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Robert Boyers
Robert Boyers: “Levantar questões desconfortáveis é algo frequentemente entendido como um pecado contra o bom gosto”| Foto: Reprodução

É corajoso e bem-vindo o livro The Tyranny of Virtue: Identity, The Academy, and the Hunt for Political Heresies (“A Tirania da Virtude: Identidade, Universidade, e a Caça às Heresias Políticas”), publicado pelo ensaísta, professor e editor americano Robert Boyers no fim de 2019 e ainda sem tradução para o português.

Boyers é uma voz dissonante (mas não única, como ele diz aqui) no meio acadêmico dos Estados Unidos -- vá lá, do Ocidente --, cujos Departamentos de Ciências Humanas estão quase inteiramente tomados pelo Pós-Estruturalismo francês, ideário que ajudou a moldar, nas últimas décadas, as “políticas identitárias”, isto é, a propensão de pessoas de determinadas cores de pele, religiões, gêneros ou orientações sexuais a se aliarem politicamente e se considerarem de certa maneira vítimas de um conjunto de experiências opressivas passadas, que as tornam merecedoras de reparações e mudanças no presente.

À parte o aspecto obviamente compreensível desse tipo de postura política, Boyers vê nela também uma extrapolação reprovável: a noção de que pessoas de certos grupos sociais pensam e agem de modo parecido e devem continuar a pensar e agir sempre de modo parecido. “Toda identidade é plural. Eu sou muitas coisas”, já declarou o autor.

Um dos subprodutos das políticas identitárias, a prática do “virtue signalling”, exibição de virtude, muito presente nas discussões virtuais e físicas de hoje em dia, é alvo da crítica de Boyers no novo livro. Ele reconhece, é claro, que várias reivindicações das minorias sociais são justas, mas julga perigosa a atual tendência -- percebida principalmente nesses grupos e no meio acadêmico, que o autor conhece bem -- a se fazer escândalo, um big deal, em torno de atos que, vistos com olhos desapaixonados, são apenas erros, deslizes ou mesmo piadas infelizes contra seus integrantes.

Hoje, como ele escreve no livro, “Praticamente toda conversa tornou-se um campo minado”. Palestras, comentários soltos ou mesmo uma única palavra dita em um encontro casual com um aluno, por exemplo, podem ser rotuladas como “ofensivas”.

Quem age desse modo policialesco e estridente não está colaborando para um “mundo melhor”; está quase sempre apenas nutrindo o ego, querendo distinguir-se moralmente dos “pecadores” e, como diz a própria expressão em inglês, posar de virtuoso, sempre alerta às injustiças do mundo. Os que se dizem mais sensíveis a intolerâncias são, muitas vezes, os que menos praticam a tolerância.

É preciso ter... como são mesmo os nomes daqueles itens tão em falta hoje? Ah, sim: complexidade, olhar nuançado e senso de proporção. Boyers gosta de ressaltar a diferença entre, por exemplo, chamar a atenção de alguém que faz um comentário ou usa uma expressão de cunho preconceituoso em público e “linchar” o suposto “infrator” sem motivo maior a não ser ressaltar a própria virtude. E é esse traço mais hipócrita e autoritário que Boyers, ele mesmo um liberal no sentido americano (de alguém mais à esquerda, progressista), critica, por julgá-lo contraproducente.

Critica ainda o que considera um uso indiscriminado do termo “privilégio”, invocado sempre que se quer impedir uma conversa de rumar para um caminho que a pessoa que o invoca acha indesejável (“Quando alguém está fazendo um comentário de que você não gosta, você levanta a mão e diz algo como ‘Ai, você não está vendo que está exercendo um privilégio falando desse jeito?’”, observou ele, em entrevista à revista The New Yorker). E como se todo privilégio fosse intrinsecamente imerecido.

Na entrevista abaixo, concedida por e-mail, o professor de língua inglesa na universidade Skidmore, do estado de Nova York, editor da tradicional revista literária Salmagundi e autor de outros dez livros fala da recepção a The Tyranny of Virtue, da chamada guerra cultural e de fatos recentes, como as controvérsias em relação ao filme E O Vento Levou e a estátuas de figuras históricas americanas e inglesas. Também dá a sua opinião sobre a escritora Camille Paglia e o cineasta Woody Allen, duas personalidades da cultura bastante atacadas nos últimos anos.

