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Uma decisão de um tribunal francês sobre o assassinato de Sarah Halimi por um usuário de drogas pode criar um precedente assustador.
Uma decisão de um tribunal francês sobre o assassinato de Sarah Halimi por um usuário de drogas pode criar um precedente assustador.| Foto: Pixabay

A decisão recente de um tribunal francês pode, se usada como precedente, legalizar o homicídio – desde que o ato tenha sido cometido num estado de insanidade temporária causada pela intoxicação por maconha.

Em 2017, Kabili Traoré, muçulmano de origem malaia e que não tinha histórico psiquiátrico, mas uma extensa ficha criminal, com 22 condenações — incluindo roubo, tentativa de roubo, tráfico de drogas e posse ilegal de armas —, entrou no apartamento de Sarah Halimi, uma judia de 66 anos, torturou-a e depois a jogou pela sacada. Traoré parecia estar numa espécie de transe religioso, porque ouviram-no gritar “Allahu Akbar” e “Matei Shaitan” (Satã). Não há dúvidas de que ele estava em surto psicótico na ocasião, nem que seu surto psicótico foi causado pelo uso da maconha.

O tribunal inocentou Traoré de todos os crimes porque ele estava em surto ao cometer o assassinato, mas o sentenciou a passar 20 anos num hospital psiquiátrico. A decisão provocou temor, repúdio e zombaria. Mas, do ponto de vista estritamente jurídico, o tribunal talvez estivesse certo. De acordo com o código penal francês, um homem não pode ser considerado criminalmente responsável se seu “discernimento” estiver prejudicado por um estado psiquiátrico ou neuropsiquiátrico. O código não torna a intoxicação voluntária uma exceção à regra.

Claro que o que constitui a perda do discernimento é, em si, uma questão de discernimento. Traoré sabia, por exemplo, que sua vítima era judia (ela era a única judia do quarteirão, e ele sabia disso); ele também sabia que ia matá-la. Ele deve ter percebido, ainda que intermitentemente, que estava cometendo uma ilegalidade, porque em certo momento ele gritou que tinha sido suicídio e que a polícia deveria ser chamada. Por outro lado, é improvável que ele tivesse feito o que fez se não estivesse em surto psicótico.

Além disso, a defesa argumentou que Traoré não sabia que o uso dessa droga teria o efeito que teve sobre ele nessa ocasião, e por isso ele não era culpado do crime pelo qual estava respondendo. Afinal, ele fumava maconha desde os 15 anos, sem qualquer episódio psicótico. Portanto, apesar de o consumo de droga ter sido voluntário, a psicose resultante foi involuntária.

Este é um argumento constrangedoramente sofista. Se um homem usa uma droga ilegal, claro que ele é responsável por todos os efeitos da droga, tanto os esperados quanto os inesperados, os desejados e indesejados. Mas o tribunal levou o argumento da defesa a sério.

A jurisprudência francesa é bastante confusa e inconsistente quanto à questão da intoxicação por maconha. Se alguém provoca um acidente fatal sob o efeito de drogas, isso é considerado um agravante, e não uma justificativa ou atenuante. Assim, a intoxicação por maconha agrava um acidente mas (com base na decisão recente) justifica um assassinato: uma doutrina curiosa, para dizer o mínimo.

O tribunal também tratou da questão do homicídio ter sido motivado por antissemitismo – um agravante, de acordo com a lei francesa — e concluiu que foi, sim. A defesa argumentou que não, que Traoré só foi antissemita por causa do seu estado psicótico. Desse modo, era apenas uma coincidência o fato de sua vítima ser a única judia do prédio. Isso não apenas contradizia seus antecedentes como também ignorava o fato de que o conteúdo das ilusões das pessoas reflete a cultura, ou subcultura, na qual elas vivem. Na verdade, não poderia ser diferente: uma pessoa do século XVII sofrendo de ilusões paranoicas jamais diria estar sendo perseguida pela KGB ou CIA. E, como Thomas De Quincey diz em seu Confessions of an English Opium Eater [Confissões de um consumidor de ópio inglês], de 1829: “Se um homem que só fala sobre bois passar a consumir ópio, ele provavelmente... sonhará com bois”.

Traoré pode estar à solta em poucos anos, apesar de o tribunal tê-lo mandado para um hospital psiquiátrico e o sentenciado à internação por 20 anos. Se dois psiquiatras independentes concluírem que ele não está mais psiquiatricamente doente e não oferece perigo, ele pode ser libertado bem antes — e dois psiquiatras quase com certeza farão isso bem antes do fim da sentença.

A revista francesa L’Express, que tem uma tiragem enorme, perguntou: “Quem, então, supervisionará Traoré?” A resposta, depois que ele deixar o hospital, já é sabida para além de qualquer dúvida razoável: ninguém. Isso porque tal supervisão é impossível. Na verdade, Traoré já conseguiu comprar a droga de sua preferência dentro do hospital de segurança máxima onde era mantido preso.

De qualquer forma, em minha opinião não deveria haver dúvida sobre supervisioná-lo depois de solto porque ele não deveria ser solto jamais. Enquanto ele permanecer psicótico por causa do efeito da maconha – que pode durar bastante – ele deveria ser tratado num hospital. Quando melhorar, ele deveria ser mandado para a prisão e lá ficar pelo restante da vida, sem possibilidade de soltura.

Na verdade, a lei e os magistrados franceses habilmente puseram a responsabilidade sobre o caso nos médicos, que não têm responsabilidade alguma. O código penal deveria ser reformado para que os tribunais não fizessem isso novamente e para que os efeitos da intoxicação voluntária por maconha não fossem usados como defesa.

Theodore Dalrymple é editor colaborador do City Journal, ocupa a cadeira Dietrich Weismann no Instituto Manhattan e é autor de vários livros.

© 2020 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês
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