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A política é a arte do convívio, jamais do confronto. A arte do confronto é outra coisa: selvageria, barbárie, guerra.
A política é a arte do convívio, jamais do confronto. A arte do confronto é outra coisa: selvageria, barbárie, guerra.| Foto: Pixabay

O caso ocorreu em abril, mas o vídeo só veio à tona agora. A Orquestra Sinfônica de São Paulo se apresentava quando foi interrompida aos gritos histéricos de “Stop the music!” (Pare a música!). Um lunático qualquer na plateia tinha algo a dizer. Algo que ele julgava ser mais importante para a plateia do que a obra sutil de Gustav Mahler.

Antes, o Zé Qualquer já tinha interpelado a jornalista Mônica Waldvogel no saguão da Sala São Paulo, questionando a linha editorial da Rede Globo, empresa para a qual Waldvogel trabalha e que o lunático considera uma peça fundamental de uma grande conspiração para proteger alguns ministros do Supremo Tribunal Federal. “Por que vocês omitem essas informações todas?”, pergunta ele a uma jornalista encurralada.

“Nós temos uma jornalista aqui que omite informações da Rede Globo contra o STF (sic), entendeu?”, diz ele mais tarde para o auditório lotado. Ao perceber que sua indignação foi recebida por vaias de gente que saiu de casa, pôs sua melhor roupa e pagou caro pelo privilégio de escutar Mahler numa noite qualquer, ele parece perder as estribeiras. A voz ganha aquele tom agudo de desespero louco. E o vídeo é interrompido, não sem antes o pobre coitado gritar mais uma vez “Stop the music!”.

O episódio é revelador de uma crise estética e espiritual pela qual passa o brasileiro politizado. Afinal, que tipo de mentalidade é essa que se julga oprimida pela política a ponto de ser incapaz de reservar algumas horas para contemplar a obra de Mahler? Em que momento da vida esse cidadão (e muitos que apoiam esse tipo de atitude) passou a considerar a “mesada de Dias Toffoli” e as decisões controversas de Gilmar Mendes superiores à apreciação estética, à contemplação daquilo que eleva, ao contato com o intangível que de alguma forma nos aproxima de Deus?

A crise é grave e passa pela hiperpolitização do brasileiro, fenômeno algo recente, estimulado tanto à direita quanto à esquerda por pessoas sem nenhum estofo teórico que as permita perceberem que a política é a arte do convívio. Do convívio, jamais do confronto. A arte do confronto é outra coisa, algo que ao longo da história recebeu várias denominações: selvageria, barbárie ou simplesmente guerra. A política, pois, pressupõe uma tolerância que escapa ao Fulano, por mais indignado que ele esteja.

Medo e miséria

Vale a pena perguntar: do que têm tanto medo essas pessoas que se deixam contaminar pela política a ponto de abdicar da sensibilidade de Mahler para promover um conflito ideológico numa arena estética? Temem que o Brasil vivencie um Holomodor? Vire uma Venezuela? Tenha um Estado de exceção? Temem ter de obedecer a magistrados que se empanturram de lagosta e vinho caro numa quarta-feira qualquer?

(Eu temo ser obrigado a viver num mundo sem espaço para outra coisa que não a raiva motivada pela indignação ideológica. Eu temo viver num mundo onde a vingança contra a picaretagem histórica de nossos políticos e magistrados se traduza na impossibilidade de conviver com pessoas que pensam diferente de mim. Eu temo um pesadelo kafkiano no qual o processo não existe, mas ainda assim as pessoas se consideram vítimas de uma acusação imaginária que lhes dê sentido à vida).

Sim, o PT roubou. Durante uma década e meia, roubou. Criou uma organização criminosa para se perpetuar no poder, dizem os autos do processo. Além disso, os anos de lulopetismo deram origem a toda uma geração de invejosos e ressentidos que acreditam em contos da carochinha marxistas. Lula, Dilma & Cia. destruíram uma economia que já não era lá grandes coisas e legaram o desemprego a 12 milhões de pessoas, fora os outros 20 milhões que sobrevivem à base de bicos.

Mas, por mais que o PT e Lula tenham deixado o país à míngua e instaurado no Brasil um clima de animosidade, não, eles não são responsáveis pela miséria interior de cada um. Pela miséria estética e espiritual que leva um homem a encurralar uma mulher durante um concerto para exigir dela respostas que ela evidentemente não tinha. Pela miséria estética e espiritual que escraviza o homem a ponto de ensurdecê-lo para Mahler. Pela miséria estética e espiritual que o torna tão impotente e pequeno que, diminuto e preso a suas fantasias conspiracionistas, o leva a exigir que a música pare de tocar e que o mundo pare de girar para que ele finalmente se sinta digno de atenção.

Pela miséria estética e espiritual de quem chegou até aqui espumando de raiva e xingando o autor de comunista.

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