Gazeta do Povo: O senhor parece ser uma voz dissonante no meio acadêmico americano, o qual, como aqui no Brasil, parece estar quase totalmente mergulhado no Pós-Modernismo e no Pós-Estruturalismo francês, as ideias que ajudaram a moldar as atuais “políticas identitárias” da esquerda. As primeiras páginas do seu livro trazem elogios de professores de Yale e Harvard. Em geral, A Tirania da Virtude foi bem recebido na academia, por professores e estudantes?

Boyers - Quando [o jornal] The Chronicle of Higher Education publicou uma versão inicial de um ensaio que depois entrou como um capítulo do meu livro, recebi dezenas de mensagens de acadêmicos e diretores que me disseram que eu havia identificado problemas da vida acadêmica que aconteciam por todo o país. Alguns disseram que os problemas eram muito mais graves em suas próprias instituições de ensino do que, aparentemente, na minha. Eu tinha motivos para sentir que precisava escrever esse livro e que ele poderia fazer algum bem. Não há dúvida de que grande parte da intelligentsia acadêmica se investe de uma espécie infeliz de política identitária e de atitudes que promovem e perpetuam essa política. Os alunos são frequentemente incentivados, em muitas escolas, a pensarem em si mesmos primeiramente como pessoas brancas ou negras. Supõe-se que eles de alguma maneira pensem do jeito que os brancos, ou islâmicos, ou negros mais ou menos invariavelmente pensam. Que eles deveriam pensar da maneira como as pessoas de sua raça ou etnia pensam. Que eles refletirão as atitudes características de sua classe. Quando eles apresentam ideias que vão de encontro aos pontos de vista que seus grupos raciais ou étnicos devem sustentar, muitas vezes ouvem que estão traindo uma obrigação. Esse era um problema que eu pretendia dissecar no meu livro e para o qual gostaria de chamar a atenção dos leitores. Eu sabia que muitas pessoas do meu próprio círculo de liberais negariam que houvesse algo de pernicioso em educar os jovens a pensarem sobre si mesmos e nos outros dessa maneira, ou negariam que as perspectivas que descrevo estejam generalizadas. Muitos negariam, é claro, que eles mesmos promovam costumeiramente as atitudes que cito. Mas eu também sabia que havia muitas pessoas dentro e fora da academia que aceitariam uma dissecação séria das políticas identitárias e apreciariam meus esforços para oferecer uma alternativa humana a muitas das atitudes que considero deploráveis.

É claro que fiquei satisfeito quando vários escritores e intelectuais de destaque do país apoiaram o livro e fizeram comentários pré-publicação elogiando o que eu havia discutido ali. Entre esses apoios estão os de pessoas como Jamaica Kincaid, Marilynne Robinson, Joyce Carol Oates e Mary Gaitskill, e também os de lideranças acadêmicas de grandes universidades. Talvez a presença, na primeira página do meu livro, de comentários entusiasmados de tais escritores tenha convencido pessoas que poderiam muito bem querer descartar muita coisa que escrevi a pensar melhor sobre sua contrariedade. Seja como for, a recepção a A Tirania da Virtude foi extremamente favorável e, em minhas palestras, em faculdades de todo o país, ouvi perguntas e comentários de uma grande variedade de pessoas, jovens e velhas, que consideraram a questão que levanto no livro muito interessante, se não totalmente convincente.

É óbvio que ninguém publica um livro como o meu e espera aprovação geral para tudo o que escreveu. No contexto atual, mesmo levantar questões desconfortáveis é algo frequentemente entendido como um pecado contra o bom gosto. É claro que alguns poréns que ouvi em palestras ou mesas-redondas me pareceram plausíveis. Os casos e exemplos que eu cito são totalmente ilustrativos do que em geral tem acontecido nas universidades? Eu não deveria levar em conta os temores dos defensores de pessoas portadoras de deficiências, que nos dizem que, quando usamos a chamada “linguagem ableísta” - “Ande com as próprias pernas”, ou “Manter os dois pés no chão” -, nós talvez estejamos magoando quem não pode andar?

