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A linguagem não-binária é aquela que pretende ser “isenta de gênero” e, portanto, sem nenhuma “marca de opressão” | Pixabay
A linguagem não-binária é aquela que pretende ser “isenta de gênero” e, portanto, sem nenhuma “marca de opressão”| Foto: Pixabay

A linguagem não-binária é aquela que pretende ser “isenta de gênero” e, portanto, sem nenhuma “marca de opressão”. O fenômeno recente tem a atraído a atenção de linguistas, jornalistas e ideólogos dos mais variados matizes. Para alguns, a linguagem não-binária é uma excrescência do antigo e persistente movimento que aprendemos a chamar de Politicamente Correto. Para outros, é tão-somente uma marca ideológica sem maiores consequências.

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Para o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, autor dos livros “What Língua Is Esta?” e “Viva a Língua Brasileira”, gêneros neutros e outros “ressignificados” das palavras não têm a ver com a apregoada “revolução gramsciana”, mas é “inegável que grande parte da esquerda passou a privilegiar esse tipo de ativismo simbólico e cultural”. O linguista Eduardo Calbucci é mais incisivo. Para ele, “não há nenhuma questão gramatical nisso. É só viés ideológico mesmo”. 

Formas “peculiares” de escrever não são nenhuma novidade no português – e em nenhuma outra língua. As gírias estão aí para comprovar isso. Elas aparecem e desaparecem ao sabor do tempo e de coincidências e acasos que fogem à nossa compreensão. Calbucci acredita que, apesar de aqui e ali a linguagem não-binária se fazer presente com alguma ênfase, ela ainda é um fenômeno específico das redes sociais. “É impossível que isso vire a norma”, afirma. “Para que isso acontecesse, jornais, a alta literatura, artigos acadêmicos e dicionários teriam de incorporar a forma não-binária”, explica.

“Ninguém manda na língua” 

Pode parecer simples para alguns trocar a designação masculina e feminina das palavras por um “x” ou “e” e sair do texto sem sentir qualquer tipo de culpa, livre da sensação de opressão. Não é. O “o” e o “a” que determinam se uma palavra é masculina ou feminina fazem parte da estrutura do idioma. “Não se altera a estrutura do idioma a curto prazo. Se isso acontecesse em português, seria o primeiro caso de uma língua alterada por arbítrio”, diz Calbucci. É algo tão difícil que ele acredita que nem mesmo Márcia Tiburi, autora de “Feminismo em Comum - Para Todas, Todes e Todos” (Rosa dos Tempos) conseguiu aplicar no texto todo do livro. 

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O raciocínio de Sérgio Rodrigues segue na mesma linha. “Ninguém manda na língua”, diz, ressaltando que o caso do gênero neutro é ainda mais complicado por não trabalhar com propostas pronunciáveis. “E toda língua é oral antes de ser escrita”. A questão da impronunciabilidade da linguagem não-binária é algo que também incomoda Calbucci. “Apesar de ver uma boa intenção na proposta, esse tipo de linguagem não é totalmente inclusivo porque, por exemplo, impede que cegos usem softwares de leitura”, diz. 

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Além disso, a linguagem não-binária em hipótese alguma resolve aquilo que propõe resolver, isto é, tornar o idioma livre de tudo o que os que adotam o recurso consideram opressão. “Os elementos machistas não estão no gênero das palavras”, ressalta Eduardo Calbucci.

“No português não existe o gênero neutro. Já no inglês ele existe, e nem por isso a sociedade norte-americana é mais ou menos machista”, diz. 

Idioma pobre

Mas será que a linguagem não-binária e estratégias do gênero não acabam por empobrecer o idioma? É isso o que pensa o psiquiatra e escritor britânico Theodore Dalrymple, no livro “Podres de Mimados: As Consequências do Sentimentalismo Tóxico” (É Realizações). Para ele, ressignificações de palavras acabam por empobrecer o idioma.

Dalrymple menciona o exemplo de “pupil” (pupilo), palavra usada para se referir a crianças que frequentam a pré-escola, por “students” (estudantes), palavra antes usada apenas para alunos já alfabetizados. Aqui no Brasil, temos casos notórios de ressignificação. Favela virou comunidade e mendigo se transformou na acaciana expressão “pessoa em situação de rua”, por exemplo. A moda chegou até ao campo, onde agora é considerado errado falar em agrotóxicos; o certo seria “defensivo”. 

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“Costumo rejeitar juízos de valor como esse do empobrecimento”, diz Sérgio Rodrigues. Para o escritor, “esse tipo de acusação trai um conservadorismo excessivo que a história dos idiomas não se cansa de tornar obsoleto”. E cita o caso do verbo “judiar”, que ele cortou do vocabulário por conta da carga antissemita. “Seria possível dizer que empobreci minha fala? Quantitativamente, sem dúvida. Mas acho que saí mais rico do processo”, conclui. 

Censura

O problema talvez esteja não na proposta supostamente bem-intencionada de ativistas em redes sociais. O problema da linguagem não-binária talvez seja justamente o autoritarismo com que se expressam seus praticantes, acreditando numa revolução cujas consequências devem ser impostas, não absorvidas naturalmente. Nisso, Sérgio Rodrigues não vê novidade. “É apenas a língua em movimento, viva, com seus conflitos”, diz. Mas há sempre um mas. 

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“A novidade da nossa época talvez seja a intensidade com que essas mudanças vêm sendo reivindicadas de modo organizado, instrumentalizadas politicamente por grupos de interesse”, ressalta.

E, nestes casos, há, sim, um componente de censura e intolerância nisso. “Este é o lado escuro do fenômeno”, afirma, para emendar:

“O lado solar é o de nos levar a questionar nossos meios de expressão, refletir sobre a língua. Apesar de todas as besteiras, exageros, picuinhas e até falsidades clamorosas que se escondem no meio de reflexões justas, ponderadas, legítimas, acredito que no fim das contas a língua tenha sua sabedoria. Aquilo que não faz sentido, ou seja, a maior parte dessa onda, vai acabar caindo no esquecimento”. 

“Como usam a língua todos os dias, as pessoas se sentem à vontade para discutir o assunto. Por isso ela está sujeita a batalhas ideológicas sempre. A língua inegavelmente serve a diversos interesses”, diz Eduardo Calbucci. O ativismo da linguagem não-binária e dos ressignificados politicamente corretos, contudo, talvez – talvez! – tenha um lado bom. “Se quisermos ser cínicos, podemos dizer que ele [o ativismo] tem sobre piquetes e passeatas o grande atrativo de não expor ninguém a tiros e cassetetes”, propõe Sérgio Rodrigues.

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