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Uma enfermeira brasileira, um soldado americano e uma história que não resistiu à guerra
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Naquela manhã de 2004, saí para comprar qualquer coisa remotamente interessante na hoje extinta feira de antiguidades que ficava sob a avenida Perimetral, no Rio de Janeiro. Fazia calor, como sempre, e duas horas depois de começar a andar pelas barraquinhas eu ainda não tinha encontrado absolutamente nada de bom para comprar. Desanimado, já pensava no almoço quando, numa das últimas barracas, vi, dentro de uma caixa de sapatos, um maço de envelopes com selos da década de 1940. Lembrei-me da minha velha e abandonada coleção de selos e, sem muita empolgação, comprei os envelopes antes de me esbaldar com uma feijoada em Santa Teresa.

Naquele mesmo dia, ao chegar em casa disposto a colocar o envelope numa mistura de água e vinagre para desgrudar o selo postal sem danificá-lo, descubro que quatro dos envelopes contêm cartas. Só então é que percebo o contexto em que foram escritas. O remetente é um soldado norte-americano estacionado na Itália, um tal Leroy DeRemer. O destinatário é uma enfermeira brasileira, membro do Corpo de Saúde da FEB, Isabel Novaes Feitosa. Com a sensação de estar cometendo um crime de voyeurismo ou coisa que o valha, tiro de dentro do envelope frágil e amarelado a primeira das cartas, com data de julho de 1945.

“Oi, boneca.
Como você está? Tudo bem, espero.
Hoje é domingo e estou sozinho lhe escrevendo. Voltarei para os Estados Unidos dentro de dois ou três meses. Não demorará muito até podermos nos encontrar novamente, espero.
Já contou de mim para a sua mãe? O que ela disse?
Bob foi à praia com os outros caras. Não fui porque fico muito triste por você não estar comigo.
Amor, não tente me enviar nada do Brasil porque meu endereço pode mudar em breve. Só me escreva com a maior frequência possível e eu ficarei feliz.
Converso com sua fotografia todos os dias, mas você não me responde.
(...)
Todos os meus beijos para minha boneca
Eu te amo,
Roy”

Ao terminar de ler a carta e impressionado com o “I love you” tão caro aos norte-americanos, pensei: “Tem uma história aí”.

Tinha.

Isabel vai à guerra

Destinada ao convento. Foi assim que nasceu Isabel Novaes Feitosa na remota Propriá, no interior de Sergipe, em 17 de agosto de 1922. De família tradicional na região e fruto de um parto difícil, Isabel foi criada para ser freira pela mãe, Maria Isaura Novaes Feitosa. Mas no meio do caminho havia uma guerra, havia uma guerra no meio do caminho.

Quando a notícia do conflito europeu chegou ao interior do Nordeste, Isabel logo percebeu a oportunidade de escapar do hábito e se matriculou num curso de enfermagem em Aracaju. A mãe, contudo, a obrigou a desistir da profissão. Às escondidas, em 1941 Isabel escreveu uma carta para a Cruz Vermelha oferecendo-se para servir como enfermeira no conflito. Ela nunca recebeu resposta.

Azar de uns, sorte de outros. Em 1943, o ditador Getúlio Vargas criou a Força Expedicionária Brasileira e, com ela, o Serviço de Saúde da FEB, que contaria com 67 mulheres voluntárias de todo o país. Isabel se enquadrava nos pré-requisitos, que falavam em mulheres jovens, solteiras ou viúvas, com alguma experiência em enfermagem. Mais do que isso, ela estava disposta a enfrentar o preconceito expresso até por dona Santinha [Carmela] Dutra, esposa do então Ministro da Guerra e futuro presidente do Brasil, Eurico Gaspar Dutra. Ao ser nomeada patrona das enfermeiras da FEB, dona Santinha recusou a honraria e esbravejou: “Isso é coisa de mulher que não presta”.

Depois de treinamentos realizados em Salvador, Rio de Janeiro (a prestigiada Escola de Enfermagem Anna Nery se recusou a ajudar na formação das voluntárias brasileiras, sob a alegação de que o Exército não era lugar para mulher direita) e Miami, e de uma estadia rápida na base norte-americana em Natal, Isabel e suas companheiras, entre elas a curitibana Virgínia Leite, foram mandadas para o front italiano.