Embora eu diga no livro que é compreensível que pessoas que sofreram abordagens incômodas ou até violentas de autoridades brancas – policiais, professores, comerciantes – nutram contrariedade e rancor, também devo enfatizar como as coisas mudaram para melhor nos últimos 50 anos: essa ênfase não seria, em si, um sinal de que eu sou um dos que “simplesmente não entendem”? Essas e outras críticas, feitas nesses eventos públicos, foram formuladas como perguntas e sem o rancor que muitas vezes desfigura os debates na arena pública, especialmente quando estão em discussão questões raciais. E, como eu disse, a maior parte do público, inclusive os estudantes universitários, tem se entusiasmado e se disposto a seguir as orientações que dou no livro.

Estou sozinho ao publicá-lo? Há outras vozes dissonantes no país, outros livros excelentes que expõem vários problemas, excessos e erros que aparecem de maneira tão proeminente na vida acadêmica e em outros setores da cultura. O que diferencia A Tirania da Virtude é a carga memorialística, o fato de conter muitas histórias e anedotas que tornam a questão que eu desenvolvo muito pessoal. Mas, de modo algum, eu me considero uma voz solitária e dissidente. É curioso ver que muitos dos colegas, mesmo em um departamento pequeno de uma faculdade liberal de artes, negam as coisas que sei caracterizarem suas ideias e ações. Mas sempre fui uma figura de oposição na academia e trabalhei abertamente, por muito tempo, para combater muitas das tendências que tomaram conta da cultura acadêmica americana. Estar em oposição nem sempre é agradável. Pode ter um preço. Mas também há prazer em ser uma voz contrária em um ambiente que se pensava estar comprometido com a reflexão independente, mas na verdade está comprometido com vários tipos de pensamento de grupo.

Que dicas o senhor dá para quem não gosta da superficialidade da guerra cultural e não quer participar dela? Em primeiro lugar, isso é possível, hoje em dia?

Boyers – Sei que as disputas associadas às guerras culturais podem parecer “superficiais”. Ou “provincianas”. Até mesmo “infantis”. Em momentos em que me ponho como um combatente nessas batalhas, fico imaginando minha capacidade de me envolver em conflitos que podem mesmo parecer triviais, inclusive para seus participantes. É realmente importante que muitos acadêmicos americanos desejem estabelecer regimes de vigilância nos quais eles e os alunos que se deixaram levar pelos professores estão sempre prontos para excomungar pessoas que dizem algo errado, pronunciam uma palavra proibida ou não usam uma expressão recomendada?

Eu realmente preciso dar atenção aos idiotas da direita americana que afirmam que os atletas que se recusam a cantar o hino nacional em um evento esportivo devem ser demitidos? Deveria estar indignado com as pessoas à direita que se recusam a usar máscaras ou manter um distanciamento social seguro durante a pandemia de coronavírus, alegando que esses protocolos vão de encontro aos seus direitos inalienáveis?

Essas disputas podem mesmo parecer pequenas ou superficiais, mas, ainda assim, me parecem ser parte de discussões maiores que precisamos fazer, não apenas sobre igualdade e justiça social, mas também sobre o tipo de sociedade em que vale a pena viver. Recusar-se a se envolver com debates locais é quase sempre posar de superior e fingir que se é bom e sofisticado demais para se preocupar com assuntos que preocupam seres humanos comuns. E, é claro, as questões “triviais” ou “locais” são muitas vezes bem mais importantes do que alguns podem imaginar. Pessoas que se recusam a usar máscaras ou manter o distanciamento social durante uma pandemia que ceifou dezenas de milhares de vidas são não apenas imprudentes e autodestrutivas, mas também incorporam uma relutância generalizada - até mesmo uma incapacidade - em considerar a saúde e o bem-estar dos outros, como se fazer isso fosse uma violação intolerável ao seu direito de autodeterminação. Uma sociedade, a América de Trump, em que uma parcela substancial da população compartilha dessa relutância é uma sociedade problemática.

