Moraes.
Lira apontava que as empresas estavam divulgando mensagens “depreciativas” contra o PL e exortando os eleitores a pressionarem os deputados para votarem contra. Isso seria uma forma de “intimidar os parlamentares”, constituindo assim, segundo ele, uma tentativa criminosa de cercear o livre exercício do Poder Legislativo – raciocínio idêntico ao que tinha sido originalmente invocado pelo STF em 2019 em relação ao Poder Judiciário, para cercear manifestações contra o tribunal.
4) OAB
A OAB também peticionou em causa própria em inquéritos do STF. Em janeiro de 2023, o Conselho Federal do órgão peticionou junto ao ministro Alexandre de Moraes (Pet 10.981) solicitando medidas contra uma associação de advogados, a Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil (OACB). O processo foi feito em caráter sigiloso, tramitando em papel (algo já incomum no Judiciário em 2023) e só veio a público em abril de 2024, quando a decisão do ministro foi revelada pelo Congresso americano.
Com a petição, o Conselho Federal da OAB teve sucesso ao pedir que o ministro suspendesse parte das atividades da OACB, inclusive o uso do nome, que supostamente tinha semelhança excessiva com o da OAB. O ministro também proibiu a associação de “perpetrar ofensas e depreciar a imagem” da OAB e de seus membros.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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