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Cena de "Uma Vida Oculta"
Cena de “Uma Vida Oculta”: a história de Franz Jägerstätter demonstra que, mesmo em períodos de delírios coletivistas, é possível ouvir a consciência que dá testemunho da verdade, sejam quais forem as circunstâncias.| Foto: Divulgação

A figura do indivíduo que, movido pelo apreço à verdade e à justiça, enfrenta o escárnio público e persiste mesmo diante da própria morte é basilar no pensamento ocidental. O marco principal da filosofia grega é a história de Sócrates, condenado à morte por, dentre outras coisas, desmistificar os falsos deuses gregos. O Antigo Testamento conta a história de Sadraque, Mesaque e Abednego, que são lançados na fornalha por não se curvarem à estátua do rei da Babilônia. E, como ícone máximo, está a figura do próprio Jesus Cristo, que, mesmo rejeitado pelo seu povo e provocado pelo relativista Pôncio Pilatos, submeteu-se calado a uma morte humilhante.

Testemunhos desse tipo são encontrados, em nossa era, nos relatos impressionantes de figuras comuns que se ergueram contra o mal absoluto incorporado pelo regime nazista. O filme “Uma Vida Oculta”, mais recente trabalho do aclamado diretor Terrence Malick, conta uma dessa histórias, em uma narrativa permeada pela beleza e enredada em uma cosmovisão ao mesmo tempo profunda e singela. É uma combinação difícil de encontrar em outras obras contemporâneas.

O filme, lançado em 2019, descreve a história real de Franz Jägerstätter, um camponês que vive nos Alpes austríacos com a mulher e as duas filhas, em uma rotina idílica interrompida quando ele é convocado para compor as fileiras do Exército nazista. Logo de início, Franz se recusa a jurar lealdade a Adolf Hitler. Em uma conversa reveladora com o padre do vilarejo, que usa argumentos utilitaristas para alertá-lo sobre os riscos de sua posição, o protagonista afirma: “Nós estamos matando pessoas inocentes, invadindo outros países, atacando os mais fracos. E o nosso sacerdote os chama de heróis, até de santos – os soldados que fazem isso. Talvez os outros é que sejam os heróis”.

Sendo um homem simples, apolítico e de importância nula para a máquina nazista, bastaria a Franz fazer o juramento e, com os devidos arranjos, ser relocado para uma função não-militar durante a guerra. Mas ele se recusa – não por uma tentativa de iniciar um movimento de insurreição, mas por amor à verdade e à justiça, das quais a consciência é testemunha e para as quais ela não pode fechar os olhos.

A vida de Franz, portanto, foi uma demonstração que é possível dar testemunho da verdade, mesmo que contra as leis da ocasião, e por vezes contra as próprias autoridades religiosas do momento. Com seus exemplos silenciosos, Franz e muitos outros mostraram o nazismo pelo que ele era de fato: maldade, loucura e delírio de grandeza. Assim como Sócrates, e assim como Sadaque, Mesaque e Abednego, o católico Franz tinha um motivo transcendental para sua postura impassível diante do risco de ser morto: a convicção de que, acima de reinos mundanos, existe uma realidade absoluta, e que autoridades terrenas não podem transformar o imoral em moral.

Como outras obras de Malick, “Uma Vida Oculta” é também uma celebração da beleza . Cada enquadramento é composto para ser apreciado, como se fosse uma pintura. São muitas as cenas de beleza natural, no alto das montanhas dos alpes (o filme foi foram gravado no norte da Itália, não muito longe da fronteira com a Áustria). Mas o drama também oferece outro tipo de beleza, mais simplória: a da família onde o amor predomina, em meio à uma vida natural que desconhece ideologias e se mantém imune da loucura das grandes cidades e dos pretensos grandes homens.

O filme intercala uma trilha sonora magistral de James Newton Howard com diálogos intimistas e longos momentos de silêncio. São quase três horas de duração. Mas, em “Uma Vida Oculta”, nada parece exagerado. Outro ponto forte é a atuação dos protagonistas. Franz Jägerstätter é interpretado pelo talentoso August Diehl, e Franziska, sua esposa, pela cativante Valerie Pachner. O elenco principal, aliás, é todo formado por atores alemães ou austríacos, que trazem realismo à entonação e ao gestual germânicos – embora os diálogos se deem em inglês.

Franz Jägerstätter foi um homem dedicado ao trabalho, gentil com seus vizinhos, profundamente ligado à sua família, ao seu vilarejo, à sua pátria que ele amava genuinamente. Ainda assim, foi perseguido pelo regime totalitário de Adolf Hitler. Como mostra o filme, o nazismo, além de aniquilar milhões de vidas nos países que resistiram à Alemanha, feriu seriamente o próprio espírito do povo germânico dos quais Hitler e seus companheiros de insanidade se autoproclamavam defensores.

“Uma vida Oculta” é um filme de beleza, mas também uma obra de força moral que refuta, com graça e ao mesmo tempo com incisividade, o argumento de que bem e mal são categorias mutáveis conforme mudam as circunstâncias sociais. Se a verdade fosse objeto de deliberação da maioria, não teria havido nada de moralmente errado no nazismo. Mas a história de Franz Jägerstätter demonstra que, mesmo em períodos de delírios coletivistas, é possível ouvir a consciência que dá testemunho da verdade, sejam quais forem as circunstâncias.

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