Qual é a sua opinião sobre a decisão da HBO de remover temporariamente E O Vento Levou do seu catálogo de streaming, por causa do retrato que o filme faz do tempo da escravidão? Também nas últimas semanas, estátuas em homenagem a figuras históricas como Cristóvão Colombo e o general Robert E. Lee, nos EUA, e o mercador de escravos Edward Colston e o ex-primeiro ministro Winston Churchill, na Inglaterra, estiveram sob ataque de ativistas que os consideram racistas. O senhor concorda com essas ações?

Boyers - Como muitas questões geradas por fatos recentes, essas podem ser mais complicadas do que queremos imaginar. E O Vento Levou? Todos podemos viver bem sem acesso imediato a esse filme. A HBO retirá-lo da plataforma de streaming altera substancialmente o teor de nossa discussão política? Claro que não. O gesto é um evidente esforço para satisfazer uma fatia do eleitorado atualmente disposta a fazer com que suas demandas pareçam parte de um imperativo categórico. Na verdade, portanto, estamos lidando aqui com um conflito político impulsionado por aqueles que desejam criar uma cultura na qual ninguém terá que enfrentar nada que seja presumivelmente perturbador ou desagradável. Me parece uma luta inútil e, embora eu realmente não me preocupe com E O Vento Levou, me preocupo com a possibilidade de que as pessoas que pressionam a HBO a retirar o filme em breve exortem muitas outras instituições a retirar obras de arte genuinamente importantes e desafiadoras.

Nos Estados Unidos, isso se tornou uma característica comum da vida pública e é um fenômeno que discuto em detalhes no meu livro. Há 50 ou 60 anos, pessoas do meu círculo liberal zombavam dos esforços de conservadores culturais e religiosos para “despoluir” o ambiente por meio da remoção de livros controversos das estantes das bibliotecas públicas ou de tentativas de proibir filmes e revistas supostamente ofensivos. Hoje, as tentativas de “limpeza” vêm, em geral, de pessoas que pertencem, infelizmente, ao meu próprio grupo progressista.

E assim vemos pessoas supostamente cultas tentando remover obras-primas de Balthus e outros grandes artistas das coleções de museus ou tentando remover do currículo da faculdade livros como Huckleberry Finn ou Lolita em nome de “virtude” ou segurança. Quase 30 anos atrás, dedicamos uma edição especial da revista Salmagundi ao que chamamos de “O Novo Puritanismo”; nessa edição, vários intelectuais liberais lamentaram as tentativas de acadêmicos bastante esclarecidos de “limpar” da cultura artefatos potencialmente perturbadores. É claro, então, que esse problema está conosco há muito tempo e não desaparecerá tão cedo. Aqueles que não veem motivo para se ocupar com E O Vento Levou - como eu disse, não dou a mínima para esse filme - deveriam, mesmo assim, se preocupar com essas movimentações para removê-lo e aqueles que fingem que nada está correndo perigo deveriam pensar duas vezes. Grupos que se mobilizam para suprimir ou destruir obras de arte pertencem a uma longa e infeliz tradição de intolerância e zelo missionário. Muitos daqueles que emprestam suas vozes a esses esforços são jovens ou ignorantes demais para se lembrar dos episódios de queima de livros no meu país e nos países europeus que tiveram governos autoritários ou fascistas.

Estátuas em praça pública, no entanto, me parecem uma questão completamente diferente. Afinal de contas, erigir estátuas para vendedores de escravos, racistas ou fascistas e colocá-las em espaços públicos parece dizer que as pessoas representadas nelas incorporam os valores daquela comunidade. E, à medida que os valores da comunidade evoluem, é natural e legítimo - assim me parece – que os cidadãos removam as estátuas que refletiam os valores de outrora da região ou da população - ou pelo menos de quem então exercia o poder. Robert E. Lee, é claro, personificou uma tradição que dominava o sul dos EUA, e essa tradição estava essencialmente ligada à instituição da escravidão. É impossível argumentar que Lee é homenageado por algum motivo que não seja sua defesa dessa tradição grotesca. Argumentos sobre suas outras virtudes - coragem, firmeza, dignidade pessoal - parecem-me irrelevantes. Estátuas de Lee foram erguidas e instaladas não para celebrar suas virtudes pessoais, mas seu representativo status de alguém que defendia uma cultura construída em cima de escravidão. Não vejo razão para não querer remover essas estátuas.

