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Se o terraplanismo não merece crédito, e não merece, por que ideias absurdas como a auditoria cidadã da dívida, a negação do déficit da Previdência, o protecionismo e o imposto sobre grandes fortunas merecem?
Se o terraplanismo não merece crédito, e não merece, por que ideias absurdas como a auditoria cidadã da dívida, a negação do déficit da Previdência, o protecionismo e o imposto sobre grandes fortunas merecem?| Foto: Shutterstock

“Terraplanistas” é como são chamados, geralmente de forma jocosa, os poucos que defendem que a Terra é plana. Fora algumas piadas, eles não são levados muito a sério. Mas há outros tipos de “terraplanistas”, os que tratam de temas econômicos e de políticas públicas e que conseguem ter notoriedade entre alguns grupos políticos à esquerda e à direita.

Eles ocupam espaço no debate público brasileiro, são convidados frequentemente para palestras, são entrevistados pela imprensa e são até ouvidos em sessões do Congresso Nacional. Em todas essas aparições, porém, o resultado é o mesmo: desinformação e contaminação do debate público.

Abaixo, selecionamos 4 ideias comparáveis ao terraplanismo e que estão presentes no debate público brasileiro.

Auditoria Cidadã da Dívida

Talvez você já tenha visto circular um gráfico que afirma que quase metade do orçamento federal é destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida. A principal responsável por popularizá-lo foi a auditora aposentada da Receita Federal Maria Lúcia Fattorelli, conhecida por ser uma das fundadoras do movimento Auditoria Cidadã da Dívida.

O problema é que a ideia por trás da auditoria cidadã da dívida confunde a rolagem, que é o refinanciamento da dívida por meio da emissão de novos títulos públicos, com o próprio pagamento de juros e amortizações.

Imagine que você tem uma dívida de R$100 com um banco, com juros de 10% ao ano. Ao final dos 12 meses, a dívida será de R$ 110. Mas, para quitar essa dívida, você realiza novo empréstimo com outro banco, também a juros de 10% ao ano. Ao final do segundo ano, a dívida com essa instituição será de R$ 121. Se você não economizou para pagar pelo empréstimo, terá de contrair um novo empréstimo com outra instituição para quitar o anterior. E assim por diante.

Ao final, quanto foi efetivamente pago com a dívida? Nada, já que nenhum dinheiro foi economizado para quitar os empréstimos. Você só contraiu novas dívidas para pagar as antigas. O discurso mistura rolagem com a amortização, como se ambas somadas fossem uma nova dívida.

Esse mecanismo de poupar dinheiro para quitar parcelas da dívida tem o nome, nas contas públicas, de superávit primário. No entanto, desde 2014 o governo federal gasta mais do que arrecada, isto é, não sobra recursos para pagar um centavo da dívida atual. Em 2013, último ano em que o governo conseguiu gastar menos do que arrecadou, 6% dos recursos foram destinados para o pagamento da dívida, um valor muito inferior ao defendido por Fatorelli.

Ao tratar a dívida pública como principal gasto da União, Fatorelli ignora o grande peso das contas públicas: as despesas previdenciárias. O orçamento da União de 2019 prevê que ela consumirá R$ 765 bilhões, três vezes mais do que os valores destinados à saúde, educação e segurança juntos. Como mostra este gráfico elaborado pelo economista Pedro Nery, a Previdência é responsável por mais da metade dos gastos totais do governo.

Além disso, Fattorelli também argumenta que grande parte da dívida brasileira é ilegal, já que viria da cobrança de juros sobre juros e falta transparência sobre esses cálculos. Assim, seria necessário auditar essa dívida, num discurso que já foi endossado até pelo presidente da República Jair Bolsonaro.

No entanto, apenas uma pequena parcela da dívida se deve à cobrança de juros sobre juros, além do fato de o próprio Supremo Tribunal Federal já ter decidido, em 2015, que esse tipo de cobrança é legítima. O próprio Tesouro Nacional publica mensalmente relatório com informações sobre a dívida.

Na prática, ao não reconhecer a legitimidade da dívida, a Auditoria Cidadã defende um calote — algo que já ocorreu nove vezes na história brasileira. Não honrar os compromissos assumidos não é boa ideia: além de afastar novos investimentos para o país, o custo de emissão de novos títulos (necessário para financiar as despesas do governo) aumentaria.

Inexistência de déficit na Previdência

Um argumento comum a quem se opunha à Reforma da Previdência é a negação do seu déficit. Se não há desequilíbrio no sistema, por que reformá-lo?

A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro Denise Gentil ganhou notoriedade justamente com esse discurso. Em sua tese de doutorado, defendida em 2006, ela afirmou que “ao contrário do que é usualmente difundido, o sistema de previdência social não está em crise e nem necessita de reformas que visem ao ajuste fiscal”. Em 2003, contudo, o rombo previdenciário já era de R$ 127 bilhões.