O misterioso DeRemer

O Primeiro Sargento Leroy DeRemer, número 33110523, é e para sempre será um mistério. A começar por sua idade avançada. Nascido em 1915, na Pensilvânia, consta nos poucos registros encontrados que ele trabalhou num hotel antes da guerra. Nada além disso. Ao se alistar, em 1942, ele tinha 27 anos – praticamente um idoso entre os que se ofereceram para lutar contra Hitler.

Relatos garimpados ao longo dos anos mostram um DeRemer (que, infelizmente, não é um nome dos mais incomuns) em Nápoles, já no fim do conflito, trabalhando na prevenção às epidemias comuns àquele caos pós-guerra.

Seria muito fácil descobrir o que DeRemer fez na Segunda Guerra Mundial, por onde andou, por quantas baixas inimigas foi responsável e até que reprimendas recebeu de seus superiores. O registro de todos os soldados norte-americanos está no National Archive, em Overland, Missouri. Ou melhor, estava. No dia 12 de julho de 1973, um incêndio de grandes proporções destruiu cerca de 18 milhões de arquivos pessoais ali armazenados. Entre eles, os arquivos de Leroy DeRemer.

O fato é que DeRemer estava completamente apaixonado pela enfermeira brasileira baixinha, de pele morena e bochechas tão fartas quanto os seios. Numa entrevista realizada há cerca de dez anos, a enfermeira Virgínia Leite disse se lembrar de Isabel e “um americano”. A despeito do conteúdo das cartas, ela garantiu que o namoro em tempo de guerra era comportadíssimo. Coisa de pegar na mão, ir ao cinema, dançar. Nada de beijo. Sexo? Só depois do casamento, claro.

Numa carta de setembro de 1945, DeRemer novamente declara seu amor a Isabel.

“Oi, boneca.
Como você está, querida? Bem, espero.
Agora eles me dizem que voltarei aos Estados Unidos em dois ou três meses. Depois disso, minha companhia vai ao Pacífico. Não sei se precisarei ir ou não. Espero que não.
Como estão as coisas no Brasil? Como está sua mãe? Você contou a ela sobre mim?
Hoje tomei três vacinas no braço. Bob também. Nós dois ficamos doentes por causa delas.
Amanhã vou à Ópera San Carlo ver ‘Fausto’. Já tenho ingressos.
Hoje vou pescar. Queria que você estivesse aqui para irmos juntos. Sinto tanto a sua falta que não sei o que fazer sem você, mas um dia estaremos juntos para sempre.
Amor & beijos,
Roy”.

Se Isabel falou de DeRemer para a mãe que a tinha prometido a um convento, jamais saberemos. Assim como jamais saberemos qual a opinião da mãe sobre o soldado. O que sabemos, contudo, é que essa história não teve um final dos mais felizes.

Discrição e silêncio

Quando Isabel e DeRemer se conheceram, a guerra estava praticamente vencida. O que não quer dizer que não tenha havido muita violência. Num depoimento a Wilma Rezende Lima, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Isabel conta que o trabalho no hospital de Nápoles, administrado pelos norte-americanos, era assustador. “Eram muitos feridos de todos os tipos: queimados, intestinos abertos e mutilados. Mesmo que a gente se controlasse, era um trauma maior do que um ser humano podia aguentar”.

A cada cinco dias de trabalho, as enfermeiras tinham um dia de folga. A Nápoles libertada, apesar das feridas da guerra, era um lugar onde uma menina solteira de Propriá podia se divertir muito com as amigas. Havia cinemas, óperas, teatros e bailes. Muitos bailes onde homens e mulheres podiam esquecer por um tempo os horrores da guerra. O jornalista Joel Silveira, durante uma conversa informal em 2005, me disse que, ao contrário do que pregava Virgínia Leite, a castidade não era uma virtude das mais praticadas na Itália em guerra. “Diante da possibilidade iminente da morte, o ser humano se liberta”, contou. Para ele, mais horrível do que ver um corpo destroçado por uma bomba era testemunhar um pai que vendia sua filha em troca de uma barra de chocolate ou meia-dúzia de ovos.

Isabel era uma enfermeira discreta na vida militar. Virgínia Leite disse se lembrar vagamente dela e do americano. Elza Cansanção, uma espécie de “cronista oficial” das enfermeiras, mal a cita em seus livros. No raro Álbum Biográfico das Febianas, de Altamira Valadares, o verbete reservado a Isabel Novaes Feitosa ocupa um espaço minúsculo, com informações que vão pouco além da data de nascimento. Como jamais se casou nem teve filhos, é como se sua memória tivesse desaparecido. Dela restaram fotos e as cartas aqui reproduzidas.