A questão do que fazer com uma estátua de Winston Churchill é outra coisa. Não concordo com as opiniões de Churchill sobre muitos assuntos. Ele nunca foi um estadista liberal. Era racista e antissemita – um homem convencional de seu tempo, classe e geração. Mas as estátuas de Churchill não foram erguidas para celebrar seu racismo ou seu antissemitismo. Ele foi, de fato, como todos sabemos, um líder heroico na luta contra o fascismo e preparou a Grã-Bretanha para uma longa e difícil batalha contra os nazistas. Sem a liderança dele, é possível que a Segunda Guerra Mundial tivesse tomado um rumo muito diferente, e mesmo aqueles entre nós que fazem pouco uso da memória histórica devem reconhecer que, muitas vezes, aqueles em que confiamos em tempos de angústia podem não ser sujeitos exemplares de modo geral.

Eu diria que um país como a Grã-Bretanha não honrar Churchill, em vários aspectos um dos grandes e necessários líderes de sua história, seria sucumbir a uma espécie de amnésia voluntária e intencional. Quando li sobre Churchill - não muito tempo atrás, li um livro sobre ele escrito pelo historiador John Lukacs - fiquei admirado por sua liderança e capacidade de instilar confiança em seu povo durante os dias mais sombrios da guerra contra o fascismo, e eu me esforcei para não deixar minha admiração ser destruída por visões pessoais que me parecem repreensíveis.

O senhor escreve no livro que “tanto diretores quanto uma grande parte dos professores de tendência liberal andam assustados” nas universidades, receosos de que qualquer crítica que fizerem possa ser rotulada como ofensiva. Ano passado, um grupo de estudantes da universidade onde Camille Paglia é professora titular lançou uma petição online exigindo que ela fosse removida do cargo (e “substituída por uma pessoa negra e queer”) ou que se oferecessem aulas alternativas aos alunos que querem evitar contato com ela, pelo fato de Paglia questionar algumas acusações de assédio sexual feitas muitos meses ou anos depois do suposto crime e também contestar a “ideologia de gênero”/”teoria de gênero”, cuja teórica mais proeminente é Judith Butler. Qual é a sua opinião sobre essa atitude dos alunos? O senhor conhece a obra de Paglia? O que acha dela?

Boyers – Eu mesmo já redigi e assinei petições. Nada de errado com elas, em princípio. Mas é claro que existem causas válidas e causas falsas. Existem petições feitas para tentar resolver uma injustiça e petições feitas para gerar barulho, sinalizando não muito mais do que a intenção de levantar um punho vazio ou dizer que os signatários estão “do lado certo”. Diante disso, uma petição exigindo a contratação de “uma pessoa negra e queer” pode muito bem se tornar o benéfico primeiro passo de uma campanha para diversificar o corpo docente de uma instituição que ainda não tomou medidas na direção da diversidade.

Mas a palavra “exigindo” pode significar uma falha em entender ou mesmo reconhecer fatores relevantes à questão. Há pessoas negras e queer qualificadas que gostariam de lecionar em uma determinada instituição? Alguma delas já se candidatou a cargos na instituição? Há uma vaga disponível para essa pessoa no departamento em questão? É uma boa ideia apoiar um processo de recrutamento no qual a ênfase principal não esteja nas credenciais acadêmicas ou na especialização dos candidatos, mas em suas raça e orientação sexual? Não se espera que petições deem conta de todos esses fatores relevantes, mas geralmente se espera que elas denotem ter alguma compreensão sobre esses fatores.