Para chegar a essa conclusão, Gentil argumenta que não se deve separar a Previdência Social da Seguridade Social. Assim, ela soma as despesas da Previdência com as da Saúde e Assistência Social e as contribuições da Previdência com outros tributos que servem para financiar a Saúde e a Assistência Social. Nessa equação proposta, o saldo seria positivo, isto é, não haveria déficit.

O problema é que o argumento ignora que, se as contribuições de trabalhadores não forem suficientes para arcar com os custos da previdência, a sociedade precisará financiá-lo por meio de mais impostos.

Além disso, o maior problema do sistema previdenciário brasileiro é o envelhecimento da população. Os trabalhadores de hoje financiam os aposentados e pensionistas atuais na expectativa de que terão direito a benefícios custeados pelos trabalhadores do futuro. Mas há cada vez mais beneficiários e menos trabalhadores para custeá-los. Em 1980, havia 13 trabalhadores para custear cada beneficiário do sistema; em 2018 essa relação caiu para apenas 7,7; e em 2060 haverá somente 2 trabalhadores para cada beneficiário. Isto é, a trajetória de despesas aumentará muito com o envelhecimento da população.

Além disso, o Brasil é um país que gasta com Previdência o mesmo que países com população mais idosa. Enquanto países com formação demográfica e econômica parecidas gastam cerca de 3,6% do PIB, o Brasil gasta cerca de 13% do PIB.

Protecionismo industrial

No segundo governo de Lula e ao longo do mandato de Dilma Rousseff, o chamado “protagonismo do Estado” foi evocado para promover o desenvolvimento econômico. Essa ideia foi posta em prática com a Nova Matriz Econômica (NME), que consistia em subsidiar juros para determinadas empresas por meio do BNDES, sob a liderança de seu presidente, o economista Luciano Coutinho.

Entre maio de 2007 e maio de 2016, o BNDES custou aos pagadores de impostos brasileiros R$ 1,2 trilhão, valor equivalente a 40 vezes o atual orçamento do Bolsa Família — previsto para R$ 30 bilhões em 2019.

A NME também foi influenciada pelos economistas Nelson Barbosa e Guido Mantega, que integravam a equipe econômica das gestões petistas. Para proteger a indústria nacional, foram tomadas diversas medidas protecionistas, como a exigência de a Petrobras incluir uma cota de produtos nacionais em suas compras.

Além disso, segundo levantamento da Organização Mundial do Comércio, entre 2008 e 2012 o Brasil foi o sexto país do mundo que mais editou medidas anticomerciais. Não à toa, atualmente o Brasil é considerado o segundo país comercialmente mais fechado do mundo.

Segundo levantamento de Greg Mankiw, 93% dos economistas concordam que tarifas e cotas de importação geralmente reduzem o bem-estar econômico geral. Isso porque, ao inibir a competição estrangeira, os consumidores brasileiros são obrigados a pagar por produtos mais caros e de qualidade inferior.

Ao contrário do que se acredita, para um país enriquecer não é necessário que a participação da indústria seja relevante no PIB. A Austrália, por exemplo, é um exportador de commodities com renda muito superior à brasileira e cresce sem recessões econômicas há três décadas.

Imposto sobre grandes fortunas (IGF)

Doutor em economia e professor da Unicamp, Marcio Pochmann afirmou que um imposto de 1% sobre grandes fortunas seria o suficiente para eliminar o déficit previsto para 2019, projetado em cerca de R$100 bilhões. Mas não é bem assim. A despeito de o Brasil ser um país desigual e com bastante concentração de renda, os 5% mais ricos do país não são donos de grandes fortunas. A renda deles é de aproximadamente R$5.200 por mês. Isso significa que o IGF tem baixo potencial arrecadatório: aproximadamente R$6 bilhões ao ano, segundo projeção da Consultoria do Senado.

Ainda assim, na atual legislatura, o PSB protocolou projeto de lei na tentativa de instituir a cobrança do imposto sobre grandes fortunas no Brasil.

Atualmente apenas quatro países no mundo tributam grandes fortunas: Espanha, França, Noruega e Suíça. Um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) listou os motivos para boa parte dos países que adotaram o IGF no mundo o terem abandonado.

Segundo a OCDE, tributar grandes fortunas desestimula o hábito de poupar, desincentiva investimentos e sua cobrança é complexa. Isso porque ter ativos valiosos (estoque) não significa que o indivíduo tenha fluxo (renda) suficiente para arcar com os valores da tributação. Outros problemas desse tipo de imposto são os altos custos administrativos e o fracasso em seu propósito de reduzir desigualdades.

Dessa forma, em um momento que o Congresso Nacional discute reforma tributária, a recomendação da OCDE é buscar uma combinação de tributação sobre ganhos de capital, heranças e propriedade em vez de insistir na ideia de IGF.

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