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“Nós não somos independentes em absoluto; a nossa substância depende da substância divina, sendo esta a que os filósofos buscavam e ainda devem buscar”
“Nós não somos independentes em absoluto; a nossa substância depende da substância divina, sendo esta a que os filósofos buscavam e ainda devem buscar”| Foto: BigStock

"Tudo é um." Enuncia, tal qual já escrevi, o primeiro filósofo, como se dissesse: "A filosofia começa com uma passagem para além da percepção sensível, um afastamento das coisas imediatas, um retorno à unidade simples."

Nisso é preciso aprofundar, para que ninguém siga as leituras pré-socráticas sem o entendimento da plenitude desta revolução filosófica, efetuada por Tales de Mileto. Então hoje, o meu convite é para que nos demoremos neste assunto, ao aprofundar no significado da metafísica e da vida intelectual.

Ela começa pela unidade, busca “o único que é em si e para si”, “o ser enquanto ser”. Agora, tenham calma, talvez os dois conceitos pareçam obscuros, mas a claridade é só uma questão de tempo. A possível dificuldade vem de que são termos distantes do cotidiano, pois, no dia a dia, ninguém está voltado ao ser em si mesmo. Está, sim, à relação que o ser tem com a existência e os acidentes, o verdadeiro e o falso. Agora, será que vocês já se perguntaram: “Quem sou eu para além das minhas realizações exteriores?”

Normalmente, as pessoas se definem pelo que fazem: “Eu sou médico”, “engenheiro”, “advogado”. Mas nenhuma dessas atividades alcança o âmago, nada disto é substancial: um médico poderia ser engenheiro; um engenheiro, advogado; um advogado, médico. O que “é” verdadeiro ou falso tampouco, pois o seu ser “é” lógico, ou seja, só tem existência na mente. A realidade mesma é extramental, é o ser que sustenta todos os acidentes, pois, para dizer que “é” médico, que “é” verdadeiro, etc, é preciso, antes, simplesmente, que seja. Esta simplicidade é o tal “ser enquanto ser”.

Mas há quem diga que ele é a própria divindade, e, como expressa Santa Teresinha, que “Eu sou o que Deus pensa de mim”. Afinal, por mais que a nossa essência sustente todas as nossas determinações e qualidades, nós não somos independentes em absoluto; a nossa substância depende da substância divina, sendo esta a que os filósofos buscavam e ainda devem buscar.

Agora, o nosso imaginário cristão nos conduz a um Deus transcendente, o que não condiz com a divindade pré-socrática. Esta reside no cosmos, na natureza, e, por isso, a filosofia tem início com uma investigação fisicalista. Porém, trata-se de um fisicalismo diferente do materialismo moderno, do mecanicismo científico. Para os clássicos, a natureza é sobrenatural, espelho hierofânico de potências espirituais. Hierofania é a manifestação do sagrado no mundo, e, portanto, o Universo pré-socrático constitui-se como um conjunto de símbolos; são véus que encobrem ao mesmo tempo que revelam o Primeiro Princípio (arché).

Para que o entendamos bem, o Princípio antigo distingue-se do moderno. Aquele não é a origem situada no tempo remoto, como a Grande Explosão. Cosmologicamente, o problema de concebê-lo como algo similar ao Big Bang é que, se o Princípio está situado cronologicamente, então ele fica para trás, e deixa de reger tudo o quanto há. Daí nascem as mais recentes teorias do caos; para ser cosmos, pelo contrário, a gênese grega deve ser nem cronológica nem linear; é um princípio que mantém-se e preserva-se no desenvolvimento e encadeamento do cosmos.

São reflexões teoréticas profundas, que levam alguns dos homens comuns a imaginar a vida intelectual como se estivesse deslocada da vida prática. Há até uma anedota antiga que colabora com a visão tal de que o filósofo vive no mundo da lua. A narrativa conta que Tales, ansioso por conhecer as coisas do céu, esquecia do que estava aos seus pés, até que um dia caiu num poço fundo; uma escrava riu-se dele, ridicularizando o filósofo atrapalhado pelas coisas do mundo. É uma imagem presente até na literatura brasileira, na Ressurreição, de Machado de Assis, que diz:

— Um astrólogo antigo, estando a contemplar os astros, caiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha, que apostrofou o astrólogo: «Se tu não vês o que está a teus pés, porque indagas do que está acima da tua cabeça?».

— O astrólogo podia responder que os olhos foram feitos para contemplar os astros.

— Teria razão (…) se ele pudesse suprimir os poços. Mas que é a vida senão uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios? O melhor meio de escapar aos precipícios é fugir aos enlevos.

Agora, o que os detratores de Tales não levam em conta é que a passagem é mais poética do que factual. Ela advém de uma tentativa, falsa, de ridicularizar os pré-socráticos. Pois o próprio Tales, ao contrário de viver no mundo da lua, era um homem prudente, voltado ao mundo concreto, à política, engenharia e astrologia prática. Heródoto conta que quando a Jônia estava prestes a ser destruída, Tales guiou os seus concidadãos na realização de uma assembleia; quando as tropas de seu exército não conseguiam atravessar um rio pela ausência de pontes, Tales abriu um canal engenhoso, desviou o curso d’água e propiciou a travessia; quando o céu estava para empreender um eclipse, Tales usou a astrologia de modo prático, e realizou uma previsão.

São fatos que concordam com a tese de Pierre Hadot, um dos mais brilhantes comentadores dos clássicos, para quem a Filosofia Antiga é, antes de tudo, um modo de vida. O seu objetivo não é alienar-se da realidade concreta, mas sair de um estado de confusa inquietude, dispersão na multiplicidade, para ascender à unidade, a uma existência verdadeira, ora pela reflexão racional, ora pelos exercícios espirituais.

*Natália Cruz Sulman é professora de filosofia

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