De longe, o aspecto mais preocupante da questão é a exigência de substituir uma professora titular - não por causa de algo que ela tenha feito e que justificasse a remoção, mas porque ela questionou a ideologia de gênero, ou teoria de gênero, associada a Judith Butler, entre outros. Além disso, aparentemente a professora contestou alegações de assédio sexual que se referem a eventos que ocorreram muito antes da acusação ser feita. Embora eu discorde da professora nesse ponto, não vejo razão alguma para ceder a essas exigências. É o tipo de exigência que qualquer um pode fazer, defender a remoção de um autor ou acadêmico cujas visões parecem provocativas ou estranhas.

Eu devo ser “substituído” porque incluo no programa das minhas aulas o crítico marxista George Lukacs ou um livro de Susan Sontag que contém um ensaio sobre um romance pornográfico? A noção de que os professores devem ser removidos de seus cargos por causa de seus pontos de vista surgiu de um bloco cada vez maior na academia americana, igualmente de professores e de alunos.

Essa tendência novamente faz lembrar os piores traços dos regimes autoritários, e é espantoso que os alunos que lançaram a citada petição aparentemente desconheçam a tradição infame a que se filiam, demonstrando não saber, por exemplo, da tentativa de “limpar” as universidades alemãs, nos anos 1930, não apenas dos departamentos judaicos, mas também de todo departamento considerado “degenerado” por fazer oposição ao regime e à ideologia nazista. Desconhecem também, aparentemente, os esforços muito recentes de certos regimes, com frequência ajudados e incitados por professores e estudantes, para expurgar vozes dissidentes de universidades da China, do Oriente Médio e dos países da Europa Oriental sob domínio soviético.

Desculpe, mas se esses estudantes fossem da minha faculdade e me pedissem para analisar a petição, eu recomendaria que eles, com a maior urgência, lessem um pouco dos livros que eles tanto se esforçaram para não ler.

Não vou dizer muito mais coisas de Camille Paglia, a quem conheci muitos anos atrás, antes de ela publicar o livro Personas Sexuais e ficar conhecida. Eu sempre achei que as tentativas dela de se comparar com Susan Sontag eram equivocadas e que seus talentos, seja como escritora ou pensadora, eram superdimensionados, certamente por ela mesma. Paglia é uma provocadora, muito ocasionalmente acerta o alvo de seus ataques ao senso comum, e há algo de impetuoso e revigorante em suas investidas irreverentes contra uma ampla gama de posturas e suposições. Não há dúvida de que ela leu muitos livros e sempre conseguiu atrair seguidores, embora seu narcisismo a leve a dizer e tentar coisas com que depois ela não consegue lidar. Eu nunca conversei com alguém que tenha sido aluno dela, mas penso que qualquer escola de arte adoraria ter no corpo docente pelo menos algumas pessoas como ela, genuinamente excêntricas e independentes - desde que não descambem para o fanatismo ou comportamento irresponsável.

E qual é a sua opinião sobre o que aconteceu com Woody Allen nos últimos três anos? Ele foi, de novo, acusado de molestar a filha (acusação nunca provada), atores declararam em público estarem arrependidos de ter trabalhado com ele, Woody praticamente não consegue mais filmar em Hollywood, o lançamento da autobiografia dele foi cancelado pela antiga editora depois de protestos intensos… O senhor vê hipocrisia, santarronice, nos “haters” dele também? Algumas acusações feitas pelo #MeToo (sem dúvida, um movimento importante) foram exageradas?

Boyers – O #MeToo tem sido um movimento importante e benéfico para a cultura e, na maior parte, até onde sei, aqueles que foram denunciados e punidos sob os auspícios dele mereceram o opróbrio. Digo “na maior parte” porque continuo lamentando o ocorrido com o senador [democrata, de Minnesota] Al Franken, cujas “infrações” me pareceram insignificantes e que não deveria ter saído do Senado americano [Franken renunciou em 2018]. Deve haver outros casos desse tipo. Todo movimento provoca danos colaterais, e o máximo que podemos exigir é que os integrantes do movimento sejam tolerantes com vozes dissidentes e prestem atenção quando críticas surgirem, como aconteceu no caso de Franken e em outros que eu lembro.

