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Cerca de 7,8 milhões de pessoas receberam, na Inglaterra, ao menos uma prescrição médica de antidepressivo entre 2019 e 2020. Isso significa que um em seis adultos britânicos tomam ou tomaram antidepressivos. A eficácia desses medicamentos foi testada em estudos considerando o curto prazo, mas cada vez mais são conhecidos efeitos a longo prazo e as dificuldades impostas pela dependência química.
Uma nova revisão, publicada na revista Drug and Therapeutics Bulletin (“Boletim de Drogas e Terapêutica”, em tradução livre) por Mark Horowitz, psiquiatra da University College de Londres, e Michael Wilcock, farmacêutico do Fundo do Serviço Nacional de Saúde dos Hospitais Reais da Cornuália, no Reino Unido, sugere que os antidepressivos deveriam ter uma redução nas prescrições e no prazo para o qual são prescritos.
Horowitz e Wilcock apontam que muitas das evidências a favor dos antidepressivos das duas classes mais usadas hoje vêm de estudos com controle de placebo que duraram entre seis e 12 semanas. Em um dos poucos estudos com maior duração, envolvendo mais de 4 mil pacientes durante um ano, somente 2,7% melhoraram. A eficácia dessas drogas para combater a depressão é mostrada em uma escala que vai de zero a 52 pontos, sendo 52 a máxima severidade da depressão: as drogas oferecem uma redução de dois pontos na escala. Os médicos, no entanto, acreditam que uma redução que faz diferença suficiente no quadro clínico dos deprimidos deveria ser de no mínimo três a cinco pontos.
Há vozes discordantes entre os especialistas, mas um quadro geral, segundo os autores, é que os atuais antidepressivos deixam a desejar no tratamento do transtorno. A Cochrane, que publica revisões rigorosas de tratamentos médicos, chegou a perguntar se vale a pena prescrever antidepressivos, dado que alguns deles chegam a aumentar o risco de suicídio em comparação com o placebo. A avaliação da Agência de Medicamentos Europeia (EMA) é mais otimista, mas os autores da nova revisão levantam dúvidas a respeito dos métodos da entidade.
Curiosamente, essa situação, em que muitos profissionais dão sua palavra de que essas drogas funcionam, mas falham em passar em testes estatísticos tradicionais, lembra bastante a situação da ivermectina como tratamento precoce para a Covid-19 — ironicamente, um antidepressivo, a fluvoxamina, passou no teste como tratamento para o novo coronavírus.
Os antidepressivos considerados na revisão de Horowitz e Wilcock são de duas principais classes: os inibidores de recaptação da serotonina e da norepinefrina, moléculas usadas como mensageiras entre os neurônios, ou seja, neurotransmissores. A serotonina, em especial, é associada à sensação de bem-estar em alguns contextos. Ela é liberada em um espaço que fica na conexão entre dois neurônios, a fenda sináptica. O cérebro tem um sistema que recicla (recapta) a serotonina dessa fenda. Essas drogas inibem esse sistema, fazendo com que os neurotransmissores fiquem mais na fenda, reforçando, portanto, a mensagem de um neurônio para o outro e a sensação de bem-estar — ao menos é o que promete o mecanismo de ação.
Abstinência e efeitos colaterais
Os antidepressivos causam um tipo de dependência que engatilha sintomas de abstinência quando o seu uso é descontinuado — o chamado “desmame”. Esses sintomas são mais fortes se o desmame for de uma vez só, em vez de uma redução gradual até interrupção completa. Em algumas pessoas, a abstinência é tão forte que o desmame não é recomendado.
Durante o uso, os efeitos adversos possíveis incluem a disfunção sexual, um torpor emocional (como na letra de Arnaldo Antunes: “socorro, não estou sentindo nada”), sonolência e falta de sensação de estar alerta, insônia, ganho de peso e agitação, entre outros. Alguns desses podem persistir em algumas pessoas mesmo após o desmame. A EMA fala em “disfunção sexual pós-antidepressivo”, por exemplo. O risco disso, no entanto, é baixo.
De onde vem a depressão?
Os pensadores da medicina primeiro voltaram sua atenção para a antes chamada "melancolia" por volta da década de 1780, como discutiu em 2020 na revista JAMA Psychiatry o médico psiquiatra Kenneth Kendler, da Virginia Commonwealth University. A melancolia era considerada um transtorno do intelecto e do juízo, uma “insanidade parcial” semelhante à tristeza, mas nem sempre associada a ela. No curso do século seguinte, segundo Kendler, houve uma inversão: em vez de considerar a depressão um problema intelectual que desemboca em um problema emocional, aceitou-se na medicina uma ordem causal inversa, de emoções patológicas para intelecto afetado por elas.
Há diferentes modelos biopsicossociais para explicar a depressão. A Organização Mundial da Saúde a caracteriza pela tristeza persistente e perda de interesse em atividades normalmente prazerosas para o indivíduo, acompanhada por uma incapacidade de realizar tarefas diárias durante ao menos duas semanas. Uma das explicações para o transtorno por uma abordagem biológica é a teoria do ranking social do psicólogo clínico britânico Paul Gilbert, da Universidade de Derby. Segundo ele, em espécies sociais e hierárquicas como a nossa, a depressão pode ser uma falha do mecanismo adaptativo para a aceitação de uma derrota e demonstração de submissão, como um sinal para o dominador de que o dominado não é (mais) uma ameaça. Dessa forma, os deprimidos se desengajariam de disputas (o que explicaria a baixa atividade de muitos deles), mas a resposta exagerada da depressão os deixa em um estado prolongado de estresse, uma prisão psicológica da qual não veem saída. Uma corroboração dessa teoria é que os deprimidos com frequência têm um sentimento de inferioridade, raiva reprimida e, em suma, derrota. A sensação subjetiva de derrota está associada a outro sintoma comum de depressão, a anedonia — uma incapacidade de desfrutar de prazer.
Se a depressão é associada a como nos enxergamos em uma hierarquia social, isso explicaria também por que os deprimidos se flagelam com constantes autoavaliações negativas. Percebem-se em baixa posição no ranking social e se torturam com isso, enquanto negam a outros que estão se sentindo mal (uma forma a não tornar pública sua suposta inferioridade). Segundo a teoria de Gilbert, portanto, a depressão é uma ativação crônica de sistemas de defesa a fontes de estresse que resulta numa supressão de comportamento proativo, especialmente quando as pessoas se sentem derrotadas, presas, e tentam suprimir suas emoções negativas.