No sétimo episódio da primeira temporada da série “Atlanta”, um programa de TV fictício chamado Montague traz a história de um jovem adolescente negro que se identifica como um homem branco de 35 anos. Em tom de comédia, o rapaz fala sobre os problemas de aceitação em sua família. “Eu acho que eles não entendem que raça é apenas uma invenção”. Para completar sua transição para a raça branca, ele economiza dinheiro para uma cirurgia que o fará mudar de cor. “O procedimento é totalmente possível. Mas ele vai ficar esquisito”, diz o médico. Ao final do episódio, ele aparece com uma peruca loira exaltando a sua transição.
Um dos convidados do programa, uma espécie de mesa-redonda sobre temas contemporâneos, o rapper Paper Boi, não se aguenta e cai na gargalhada. “Desculpe… Isso é ridículo. É ridículo”. Então o apresentador e uma convidada a favor dos direitos dos transgêneros, que passaram o programa chamando o rapper de transfóbico, perguntam ao rapaz transracial se falta tolerância à comunidade negra em relação às pessoas trans. “Não, de jeito nenhum. Um homem que queira se transformar em mulher não é natural. E não podemos deixar que nossos filhos pensem que isso é natural”, diz ele, para total surpresa dos convidados.
Este episódio, disponível no Brasil na Netflix, foi indicado ao prêmio Emmy de melhor roteiro e venceu na categoria de melhor direção.
Seriam os roteiristas de “Atlanta” transfóbicos? É bom lembrar que o produtor e protagonista da série é Donald Glover, ator e músico extremamente talentoso que também faz as vezes de rapper. Como músico, ele usa o nome Childish Gambino, e é o criador de “This is America”, hit de 2018 sobre os problemas raciais dos EUA. Ele ainda interpreta o jovem Lando Calrissian no filme “Han Solo: Uma história Star Wars”.
Podemos ter uma pista na fala que ele escreveu para o rapper Paper Boi no episódio descrito acima. “Olha, eu nunca falei nada sobre retirar os direitos de ninguém.” Ele ainda fala sobre o caso Caitlyn Jenner, um ex-atleta olímpico americano que se chama Bruce Jenner e fez uma cirurgia de mudança de sexo. “Caitlyn Jenner está fazendo apenas o que os homens brancos ricos fazem desde sempre: qualquer coisa que lhes dá na telha”.
O humorista negro Dave Chapelle também discute o que ele chama de privilégio branco, em seu especial de comédia “Equanimidade”. “Você já se perguntou por que foi tão mais fácil Bruce Jenner mudar seu gênero do que Cassius Clay trocar de nome?”.
Quando Donald Glover faz claramente um paralelo entre o ridículo que seria alguém querer trocar de raça e a transexualidade sendo levada a sério, ele também mostra que é impossível comparar o que os negros, escravizados por séculos, sofreram e o que o preconceito que a comunidade trans diz sofrer.
O que nos leva a outra questão: por que a transracialidade é ridicularizada e a transexualidade é cada vez mais aceita como algo perfeitamente normal, e não como um resultado da disforia de gênero?
O caso Rachel Dolezal
Rachel Dolezal, de 43 anos, foi dirigente da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People - Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor, uma associação de defesa dos direitos civis dos afro-americanos criada em 1909) na cidade de Spokane, no estado de Washington, de 2014 a julho de 2015. Ao mesmo tempo tempo, ela dava aula sobre estudos africanos na Eastern Washington University. Como uma das líderes da comunidade negra de sua cidade, ela alegou estar recebendo ameaças e sendo vítima de mensagens de ódio relacionadas a sua raça. Só havia um problema: Rachel é branca, de olhos azuis e ascendência alemã e sueca.
Mas não foi assim que ela se apresentou à NAACP. Ela mudou sua aparência por meio de procedimentos estéticos para parecer ter ascendência africana. Quando alegou estar recebendo ameaças, e isso atraiu a atenção da imprensa, seus pais foram a público revelar a verdadeira identidade dela. A imediata reação entre a comunidade negra foi de ultraje e indignação, provocando sua renúncia da posição de presidente da seção da NAACP de Spokane e sua demissão da Eastern Washington University.
Pega em flagrante, Dolezal reconheceu ter nascido branca e que seus pais eram brancos, mas manteve-se firme na posição de se identificar como negra, o que depois ela reforçou em um livro autobiográfico. “Somos todos do continente africano”, afirmou. Perguntada se realmente tinha ascendência africana, disse simplesmente que preferia “ser chamada de negra”. Para acrescentar um pouco mais de confusão ao caso, em 2002, mais de uma década antes de se identificar como negra, Dolezal processou uma universidade por ter sido discriminada e não conseguir o cargo de professora assistente. O motivo da discriminação alegada por ela foi o fato de ser… branca.
Aceitação social
O que faz uma obra ser reconhecida como arte? Depois que Marcel Duchamp colocou um urinol em uma exposição em Nova York, ficou claro que era aquilo que os que entendem de arte dizem que é arte. A diferença entre transexualidade e transracialidade segue quase o mesmo princípio: uma das duas é socialmente aceita, a outra não. Por isso Caitlyn Jenner é retratada pela fotógrafa Anne Leibovitz na capa da respeitada revista Vanity Fair como um heroína, enquanto Rachel Dolezal se tornou motivo de piadas e reprovação.
Pelo menos uma pessoa questionou abertamente esse estado de coisas. A doutora em filosofia Rebecca Tuvel, professora no Rhodes College, escreveu em abril de 2017 um artigo intitulado “Em Defesa do Transracialismo”, explorando justamente essa diferença no tratamento de Jenner e Dolezal.
Em seu texto, Tuvel escreve: “As críticas a Dolezal por representar erroneamente sua raça de nascimento indicam uma percepção social generalizada de que não é possível nem aceitável mudar de raça da mesma forma que a mudança de sexo. Considerações que apóiam o transgenerismo parecem se aplicar igualmente ao transracialismo. Embora a própria Dolezal possa ou não representar um caso genuíno de uma pessoa transracial, sua história e a reação do público a ela servem a propósitos ilustrativos úteis.” E mais: “Uma vez que devemos aceitar as decisões dos indivíduos transgêneros de mudar de sexo, também devemos aceitar as decisões dos indivíduos transraciais de mudar de raça.”
A prova de que Tuvel estava correta em levantar a questão foi a própria maneira que seu artigo foi recebido. A primeira reação foi registrada, como é costume, nas redes sociais, onde Tuvel foi duramente criticada por ser “transfóbica” e “racista”. Logo a seguir, outros acadêmicos ligados à Hypatia, periódico onde o artigo foi publicado, juntaram-se à turba e inclusive pediram que houvesse uma retratação.
A tentativa de censurar e calar Tuvel, que precisou inclusive retirar o nome de Bruce Jenner do artigo original, mostram como um simples exercício filosófico se tornou algo quase proibido, principalmente se tocar em questões delicadas. O absurdo da situação chamou a atenção do escritor português João Pereira Coutinho, que resumiu a situação de maneira brilhante:
“Há precisamente 40 anos, Woody Allen filmou "Annie Hall". Na cena final, a conhecida piada: um homem vai ao médico e diz que o irmão pensa que é uma galinha. O médico aconselha internamento para o irmão. O homem responde: "Eu até internava, doutor, mas preciso dos ovos.
Francamente: até quando vamos rir dessa piada?”
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