O caso de Woody Allen igualmente me incomoda, em parte porque sigo admirando e até amando alguns de seus filmes. Como outros intelectuais judeus de Nova York, cresci vendo esses filmes, e lembro-me de muitas noites em que me sentei com amigos – e, mais tarde, com meus filhos – para discutir Manhattan, ou Crimes e Pecados, ou Hannah e Suas Irmãs. Nunca imaginei Allen como uma pessoa incrível ou maravilhosa. Certamente não foi isso que ele quis retratar nos personagens que interpretou.

Mas também nunca me ocorreu pensar que o maior dos cineastas - Ingmar Bergman, digamos - fosse um marido, pai ou amigo exemplar. Ou que os escritores e artistas que eu mais admiro - Tolstoi, Woolf, Vuilliard - eram pessoas especialmente adoráveis. O antissemitismo e a personalidade desdenhosa de Woolf de modo algum afetam meu amor por Ao Farol ou Mrs. Dalloway. As relações nada exemplares de Tolstoi com a esposa não interferem quando estou lendo ou dando aula sobre Anna Karenina. Já escrevi muito sobre minhas interações com V.S. Naipaul, alguém longe de ser amável ou exemplar e autor de vários dos maiores romances do século passado.

Há também, contudo, o fato de que sérias acusações foram feitas a Woody Allen e que elas foram levantadas e reiteradas por pessoas que parecem acreditar nelas. O que fazer com essas alegações eu não sei, exceto dizer duas coisas: um, que não fui totalmente convencido por nada que tenha lido sobre os supostos delitos grotescos de Allen; e dois, que as acusações foram julgadas nos tribunais e consideradas sem mérito suficiente para justificar a continuidade do processo criminal. Portanto, não posso acreditar que Allen mereça ser punido por crimes que são meramente alegados e de modo algum comprovados. É claro que posso estar totalmente enganado quanto a isso, e em todo o caso não tenho as condições para discutir o assunto de um jeito ou de outro.

O que tenho motivos para levar em conta é a noção de que o trabalho de Allen deve ser suprimido ou “cancelado”. Isso me deixa mais do que apreensivo. O impulso de bloquear ou censurar a obra de qualquer artista ou escritor parece-me, mais uma vez, ser coisa de sociedades asquerosas e iliberais, sociedades marcadas pela forte presença de funcionários conhecidos como censores, informantes e comissários culturais.

É claro que editores são livres - deveriam ser - para decidir não publicar a autobiografia de Allen. E os programadores de salas de cinema são livres para não exibir seus filmes. Não há muito o que possamos fazer quanto a isso. Mas podemos repudiar essas ações, especialmente porque, nesse caso, elas se destinam a privar um público do acesso a um cineasta que fez um trabalho de primeira classe, pelo qual muitos de nós somos gratos.

Penso comigo mesmo que Allen vai finalmente encontrar uma editora para seu livro (de fato, ele encontrou), ou vai publicá-lo por conta própria, e que as pessoas que quiserem ler podem encomendá-lo on-line, mesmo que as livrarias se recusem a vendê-lo. E espero que os filmes continuem disponíveis em DVD ou nas plataformas de streaming e que Allen não seja esquecido, apesar dos esforços de pessoas que realmente não entendem que estamos tomando um rumo perigoso e que, em breve, lhes será sugerido que “cancelem” muitos outros escritores e diretores cujo único “crime” é desagradar algum grupo ou não preencher certos requisitos ideológicos.

Aqueles que querem eliminar a obra de Woody Allen, impedir que o público assista a seus filmes ou leia seus livros, pensam que podem fazer isso sem parecerem o que são, isto é, sem vestir o uniforme nazista ou jogar as obras em uma fogueira numa praça pública e quebrar as vitrines das lojas que ainda as vendem. Eles, isso sim, pertencem a uma facção que se ilude ao supor que está apenas fazendo o bem ao impedir as pessoas de decidirem por si mesmas sobre o que sentir e pensar de livros e filmes que encantaram e provocaram o público, por várias gerações.

Conteúdo editado por:Jones Rossi
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