De Leroy DeRemer, nem isso. Em 2009, depois de muitos meses de pesquisa, consegui localizar a filha do soldado, Nadine Wight, em Arlington, Washington. Liguei insistentemente por vários dias, deixando sucessivos recados na secretária-eletrônica. Até que, finalmente, a própria Nadine me atendeu. Acreditava, ingenuamente, que todo o mistério dessa relação seria esclarecido. Nadine, contudo, foi bastante... concisa: “Meu pai nunca me falou nada sobre a guerra”.

Em sua última carta para Isabel, com data de dezembro de 1945, DeRemer escreve:

“Olá, meu único e verdadeiro amor,
Você se lembra do vinho que eu e você fizemos? Ele está bem bom agora. Dei a Bob um gole, ele disse: “É bem forte”. Faço um brinde ao meu amor sempre que o bebo.
Estive em Roma cinco dias desde que você foi embora, mas não é divertido e fico triste todos os dias porque você não está comigo. Vou ao mesmo lugar onde você e eu estivemos e no caminho de volta ao acampamento paro no mesmo lugar para almoçar e beber água. Sempre penso “Quero meu amor e mais ninguém”.
(...) Estou lhe enviando uma foto – na próxima foto estarei no Brasil com você.
Sempre seu, com todo o meu amor,
Roy”.

O retorno à vida civil

Em 6 de julho de 1945, a Força Expedicionária Brasileira foi subitamente desmobilizada numa articulação feita pelos generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro. Getúlio temia que a tropa, voltando de uma incursão na Europa, onde lutou contra uma ditadura, acabasse por derrubá-lo. Da forma mais autoritária possível, o Exército proibiu os expedicionários de dar declarações públicas e até mesmo de andar uniformizados.

Ainda assim, em 18 de julho de 1946 os expedicionários desfilaram pelas ruas do Rio de Janeiro numa enorme Parada da Vitória – que, infelizmente, não contou com a presença das enfermeiras. Isabel e suas companheiras caíram no ostracismo. Só em 1950 elas foram reincorporadas ao Exército, promovidas ao posto de 2º Tenente. Isabel trabalhou em hospitais militares e, depois de se formar em museologia, tornou-se diretora do Museu da Imagem e do Som da FEB.

DeRemer, por sua vez, voltou aos Estados Unidos e se estabeleceu numa região agrícola de Washington, no noroeste do país. De acordo com sua filha, ele nunca mais falou da guerra e jamais mencionou Isabel.

O relacionamento epistolar entre os dois, contudo, não acabou com o armistício. Foi necessária a intervenção algo dura de Gladys DeRemer, agora casada com Leroy. Ao abrir o quarto e último envelope, datado de julho de 1947, me surpreendi não apenas com o teor da carta, mas também com o tom raivoso da esposa ultrajada.

“Cara srta. Feitosa.
Fico me perguntando... você não recebeu a carta que lhe escrevi em abril dizendo – e contendo um recorte de jornal – que Roy e eu nos casamos em Miami no outono passado? Não acho que você seja o tipo de moça capaz de ignorar tal informação. Roy, meu querido marido, escondeu essa informação de você. Não sei por quê. Supunha que ele lhe tivesse contado, mas suas cartas continuam chegando e, apesar de eu não interferir, não gosto nada disso. Se a relação entre vocês fosse estritamente platônica, não me importaria, mas essa coisa de amor – disso eu não gosto. Também amo Roy, Isabelle (sic) – mais do que tudo no mundo e me ressinto da sua atenção e intenções. Claro que você entende.
Se você não acredita e quer ter certeza do que digo, escreva e pergunte à mãe dele. Você provavelmente ainda tem o nome e o endereço dela é (...).
Como lhe disse antes, não estou fazendo isso para ser cruel, mas é para o seu próprio bem, assim como o meu, que você saiba sobre esta situação.
Quando Roy lhe enviou a fotografia, ele deveria ter mandado a minha também, não acha? Se bem que você viu minha foto em Nápoles.
Sinceramente,
Gladys DeRemer”.

O fim

Isabel Novaes Feitosa morreu em 5 de outubro de 2002, de complicações decorrentes de um câncer de mama. Leroy DeRemer morreu vinte anos antes, em 16 de março de 1982.

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